Quando somente na vida adulta o cliente descobre que a “brincadeira de criança” era, na verdade, um jogo sexual transtornado análogo a abuso sexual infantil

Quando falamos de violência sexual cometida contra crianças e adolescentes, nós, enquanto psicólogos, precisamos ao fato de que, por vezes as experiências traumáticas trazidas à terapia aconteceram na interação sexual entre crianças, sem a participação imediata de adultos, e se não estivermos sensíveis a isso, podemos ser invalidantes e punitivos.

Crianças não possuem, a priori, conhecimento nem capacidade de avaliação e julgamento suficientemente desenvolvidos, para que elas, diante de situações nas quais estejam inseridas em interações sexuais não condizentes com as suas idades, saibam identificar, dar nome ao que estão vivenciando, muito menos, se comportarem em função disso, portanto, não há o menor cabimento em esperar que uma criança, nestas circunstâncias, saiba o que e por que está fazendo.

Precisamos compreender que quando se fala de interações sexuais entre crianças, estamos falando, em princípio, de JOGOS SEXUAIS comuns à idade, no sentido de muito recorrentes e até mesmo previsíveis e esperados. Os referidos jogos se dão quando as crianças apresentam interesse em explorar seus próprios corpos e os corpos alheios, em especial as partes íntimas. Este fenômeno costuma ter início por volta dos 2 anos de idade, atingir seu pico entre os 3 e os 6 anos e diminuir a partir de então.

O objetivo das crianças, quando se engajam em jogos sexuais próprios da idade, é, com frequência, sanar dúvidas. Tais dúvidas costumam fazer alusão às diferenças anatômicas entre meninos e meninas. Algumas dúvidas comuns das crianças são: “Por que o pipi é pra fora e a pepeca é pra dentro?”, “Por onde a menina faz xixi?”, “Por que a minha mãe tem pelos na pepeca e eu não?”, “Por que o meu pipi fica duro quando eu quero fazer xixi?”, e assim por diante. Daí os comportamentos de colocar mão dentro da calcinha/cueca dos coleguinhas, tirar a fralda dos bebês, querer ver e tocar nas partes íntimas dos adultos de confiança, entre muitos outros comportamentos que deixam pais, cuidadores e professores apavorados!

Além disso, ainda há o fato de que no ato de explorar o próprio corpo, em algum momento as crianças descobrem que quando tocam/ massageiam/ esfregam as partes íntimas, isso produz sensações que, embora elas não saibam nomear, são tão reforçadoras que elas voltam a fazer, chegando a, eventualmente, fazer com os coleguinhas/ irmãos mais novos, como se fosse uma brincadeira, pois do alto do pouco tempo de vida, pouca informação e falta de repertório, é o que lhes parece, apenas uma brincadeira.

Neste ponto, é importante salientar que, embora do ponto de vista da criança, seja apenas uma brincadeira, isso precisa de intervenção, sim, mesmo sendo evidente a falta de entendimento, de malícia, de erotismo. Até porque, não intervir pode implicar em colocar a criança em risco de ser abusada por adultos oportunistas e criar condições para que tal comportamento escale. Lembrando que intervenção não significa punição, no entanto, isso é assunto para outro artigo!

Toda esta introdução tem o objetivo de deixar claro do que é que não vamos tratar aqui. Não estamos falando de jogos sexuais típicos da infância, inofensivos, que acontecem de forma leve, breve, esporádica, em tom de brincadeira e que não prejudicam as crianças envolvidas. Estamos falando de JOGOS SEXUAIS TRANSTORNADOS e de seus impactos nas crianças/ futuros adultos envolvidos, impactos estes que eventualmente culminarão na busca por terapia.

De forma simplista, podemos entender os jogos sexuais transtornados como aquelas interações sexuais ocorridas de criança para criança, e que guardam certa (ou muita) semelhança com abusos sexuais corridos de adulto/ adolescente contra criança em termos de modo de agir e das consequências geradas.

Feitas estas considerações, a partir daqui, para fins didáticos, usarei os termos “criança dominante” e “criança dominada” para falar sobre o tema, mas, é importante destacar que estes papeis podem ser intercambiáveis de ocasião para ocasião a depender da frequência dos eventos, da presença de mais crianças e até mesmo do acesso destas crianças à pornografia no decorrer do tempo.

Quando falamos de JOGOS SEXUAIS TRANSTORNADOS, estamos falando de interações sexuais tipicamente adultas, como sexo oral, tentativa de penetração, beijos tórridos, inserção e objetos nas partes íntimas de outra criança, exposição de pornografia à criança dominada, tudo isso, permeado por coerção física (violência), coerção moral (chantagem e ameaça), valendo-se a criança dominante, de uma suposta “autoridade” sobre a criança dominada, geralmente, em função da diferença de idade. Importante pontuar que estes comportamentos tão destoantes com a infância não nascem com a criança dominante, são aprendidos, frequentemente e infelizmente, por experiência própria.

Daí a necessidade de se criar um termo específico, que pudesse deixar evidente que nem todo jogo sexual infantil é automaticamente prejudicial às crianças, mas que há sim, uma categoria de jogo sexual muito prejudicial, a dos jogos sexuais transtornados, que vem, necessariamente, de uma exposição prévia da criança dominante à conteúdo erótico e/ou a experiências anteriores de abuso sexual infantil.

Topograficamente falando, embora os jogos sexuais transtornados se pareçam com os abusos sexuais infantis, é incoerente colocá-los na mesma categoria, dada a pouca ou nenhuma capacidade de autocontrole e avaliação das consequências das crianças envolvidas neste fenômeno, diferente dos adultos que escolhem suas vítimas sabendo exatamente o que fazem, por que fazem e premeditam e planejam tudo para não serem pegos.

A criança que replica com outras crianças aquilo que viveu, ouviu ou assistiu, não o faz sabendo o que está fazendo, apenas fazem, tal qual um filhote de cachorro que reproduz um truque que lhe foi ensinado pelo seu tutor e que, diante de determinados estímulos, em determinados contextos, repete o truque. No máximo, a criança sabe que aquilo precisa ser mantido em segredo e que se descobrirem, será punida, mas sua compreensão do que está fazendo acaba aí.

Fato é que criança alguma tira a ideia de coagir outra criança a se engajar em comportamentos sexuais claramente adultos, “do nada”. Nunca é do nada! Daí o choque quando esta criança, na vida adulta, descobre que aquilo que fez ou aquilo ao qual foi submetida, não foi apenas uma brincadeira de criança, e é neste momento, após muitas buscas pela internet, que, eventualmente, estas pessoas chegam a nós, psicólogos, consumidas pela culpa, pela vergonha, pela raiva e as vezes, pelo desejo de morrer.

Daí a importância de nós, enquanto psicólogos, nos posicionarmos favoravelmente às iniciativas escolares que visam promover o debate e a consequente prevenção contra abusos tanto entre as crianças quanto entre os adolescentes, em detrimento da discordância dos pais, que muitas vezes acreditam que “educação sexual” é sinônimo de “ensinar meu filho a transar” por pura falta de conhecimento, no entanto, isto também é assunto para um outro artigo!

Falando mais especificamente sobre a nossa atuação clínica com pessoas que nos buscam relatando que quando crianças foram abusadas por outras crianças, precisamos ficar muito sensíveis aos relatos e às emoções apresentadas e descritas pelos nossos clientes para que não nos deixemos levar pela nossa tendência de amenizar os fatos por terem sido praticados por outra criança, como se isso tornasse o fato menos grave, ou, como se isso “não justificasse o trauma”.

Bem pelo contrário, do ponto de vista da vítima, o fato de envolver uma outra criança, pode ser um peso a mais para ela carregar. Quando o ocorrido envolve irmãos/primos/outras pessoas muito próximas, com muito vínculo, isso se torna especialmente dramático, seja porque a pessoa buscou pela terapia porquê de alguma forma o assunto veio a tona e isso inaugurou uma crise familiar, seja porque ela passou a vida inteira tentando ignorar o fato, mas,  de repente assistiu a um vídeo na internet falando sobre “crianças que abusam de crianças” e todas as lembranças e emoções emergiram de uma só vez, seja porque ela entende, racionalmente, que a outra criança envolvida não sabia o que fazia, mas ela colhe, até hoje, os frutos dos jogos sexuais transtornados aos quais foi submetida.

Os danos gerados a partir da ocorrência destes episódios são imensuráveis, mas aqui vão alguns exemplos:

Percepção distorcida da própria imagem.

Sentimento de culpa por ter se engajado em atividades sexuais não condizentes com a infância, acompanhada de ideias persistentes como “eu deveria saber”, “eu deveria ter impedido”, “eu deveria ter fugido”, “eu deveria ter contado”.

Pensamentos recorrentes relacionados a tristeza por ter tido sua “inocência” tirada por outra criança.

Aversão a crianças e tudo que remete a elas.

Conflitos relacionados à maternidade/ paternidade por medo de ter filhos e que os filhos façam ou passem por isso.

Pensamentos intrusivos relacionados à pedofilia.

Dúvidas quanto à própria orientação sexual.

Repulsa por suas partes íntimas e tudo que lhes diz respeito, logo, prejuízos na vida sexual e até mesmo na manutenção da higiene íntima.

Dificuldade de manter relacionamentos amorosos e relações sexuais, ainda que de forma breve e descompromissada.

Profundo e constante sentimento de raiva e nojo de si e da outra (então) criança envolvida.

Quanto à criança ora dominante, hoje, adulto, acrescente a tudo isso, o desejo de morrer, devido a culpa proveniente do entendimento do que fez e do que pode ter gerado na outra pessoa.

Dito tudo isso, concluo fazendo menção ao meu artigo anterior, para ser mais específica, a esta parte: (…) é muito temerário colocar o sofrimento num hanking de acordo com a quantidade e qualidade (…) dos jogos sexuais transtornados sofridos.

Mesmo que teoricamente, não possamos enquadrar o que houve com aquela pessoa como abuso sexual, na prática, é isso, topograficamente falando e em termos de sequelas, de consequências aversivas com as quais esta pessoa já lidou e vai seguir lidando, foi abuso sexual, e quem somos nós para dizermos que não foi! Para aquela pessoa, naquele momento de fragilidade, de exposição extrema, qualquer fala que sugira que “não é bem assim” porque se tratava de uma outra criança, poderá ter um efeito deletério, revitimizante, invalidante.

Obviamente, com o tempo, havendo ocasião e oportunidade para isso, pode ser interessante, útil, terapêutico mesmo, explicar e entender todas estas minúcias, mas nunca, jamais, em hipótese alguma, dando a entender que o sofrimento não se sustenta ou não se justifica, porque “foi só uma brincadeira que saiu de controle” ou que “foi só uma brincadeira de criança”, e sim, há psicólogos que falam este tipo de coisa, esta fala, por exemplo, eu ouvi diretamente de uma cliente que chegou a mim, depois de um hiato de mais de 3 anos sem buscar por terapia, pois, na primeira vez que resolveu falar sobre o assunto para uma psicóloga, foi isso que ouviu! Sorte que ela conseguiu tentar de novo, mas, e quem não consegue?

Por fim, deixo a indicação do conteúdo da Leiliane Rocha (@leilianerochapsicologa), psicóloga especialista em educação sexual, emocional e prevenção ao Abuso sexual, uma das maiores autoridades nacionais neste assunto. Foi com ela que aprendei o termo “jogos sexuais transtornados”.

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Julia Molina

Escrito por Juliana Molina Constantino

34 anos, paranaense, mãe, Advogada (OABPR89037) graduada pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná em Curitiba/PR em 2014, Psicóloga (CPR 08-38459) Analista do Comportamento com ênfase no atendimento a adultos vítimas de abuso sexual infantil.

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