Alguns comentários acerca da análise funcional que o cliente faz do próprio comportamento na FAP

A Psicoterapia Analítica Funcional (FAP) cunhada por Robert Kohlenberg e Mavis Tsai no fim dos anos 80 tem como conceituação básica para compreensão, intervenção e formulação de caso os chamados Comportamentos Clinicamente Relevantes (CCRs/CRBs).

            Os CRBs acontecem em sessão de terapia na interação entre terapeuta e cliente. A relação terapêutica é o meio pelo qual o terapeuta será capaz de observar, evocar, consequenciar, avaliar os efeitos dessas interações com os CRBs do(a) cliente e generalizar as melhoras para fora do setting clínico.

            No primeiro livro da FAP (1991/2006), Kohlenberg e Tsai categorizam os CRBs em três tipos. O CRB1 categoriza os comportamentos que, quando o(a) cliente procura terapia, possivelmente estão com probabilidade de ocorrência muito alta, geralmente funcionando como fugas e esquivas e que estão diretamente relacionados à queixa trazida pelo(a) cliente.

            O CRB2, ao contrário, são comportamentos que têm baixa probabilidade de ocorrência no início do tratamento. Geralmente são comportamentos que estão associados às melhoras que o(a) cliente pode apresentar diante das queixas trazidas às sessões e são difíceis de analisar. O terapeuta deve ficar sempre muito atento às funções dos comportamentos do cliente em sessão enquanto relata o que acontece na vida cotidiana. Para um(a) cliente, chegar atrasado é um CRB1. Para outro(a), que tem como queixa a rigidez ou inflexibilidade, chegar atrasado(a) pode ser um comportamento-alvo a ser modelado. 

            O CRB3, por sua vez, é a interpretação que o(a) cliente faz do próprio comportamento. Interpretação sendo compreendida por Kohlenberg e Tsai (2006) como a análise funcional propriamente dita ou qualquer análise que possa levar o terapeuta a modelar o comportamento verbal do(a) cliente para uma análise funcional (Kohlenberg et al, 2011). 

            No entanto, o conceito de CRB3 foi simplesmente abandonado pelos autores. O último livro da FAP, publicado no Brasil em 2022pela editora Sinopsys intitulado Psicoterapia Analítica Funcional (FAP Made Simple, 2017 no original), considerado por muitos professores e autoridades da FAP no Brasil como o livro mais completo do tema até hoje lançado simplesmente não tem qualquer menção ao CRB3 em todo o texto de quase 400 páginas. Isto porque considerar o CRB3 como um comportamento automaticamente desejável na terapia é um tanto quanto controverso pelos princípios da FAP. 

            O comportamento verbal é um comportamento operante como qualquer outro, passível de ser evocado e consequenciado, sensível a consequências reforçadoras e aversivas.  Ainda que Skinner (1953; 1974) nos mostre que se tornar consciente do mundo e de si mesmo envolve a descrição de contingências de reforço nas quais se está inserido, o mero falar não significa muita coisa. Segundo Skinner (1957, p. 2), “palavras não quebram ossos”. Claro que palavras podem fazer com que outros quebrem ossos por nós (Hübner, 2013), mas num contexto de terapia, a mera análise funcional do cliente pode não ser vantajosa para o tratamento por si só. 

            Muitas pesquisas mostram a influência do comportamento verbal sobre o comportamento não verbal (Wulfert et al, 1991; Hübner et al, 2008; Arntzen et al, 2013; Martins et al, 2015; Artzen et al, 2016; Ma et al, 2017; Sundberg et al, 2018). Muitas delas mostrando como a descrição complexa de contingências, envolvendo verbais de segunda ordem, podem favorecer a ocorrência de comportamentos não verbais adjacentes e outras mostrando como o comportamento verbal pode atrapalhar a ocorrência de comportamentos não verbais relacionados.

            Quando se analisa o conceito de CRB3 da FAP também à luz da análise experimental do comportamento verbal e a contribuição que ela pode ter para a psicologia comportamental clínica, pode-se entender que o CRB3 precisa ser analisado funcionalmente para que se pondere se ele é realmente terapêutico para os(as) clientes ou não.

            Enquanto o CRB1 e o CRB2 não possuem topografias específicas, o CRB3 possui. Ele é, essencialmente, a análise funcional de um comportamento feita pelo(a) próprio(a) cliente. E aqui mora um dos maiores problemas: para determinados(as) clientes, analisar funcionalmente o próprio comportamento pode ser um CRB1. O foco da FAP, como dito no começo do texto, é a interação entre terapeuta e cliente como meio de gerar mudanças e, para isso, ambas as partes precisam estar totalmente entregues ao processo de terapia. Um(a) cliente que analisa demais, que racionaliza demais, que traz muitas teorias e interpretações sobre si mesmo, embora topograficamente seja confortável de atender e, sobretudo se o terapeuta tende a concordar com o(a) cliente está dizendo, dê até a sensação de que a terapia está sendo um sucesso, na realidade pode ser um comportamento de esquiva e fuga do cliente de entrar em contato genuíno e íntimo com o terapeuta em sessão.

            Ao contrário, um(a) cliente que não tem qualquer repertório verbal de auto-relato satisfatório, a ponto de ter dificuldade de descrever as coisas mais simples que acontecem na sua vida com coerência entre aquilo que é vivido e aquilo que é dito, pode ser beneficiado se tiver análises funcionais modeladas e instaladas em seu repertório. Aqui, o CRB3 se torna, então, um CRB2. 

            Nos dois exemplos muito breves que trouxe, associado ao que a literatura da FAP e da análise experimental do comportamento verbal nos mostra, categorizar CRB3 como um CRB independente dos conceitos de CRB1 e CRB2 parece, grosseiramente falando, inútil: ele se reduz a um CRB1 ou a um CRB2. Afinal, se o comportamento verbal é um comportamento operante como qualquer outro, apenas com a necessidade de uma mediação social arbitrária de um ouvinte especificamente treinado pela comunidade verbal a fazê-lo (Skinner, 1957), ele é mais um comportamento a ser analisado pelo terapeuta. 

            Analisar o comportamento verbal não só pelo seu conteúdo, mas pela sua função pode ser um dos caminhos para um tratamento com maior probabilidade de sucesso. Caso a análise funcional que o(a) cliente esteja fazendo de si mesmo(a) seja um CRB1, o terapeuta, sem querer, pode reforçar positivamente topografias que parecem melhoras, mas que na realidade em nada ajudam o(a) cliente.

            Estar presente no processo de terapia, princípio esse tão defendido pela FAP, é mais do que necessário. O(A) cliente interagindo com o terapeuta é um relação específica, que pode ser intensa, profunda, validante e curativa, no melhor sentido do termo. 

            Saber falar sobre o falar é imprescindível para qualquer analista do comportamento, seja na psicoterapia analítco-comportamental tradicional seja na psicoterapia analítica funcional. 

Referências

Arntzen, E. (2006) Delayed matching to sample and stimulus equivalence: probability of responding in accord with equivalence as a function of different delays. The Psychological Record, 56, 135-167.

Arntzen, E.; Vie, A. (2013) The Expression of Equivalence Classes Influenced by Distractors During DMTS Test Trials. Euorpean Journal of Behavior Analysis. 1(14), 151-164.

Holman, G.; Kanter, J.; Tsai, M.; Kohlenberg, R. (2022) Psicoterapia Analítica Funcional Descomplicada. Novo Hamburgo: Sinopsys Editora.

Kohlenberg, R.; Tsai, M. (2006) FAP – Psicoterapia Analítica Funcional: criando relações terapêuticas intensas e curativas. Santo André: ESETec Editores Associados.

Ma, L. M; Miguel, C. F.; Jennings, A. M. (2016) Training Intraverbal Naming to Establish Equivalence Class Performances. Journal of the Experimental Analysis of Behavior. 409-326.

Martins, L. A. L., Hübner, M. M. C., Gomes, F. P., Pinto-Portugal, M., Treu, K. E. (2015) Effect of the qualifying autoclitic “is” in conditional discrimination training and equivalence tests. Acta Colombiana de Psicología. 18(1). pp. 37-46.

Skinner, B. F. (1953) Science and Human Behavior. New York: MacMillan.

Skinner, B. F. (1957) Verbal Behavior. New York: Appleton-Century-Crofts.

Skinner, B. F. (1974) About Behaviorism. New York: Vintage Books. 

Sundberg, C. T.; Sundberg, M. L.; Michael, J. (2018) Covert verbal mediation in arbitrary matching to sample. Journal of the Experimental Analysis of Behavior.1-24.

Tsai, M.; Kohlenberg, R. J.; Kanter, J. W.; Kohlenberg, B.; Follette, W. C.; Callaghan, G. M. (2011) Um Guia para a Psicoterapia Analítica Funcional (FAP): consciência, coragem, amor e behaviorismo. Santo André: ESETec Editores Associados.

Wulfert, E., Dougher, M. J., Greenway, D. E. (1991) Protocol Analysis of the correspondence of verbal behavior and equivalence class formation. Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 56(3), pp. 489-504.

5 2 votes
Article Rating

Escrito por Renan Miguel Albanezi

Graduado em Psicologia pelo Centro Universitário Cesumar (UniCesumar), especialista em Análise do Comportamento e Psicoterapia Cognitivo-Comportamental pelo Núcleo de Educação Continuada do Paraná (NECPAR) e em Terapia Comportamental pela Universidade de São Paulo (USP). Tem como principais áreas de estudo o Behaviorismo Radical e a Análise do Comportamento com interesse em comportamento verbal, agências controladoras do comportamento, psicoterapia comportamental e psicoterapia analítica funcional.

Desmistificando a influência do Zen e clarificando o uso de mindfulness na DBT, parte 1: uma entrevista com Randy Wolbert Rōshi.

Prevenção do abuso sexual infantil

Prevenção do abuso sexual infantil: O que funciona?