Desmistificando a influência do Zen e clarificando o uso de mindfulness na DBT, parte 1: uma entrevista com Randy Wolbert Rōshi.

Este texto é parte 1 da série: Desmistificando a influência do Zen[1,2] e clarificando o uso de mindfulness[3] na DBT. O objetivo da parte 1 é discutir a exata influência do Zen no desenvolvimento da DBT e como o(a) terapeuta DBT deve se guiar em relação a isso. A parte 2 pretende revisar e resumir, citando as apropriadas fontes, o uso prático de mindfulness na DBT.

Marsha M. Linehan Rōshi ao lado de Willigis Jäger Rōshi. Fonte: www.emptycloudsangha.com. Todos os direitos reservados.

Zazen não é meditação passo-a-passo.” Dogen Zenji, Fukanzazengi[4].

Existe um dizer no Zen: ‘mente de principiante’. Mente de principiante significa que cada pequeno momento é a primeira experiência que você tem daquele momento. Cada novo momento é um começo. Agora, a única coisa que existe é este momento. Milagroso, se você parar para pensar. Apenas este momento, e nada mais. Mente de principiante é reconhecer isso. O universo inteiro está nesse momento. Isso é impressionante para mim. Eu apenas me jogo nele.” Marsha Linehan, Building a Life Worth Living[5].

Introdução

Terapeutas DBT sabem: há uma forte influência do Zen-Budismo na criação e desenvolvimento da Terapia Comportamental Dialética. A criadora da DBT, Marsha Linehan, praticou e aprendeu Zen por décadas, a ponto de tornar-se uma Mestra Zen (Rōshi[6]). Esta prática informou e influenciou aspectos importantes do tratamento, e esta influência é o objeto de discussão do presente ensaio. Do Zen surgiram as habilidades centrais de mindfulness, as estratégias de aceitação (1/3 a 1/2 do tratamento, dependendo do ponto-de-vista), estratégias de validação, habilidades de aceitação da realidade (aceitação radical, entre outras) e até mesmo as estratégias dialéticas e visão dialética de mundo. Como Linehan escreveu e disse inúmeras vezes, havia a necessidade de equilibrar as estratégias de mudança comportamental, provindas da análise do comportamento e terapias cognitivo-comportamentais, com uma abordagem de aceitação. Para criar esse outro polo de intervenções e estratégias, Linehan praticou e estudou durante anos práticas de aceitação. Por qual via, principalmente? Pela prática do Zen[7].

Quando pensei pela primeira vez em escrever este texto, meu objetivo era mostrar que a influência do Zen era histórica, distante, e que de certa forma, nada tinha a ver com a prática da DBT como é feita atualmente. Para minha surpresa, após reler a literatura principal e conversar com Randy Wolbert, estou convencido exatamente do oposto: o impacto da prática pessoal de meditação de Marsha é grande demais para separarmos a questão em “uma influência histórica” ou “influência no desenvolvimento” versus a prática corrente da DBT.  

Ao mesmo tempo, é importante deixar muito claro que terapeutas DBT não usam o Zen de qualquer maneira durante o curso do tratamento, a grande maioria não é treinada em meditação Zen-Budista e nem é praticante de Zen (cabe até uma pergunta: será que terapeutas DBT e psicoterapeutas em geral praticam Zen, são budistas, são ateus, tem alguma religião?). Nem se exige de maneira alguma que terapeutas DBT tenham qualquer tipo de prática espiritual ou religiosa. Deixar isso explícito também é objetivo deste texto. Agora, que os terapeutas DBT devem (ou deveriam?) praticar mindfulness, espero que também fique claro.  

Para complicar ainda mais o assunto, Marsha Linehan é uma professora Zen (uma Rōshi) e conduzia até recentemente retiros Zen intensivos com duração de dias, nos quais pessoas se juntavam (uma boa parte, terapeutas DBT) para a prática intensiva de meditação Zen (“zazen”) e outras práticas.

Por ser este um assunto espinhoso, cheio de sutilezas e complexidades, há críticas (em grande parte válidas, na minha opinião) sobre a possibilidade de se misturarem assuntos como religião e psicoterapia, decidi conversar com Randy Wolbert Rōshi, sucessor de Marsha Linehan na condução da prática Zen da Empty Cloud Sangha[8], a comunidade/linhagem específica a que pertence Marsha Linehan. Acredito que Randy esteja na posição perfeita para esclarecer estas questões, já que além de um Rōshi e aluno Zen de Marsha por mais de uma década, ele também é um terapeuta DBT certificado e Treinador DBT da Behavioral Tech, a empresa americana encarregada de conduzir o treinamento original em DBT criado por Marsha, há cerca de 20 anos.

Aqui estão algumas passagens da entrevista, que considero mais importantes para discutir essas questões.

Entrevista com Randy Wolbert, Rōshi

Alexandre: “é esperado que terapeutas DBT saibam que o Zen teve uma grande influência no desenvolvimento do tratamento. Ao mesmo tempo, muitos podem estar se perguntando qual foi exatamente essa influência. Você pode comentar essa questão?”

Randy: “claro. Bem, a principal dialética[9] na DBT é entre aceitação e mudança. Mudança, claro, tem a ver totalmente com a terapia comportamental [Behavior Therapy]. Marsha estava procurando algo para equilibrar o tratamento para o lado da aceitação. Ela procurou várias práticas que estavam disponíveis e em primeiro lugar pensou em usar prece contemplativa cristã (uma prática do misticismo cristão). Mas ela pensou que se começasse a falar de Deus e de Jesus, algumas pessoas iam ficar muito animadas com isso e outras ficariam muito…  E ela era uma cientista e queria ser levada a sério. Então ela pediu conselhos para alguns amigos que disseram para averiguar a possibilidade do Zen. Isso era no começo da década de 1980 e não havia muito de Zen por aí, ainda mais em países do ocidente. Ela encontrou um monastério no Monte Shasta na Califórnia e foi até lá. E ela disse que encontrou o que estava procurando assim que chegou e que Zen tem tudo a ver com aceitação radical e a prática de meditação é algo que em si mesmo se direciona à aceitação. E ela ficou convencida de que se ela conseguisse ensinar seus clientes a meditar, eles iriam melhorar mais rápido. 

A: “então a influência exata é sobre o polo da aceitação e como ela usou a prática do Zen para desenvolve-lo na terapia.”

R: “sim. Se ela tivesse começado a desenvolver o seu tratamento alguns anos mais tarde, talvez… Esse era o mesmo momento em que Jon Kabat-Zinn estava desenvolvendo Mindfulness-Based Stress Reduction (MBSR), e a maioria dos tratamentos baseados em mindfulness são baseados na meditação vipassana. A DBT é um pouco única nesse sentido, de que ela usou a prática do Zen.”

A: “devido a essa influência importante, podemos dizer que a DBT é budista, ou a DBT é Zen, ou que terapeutas DBT usam o Zen na terapia?”

R: “bem, a questão sobre o Zen é que Zen é uma prática. A palavra ‘Zen’ significa ‘meditação’ em japonês. E a prática principal do Zen, o zazen… za significa sentar-se, e zen meditação, então significa meditação sentado. Então na DBT temos a expectativa de que as pessoas vão aprender todos esses elementos da meditação, que são na verdade as habilidades centrais de mindfulness [core mindfulness skills] e as habilidades de aceitação da realidade. O Zen tem muitas de suas raízes no Budismo. Também tem raízes do Taoísmo e no Confucionismo. Sobre se o terapeuta usa Zen na terapia, é assim: toda a DBT tem marcas do Zen, então é impossível dizer ‘ok, vamos fazer DBT sem nada de Zen aqui, vamos extrair isso’. As pessoas não estão cientes de que algumas das coisas que estão ensinando e fazendo na DBT vieram do Zen, por exemplo várias habilidades, coisas como validação por exemplo, tem muito, muito a ver com a prática do Zen. Mas você pode dizer que a DBT não é budista. Você não precisa acreditar em nada para ser terapeuta ou paciente de DBT. Marsha e Willigis falavam repetidamente que o Zen é uma prática[10], não uma religião, então você pode acreditar no cristianismo e praticar Zen, acreditar no judaísmo e praticar Zen, acreditar na religião muçulmana e praticar Zen[11].” 

A: “então minha terceira questão é por quê tantos terapeutas DBT vão para retiros Zen nos EUA (aliás, isso é verdade ou é uma impressão que tenho?)”

R: “sua impressão é incorreta. Quando você olha para o número de terapeutas DBT digamos, nos EUA, quer dizer, tem milhares de pessoas que se dizem terapeutas DBT. Muito, muito poucas realmente vão para retiros Zen. E no começo, quando Marsha fazia esses retiros, ela nem os chamava de retiros Zen. Ela apenas chamava de retiros de mindfulness. O que ela queria fazer era criar a oporturnidade para que os terapeutas DBT pudessem se cuidar, e é isso que um retiro faz. É realmente, como dizemos, terapia para o terapeuta. Então quando Marsha estava liderando esses retiros tinha um monte de gente que queria participar apenas porque era a Marsha e queriam conhecê-la e eu vou te dizer, algumas pessoas ficaram totalmente, tristemente desapontadas quando chegaram lá e descobriram que era um retiro de silêncio e que elas não ouviriam a Marsha falar o dia inteiro.”

A: [risos]

R: “sabe, eu tenho visto as mesmas pessoas nos retiros por 10 ou 15 anos e algumas pessoas vão apenas a um retiro e você nunca mais as vê. E tudo bem! Apenas queremos oferecer a oportunidadade para as pessoas virem. E dentro disso existe um grupo de pessoas que querem praticar mais seriamente, se tornar alunos e esses são os que manterão a linhagem viva em algum momento.”

A: “achei suas respostas bem interessantes, e elas me levam a uma outra questão: sobre o treinamento de mindfulness para terapeutas DBT. Então o retiro tem a função de ‘terapia’ e cuidado para os terapeutas. Também tem a função de ser treinamento de mindfulness?

R: “a questão sobre mindfulness é que, comparando [mindfulness] com o lado oposto da terapia comportamental, mindfulness tem uma natureza muito experiencial e queira você ou não um retiro Zen vai te dar uma experiência de mindfulness. Nesse sentido, sim, você terá a experiência da prática de mindfulness. Em relação a estar apto a ensinar essas habilidades, Marsha não requeria que seus alunos ou outras pessoas treinadas por ela tivessem sua própria prática de mindfulness no começo, mas depois ela começou a pedir isso. Ela disse que os melhores professores são os que usam as habilidades eles mesmos, não apenas as habilidades de mindfulness, mas todas as habilidades. Seus pacientes vão se beneficiar muito mais de alguém que use as habilidades ele mesmo do que de alguém que está lendo elas em um livro.” 

A: “eu sei que no mundo da pesquisa e ensino em mindfulness existe esse critério de corporificar a prática [embodiment; ver nota 12]. E eu percebo que quando ensinamos habilidades da DBT que somos treinados a praticar intensamente [isso é muito mais efetivo em relação aos clientes compreenderem e praticarem por si mesmos]. Você acha que existe uma maneira ótima de treinar os terapeutas em habilidades de mindfulness

R: “pode haver várias maneiras. Você provavelmente terá que encontrar a sua. Se você quiser praticar Zen, quer dizer, que são as habilidades centrais de mindfulness da DBT, tudo começa com Zazen. É praticar, ter instruções sobre a prática e então como fazer para torná-la uma parte da sua rotina diária. Se você praticar diariamente, será impossível não estar muito mais atento [mindful] sobre o resto da sua vida. Como dizemos, você mergulha nesses momentos de presença [drop into those moments of mindfulness], quando você subitamente está presente… os nossos cérebros estão a todo momento indo para diferentes lugares. Temos esses narradores internos que estão sempre comentando sobre tudo e a gente simplesmente para de prestar atenção no que está acontecendo, e então de repente você tem a oportunidade de mergulhar [drop into] no presente momento. Então eu acho que a melhor coisa é conseguir que as pessoas pratiquem regularmente. O estudo que fizemos com a Karina [Solovieff; ver nota 13] e o Miguel mostrou que as pessoas que faziam parte do grupo experimental [e tinham aulas e eram ensinadas, versus apenas breves instruções por escrito] tinham muito mais chance de ter praticado regularmente. Portanto eu certamente recomendo algum tipo de treinamento em mindfulness baseado em Zen [Zen-based mindfulness training]. Mas acima de tudo, eu recomendo que as pessoas pratiquem.” 

A: “você quer dizer praticar mindfulness e portanto se as pessoas praticassem de outra forma, por exemplo aprendendo em grupos MBSR e mantivessem uma prática regular serviria à mesma função. O que você acha disso?”   

R: “sim. Práticas como o Zen não são para todo mundo e às vezes as pessoas têm mais sucesso com outras práticas. Eu sou a favor de qualquer coisa que faça as pessoas praticarem [mindfulness] regularmente. Mas como estamos falando de DBT, como uma parte central veio do Zen, por quê não dar uma chance[14]? Marsha sempre perguntava para as pessoas se elas queriam aprender mindfulness por razões espirituais ou psicológicas. Você pode querer praticar por uma, outra ou ambas. Para propósitos psicológicos, 5 minutos de prática diária vai te dar todos esses benefícios[15]. Se, por outro lado, você quiser embarcar em uma jornada mais espiritual, então você tem que fazer coisas… provavelmente ir a retiros, ter um(a) professor(a).”

A: “ok. Para terminar esse ponto: ficou claro que é importante que o terapeuta DBT pratique mindfulness. Você falou bastante sobre isso. Para poder ensinar as habilidades de maneira hábil. Por outras razões também?”

R: “apenas que você pode ter uma vida melhor. Quero dizer, as razões que a Marsha colocou nas metas da prática de mindfulness [16]. Como diminuir o sofrimento, aumentar a alegria, ter mais controle sobre sua mente, ver a realidade como ela é. É assim, quem não iria querer isso? Então a questão, novamente, é praticar um pouco diariamente, 5 minutos por exemplo. Agora, quando eu tive essa discussão com Marsha uns anos atrás, quando ela estava escrevendo a segunda edição do Manual do Treinamento de Habilidades, sobre as metas da prática de mindfulness, eu disse: ‘Marsha, mas a meta da prática de mindfulness é praticar mindfulness’ e ela disse ‘eu sei, mas se eu não colocar isso aqui as pessoas não vão querer praticar[17].’” 

A: “então a importância da prática é a mesma para terapeutas e clientes, as pessoas que estão em terapia DBT, com desregulação emocional, você diria que é pelas mesmas razões, exceto ensinar as habilidades de mindfulness?” 

R: “sim.” 

A: “ok, eu tenho apenas mais algumas perguntas. Você acha que as pessoas confundem essas coisas, por exemplo, pensar que a DBT é budista ou então por exemplo, terapeutas confundindo as coisas e usando práticas do Zen, algum ritual ou algo estranho ou bizarro durante uma sessão de terapia?” 

R: “é mais o problema oposto, em que as pessoas vêem as habilidades centrais de mindfulness e elas sabem que têm que ensina-las porque é parte do currículo, mas elas apenas… não tem outro jeito de dizer isso senão dizer que elas fazem um trabalho meia-boca.”

A: “eu já vi isso acontecer.” 

R:  “quer dizer, é a mesma coisa com as habilidades de aceitação da realidade, em particular aceitação radical, estar disposto [willingness], e direcionar a mente [turning the mind]. As pessoas fazem realmente um trabalho ruim ensinando essas habilidades se elas não as praticam. Mas quado você tem essa experiência, é muito mais fácil falar sobre ela.”

A: “sim. Certo, para finalizar, você pode comentar sobre essa fato interessante: Marsha foi uma cientista. Marsha foi uma Rōshi Zen.”

R: “o fato é que Marsha era uma cientista e queria verificar as coisas que ela aprendeu experiencialmente através da prática do Zen, e ela queria verificar isso cientificamente, o que faz muito sentido. O Dalai Lama é famoso por dizer que se a ciência comprovar que qualquer parte de suas crenças espirituais ou religiosas não é verdadeira, então é hora de arranjar novas crenças espirituais ou religiosas[18]. Pat Hawk, um dos professores [Zen] de Marsha disse que a chave para lidar com o sofrimento é ter a capacidade de manter duas coisas que aparentam ser realmente opostas na mente ao mesmo tempo sem tentar resolver o dilema. Eu acho que essa é a conexão entre a ciência e o Zen. É assim, você tem duas coisas, mas você não precisa tentar resolver isso.”    

A: “muito bem. Muito obrigado pelas suas respostas.”

Notas finais

1: Ao discutir tópicos especialmente difíceis e complexos, como a influência da prática Zen na DBT, uma nota de esclarecimento faz-se necessária. Minha intenção aqui não é explicar e falar sobre Zen-Budismo per se, mas aprofundar a discussão sobre a história do desenvolvimento da DBT e a influência que esta prática teve na criação do tratamento. Me encontro em uma posição difícil; embora acredite que esteja em uma ótima posição para contribuir para a discussão, por ser tanto um terapeuta DBT e trainer-in-training da BehavioralTech/DBT Brasil como um aluno de Zen da Empty Cloud Sangha, quero deixar claras as minhas limitações como um praticante, um aluno iniciante, por mais que alguns anos tenham se passado desde que iniciei a prática. Dizer que sei o que é o Zen seria, no mínimo, arrogante, e uma exposição clara da minha completa ignorância sobre o assunto. Portanto, qualquer coisa que eu traga sobre isso serão os comentários do professor (Rōshi) Randy Wolbert, ou citarei fontes apropriadas ao traduzir termos e evitarei tentar explicar conceitos, achando melhor deixar para os professores, mestres, acadêmicos, que citarei quando apropriado. Devido à necessidade de explicar nomes e termos do Zen ou aprofundar alguma discussão que seja tocada superficialmente no texto, me darei ao luxo de possivelmente ser redundante, repetitivo e me alongar nessas notas. Pode ser uma boa ideia ler o texto e a entrevista de uma vez antes de se deter nelas. Junto aos comentários relevantes sobre aspectos do texto e referências da literatura, estas notas se propõe a definir alguns termos japoneses que inevitavelmente serão utilizados nesse texto que se referem ao Zen, começando pelo próprio termo “Zen” na nota abaixo.

2: Zen significa: “escola do budismo surgida na China do sVI d.C. e levada para o Japão no sXII, onde granjeou grande importância cultural até os dias atuais, caracterizada pela busca de um estado extático de iluminação pessoal (satori), equivalente a um rompimento deliberado com o pensamento lógico, obtido por meio de práticas de meditação sobre o vazio ou reflexão a respeito de absurdos, paradoxos e enigmas insolúveis (koans); zen-budismo”. (Dicionário Oxford Languages). O mesmo dicionário traz, como segunda definição: “adjetivo. Muito tranquilo e confiante.” Vemos aqui o uso informal e corriqueiro do termo Zen, incorreto do ponto de vista da prática/religião, que se deu a partir da inserção da cultura japonesa e da prática do Zen no ocidente (EUA, inicialmente). A palavra em língua japonesa “Zen” é uma tradução do termo em chinês “ch’an”, que é uma tradução do sânscrito “dhyana”, que significa “meditação”. (Dumoulin, 1963). Dhyana: “Hinduísmo, Budismo, Jainismo: Meditação. (Dicionário Merriam-Webster, disponível em: https://www.merriam-webster.com/dictionary/dhyana). Tanto meditação quanto mindfulness serão melhor definidos na parte 2 desta série. Para um estudo aprofundado da história do Zen-Budismo, ver Dumoulin, 1963. Para uma introdução ao Zen pelo próprio Zen, ver Suzuki, 2019.

3: Mindfulness: o termo mindfulness tem inúmeras definições (Tatton-Ramos, 2016). Vou escolher aqui 3 delas, úteis para este artigo. Na parte 2, aprofundarei a definição do ponto de vista da DBT. (1) “a prática de estar atento [aware] do seu corpo, mente e sentimentos no momento presente, dita capaz de criar um sentimento de calma.” (Cambridge Dictionary; tradução livre pelo autor). ( 2) “Mindfulness tem a ver com a qualidade da consciência ou a qualidade da presença que uma pessoa traz à vida cotidiana. É uma forma de ela viver desperta, com os olhos bem abertos. Em termos de um conjunto de habilidades, a prática de mindfulness é o processo intencional de observar, descrever e participar na realidade no momento, com efetividade (i.e., usando meios hábeis) e de modo não julgador.” Linehan, 2018b, p. 148. (3) “(…) prestando atenção de uma forma específica: intencionalmente, no presente momento, sem julgamentos.” Kabat-Zinn, 2013, p. xxvii.

4: Frase retirada de um conhecido texto do Mestre Eihei Dogen (1200-1253), celebrado como o fundador da escola Soto Zen (“Soto-shu”). Existem inúmeras traduções deste antigo texto. A que usei, de um braço da escola Soto no Brasil, liderada pela Monja Coen Rōshi, está disponível aqui: https://www.zendobrasil.org.br/wp-content/uploads/2021/03/Fukanzazengi_site.pdf. O intuito de colocar esta afirmação aqui, de que “Zazen [meditação sentada, sentar-se em zen, principal prática do Zen-Budismo] não é meditação passo a passo”, vem para ilustrar a ideia da diferença importante (não abordada novamente neste texto) entre mindfulness, meditação, e meditação no Zen Budismo (zazen). 

5: Linehan 2021, p. 275-276. Tradução livre da passagem feita por mim.  

6: Rōshi (老師): “velho professor” (old teacher; old master). (Em É um termo honorífico em japonês utilizado para se referir a um professor altamente venerável. Fonte: Encyclopedia Of Buddhism. Disponível em: https://encyclopediaofbuddhism.org/wiki/R%C5%8Dshi.  

7: A história do desenvolvimento da DBT e da prática Zen por Marsha, de sua integração na DBT, é contada de maneira passageira no manual da DBT (Linehan, 1993) e nos manuais de treinamento de habilidades (Linehan, 2018a; Linehan, 2018b). É também contada de maneira muito mais detalhada, incluindo todo o treinamento psicológico, comportamental, científico e prática do Zen em sua autobiografia, ainda não traduzida para o português (Linehan, 2021).  

8: A Empty Cloud Sangha (do alemão, Leere Wolke) é a comunidade ou escola Zen a que pertencem Marsha Linehan e Randy Wolbert, criada por Willigis Jäger na Alemanha, após ter aprendido e praticado Zen no Japão. Nas linhas seguintes exporei um pouco da história dessa comunidade de praticantes e desta linhagem Zen de Marsha, e dessa forma quero mostrar que a origem desta prática não vem apenas do “Zen norte-americano.” Marsha praticou Zen por décadas sob orientação de Willigis Jäger (1925-2020). Willigis foi um monge católico beneditino, cuja prática espiritual era focada na prece contemplativa, ou seja, na parte mística do Cristianismo. Sua prática e ensinamento espiritual é considerado “transconfessional”, ou “interreligioso” (ou seja, uma prática baseada em aspectos espirituais, mas não tanto institucionais-religiosos, o que inclusive o levou a receber sanções da Igreja Católica). Willigis aprendeu e praticou Zen (também considerado uma escola mística dentro do Budismo) com um professor japonês (Yasutani Rōshi) no Japão e com um mestre chinês (Jing-Hui). A escola criada por Yasutani Haku’un Rōshi (1885-1973) é a Sanbô-Kyôdan, a partir de duas escolas Zen muito tradicionais (Soto e Rinzai). Yasutani foi um professor controverso no Japão; fez duras críticas aos praticantes de sua época (de que haviam perdido o espírito da prática e apenas dedicavam-se a rituais vazios) (ver o artigo por Paul D. Jaffe, de 1993, disponível em http://www.thezensite.com/ZenEssays/HistoricalZen/Yasutani_Roshi.html). Portanto, fundou uma escola à parte, que seria a Sanbô-Kyodan, pequena no Japão, porém que espalhou-se pelo ocidente, uma das características principais tendo sido a diminuição da separação entre praticantes monges e leigos (nomes importantes como Robert Aitken Rōshi pertencem a esta linhagem). Ver: http://www.sanbo-zen.org/index.html. Assim sendo, apesar de Marsha Linehan ter passado alguns meses em um monastério na California (Shasta Abbey) na década de 1980, onde ela praticou e aprendeu Zen foi na Alemanha, com um professor (Willigis) que praticou e estudou Zen por anos no Japão e China. Acredito ser correto localizar aí mesmo a origem da prática Zen de Marsha, e não no que se tornaria o Zen americano. Ver também o site da Fundação Willigis Jäger, abaixo nas referências.

9: Dialética: “Filosofia: em sentido bastante genérico, oposição, conflito originado pela contradição entre princípios teóricos ou fenômenos empíricos.” (Dicionário Oxford Languages). Na DBT, dialética é o nome da visão básica de mundo sobre a qual se apóia a teoria da personalidade borderline, da desregulação emocional, desenvolvida por Marsha Linehan ao criar a DBT nas décadas de 1970 e 1980. Segundo esta visão, a realidade é sistêmica: as coisas são interdepententes e existe uma relação importante da parte com o todo (princípio da interdependência e totalidade); além disso, os fenômenos também são polares, as polaridades (“tese”e “antítese”) eventualmente se integrando (“síntese”) e criando novamente outras polaridades. Uma das noções que permeia toda a DBT é esta de que coisas aparentemente opostas podem coexistir e serem verdadeiras ao mesmo tempo (Linehan 1993, p. 39-45). 

10 Aqui acredito que possa haver uma discussão profunda entre os estudiosos e mestres sobre se Zen é uma religião ou uma prática. A própria visão da Sanbô-Kyôdan é esta professada por Randy, Marsha e Willigis (todos professores dessa linha). Para uma discussão desta questão pelo atual abade dessa linhagem (Yamada Ryôun Rōshi), ver https://ssl.sanbo-zen.org/artikel-1_e.html. Ao mesmo tempo, assim como em outras tradições do Budismo, no Zen há alguns conceitos e práticas que são professados: as Três Jóias, os quatro selos do Dharma, as Quatro Nobres Verdades, etc. A prática é enfatizada com o “objetivo” de libertar-se do sofrimento, alcançando o estado de “nirvana”. De fato, alcançar um estado de transcendência ou libertação do sofrimento me parece ser um objetivo religioso, mas como está descrito na nota 16, o aluno que começa a praticar o Zen é frequentemente orientado a abrir mão de alcançar qualquer coisa. Não desejo me estender nesse ponto, porém noto que há uma interessante dialética aí. Para mais conceitos importantes do Budismo na prática específica do Zen, ler Aitken, 1982, além das outras referências citadas neste ensaio.

11 Algo que Randy não disse, mas acredito que valha a pena adicionar: é possível também ser ateu e praticar Zen. Recentemente tive o prazer de compartilhar vários dias de um retiro da Empty Cloud Sangha com um grande amigo e colega de profissão que é ateu. Essa ideia de que Zen pode ser praticado por pessoas de qualquer religião aparece em diversos lugares. Conferir este texto do Zen Center of Georgia (https://www.zen-georgia.org/ZenFaq.php). Diversos praticantes cristãos (especialmente monges católicos) praticaram Zen. O próprio Willigs Jäger, professor da Marsha, é um exemplo. Conferir também, por exemplo: d’Ors, 2021, e no vasto trabalho de Monja Coen esse tema aparece diversas vezes (ver www.zendobrasil.org).  

12 Trata-se de um dos critérios de avaliação de professores/instrutores de intervenções baseadas em mindfulness (MBI), o MBI-TAC (Mindfulness-Based Interventions Teaching Assessment Criteria). Corporificar (embody) significa “habitar a prática de mindfulness. Isso é transmitido através do corpo do(a) professor(a), em termos de sua expressão física e não-verbal.” (MBI-TAC, 2021, p. 30; tradução livre do inglês; disponível em: https://mbitac.bangor.ac.uk/documents/MBITACFullPAGESFINAL6.7.21.pdf). Uma observação pessoal: talvez essa característica, de “corporificar” as habilidades de mindfulness, e não só elas, mas todas as habilidades e estratégias da DBT, seja uma das que se sobressai quando aprendemos e observamos terapeutas e treinadores (professores) de DBT experientes: eles têm, na minha visão, uma “qualidade” ou “um jeito” diferente quando ensinam não só mindfulness, mas também aceitação radical, estratégias dialéticas, a “dança” característica realizada nas interações com pacientes (comumente denominada por Marsha e depois dela “movimento, velocidade e fluxo”).  

13 Karina Solovieff é psicóloga, aluna Zen de Randy e a diretora da Empty Cloud Sangha Latinoamérica. Ela participou de um dos últimos retiros com Marsha Linehan nos EUA, e tem a importante tarefa de manter a comunidade de prática Zen nesta linhagem viva na América Latina. Ver https://ecsanghalatin.wixsite.com/emptycloudlatam. O estudo que Randy cita ainda não foi publicado.  

14 Randy destaca a importância de desenvolver uma prática regular de mindfulness, e faz um convite a que se conheça e pratique o Zen como forma de atender a isso. A conclusão aqui não é que a maneira correta ou ideal de aprender mindfulness seja através dessa prática, o que fica claro quando Randy afirma que “…Eu sou a favor de qualquer coisa que faça as pessoas praticarem regularmente.” 

15 Alguns estudos que mostraram tais resultados (esta não pretende ser uma nota compreensiva sobre pesquisa): Lam, Sterling, Margines, 2014; Tang et al, 2007). Este artigo da American Psychological Association resume os efeitos positivos para a saúde da prática de mindfulness: https://www.apa.org/monitor/2012/07-08/ce-corner#:~:text=The%20researchers%20concluded%20that%20mindfulness,decreases%20anxiety%20and%20negative%20affect.  

16 Linehan, 2018a, p. 45. 

17 Essa é uma afirmação (e até uma instrução) comum na prática de mindfulness, que provavelmente tem origem na prática meditativa budista. Ver, p. ex., Kabat-Zinn, 1994, p. 16: “Então, na prática de meditação, a melhor maneira de chegar a algum lugar é abrir mão de querer chegar a qualquer lugar.” Uma afirmação retirada do website de um monastério Zen no Japão (antaiji.org) diz: “Praticamos Zen sem adições ou modificações. Zazen é praticado apenas pelo propósito de praticar zazen. Para quê serve isso? A resposta é fácil: para nada!” (tradução livre do inglês. A maior parte do site é escrita em japonês e é necessário traduzir com a ferramenta do google. Disponível em: https://antaiji.org/en/).    

18 Existe ampla documentação desse tipo de afirmação pelo 14º Dalai Lama tibetano. “Aprendemos a partir da ciência que afirmações da literatura Budista se referindo a uma terra plana ou ao sol e lua tendo o mesmo tamanho e distância da terra são errôneas. Entre os estudiosos do Budismo, Chandrakirti criticou mestres que expressaram tais visões e eu me considero seu aluno.” Disponível em: https://www.dalailama.com/news/2020/buddhism-science-and-compassion. Vale a pena destacar que o Dalai Lama é o líder religioso do Budismo tibetano, que faz parte do budismo Vajrayana (uma transformação do budismo Mahayana, quando trazido da Índia para o Tibete; o Zen faz parte do budismo Mahayana).      

Referências

Aitken R., (1982): Taking the Path of Zen. Nova Iorque: North Point Press.

d’Ors P., (2021). Biografia do silêncio: Breve ensaio sobre meditação. São Paulo: Editora Planeta.

d’Ors P., 2021. Biografia do silêncio: Breve ensaio sobre meditação. São Paulo: Editora Planeta.

Dumoulin H., (1963). A History of Zen Buddhism. Nova Iorque: Random House, Inc.

Kabat-Zinn J., (1994). Wherever You Go, There You Are: Mindfulness Meditation in Everyday Life. Nova Iorque: Hachette Books.

Kabat-Zinn J., (2013) (1990). Full Catastrophe Living : Using the Wisom of Your Body and Mind to Face Strress, Pain, and Illness. Edição revisada e atualizada. Nova Iorque: Bantam Books.

Lam AG, Sterling S, Margines E (2015). Effects of Five-Minute Mindfulness Meditation on Mental Health Care Professionals. J Psychol Clin Psychiatry 2(3): 00076. DOI: 10.15406/ jpcpy.2015.02.00076.

Linehan, M.M. (2010) (1993). Terapia Cognitivo-Comportamental para o Transtorno da Personalidade Borderline. Porto Alegre: Artmed Editora SA.

Linehan M. M., (2018a) (2015). Treinamento de Habilidades em DBT: Manual de Terapia Comportamental Dialética para o Paciente. 2ed. Porto Alegre: Artmed Editora SA.

Linehan M. M., (2018b) (2015). Treinamento de Habilidades em DBT: Manual de Terapia Comportamental Dialética para o Terapeuta. 2ed. Porto Alegre: Artmed Editora SA.

Linehan M. M., (2021). Building a Life Worth Living: a Memoir. Nova Iorque: Random House.

Suzuki, D.T, (2019) (1964). Uma introdução ao zen-budismo. São Paulo: Mantra.

Tatoon-Ramos T. P., 2016. Mindfulness: Boundaries Between Religion and Science. Tese – (Doutorado) Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Referências na internet:

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Antaiji (monastério Zen-Budista no Japão): https://antaiji.org/en/.

Bangor University, onde está disponível o MBI-TAC: https://mbitac.bangor.ac.uk/.

Cambridge Dictionary. https://dictionary.cambridge.org/.

Comunidade Zen Budista Zendo Brasil (liderada pela Monja Coen). https:// www.zendobrasil.org.br.

Dalai Lama tibetano (14º). https://www.dalailama.com/news/2020/buddhism-science-and-compassion.

Dicionário Oxford Languages: recurso do Google quando se procura a definição de uma palavra.Merriam-Webster Dictionary. https://www.merriam-webster.com.

Empty Cloud Sangha. Em inglês. Disponível em: https:// www.emptycloudsangha.org/.

Empty Cloud Sangha Latinoamérica (Latam), em espanhol: https:// ecsanghalatin.wixsite.com/emptycloudlatam.

Fundação Willigis Jäger (West-Oestliche Weisheit). Em alemão e inglês. Disponível em:
https://west-oestliche-weisheit.de/ueber-uns/willigis-jaeger/.

Jaffe, PD. http://www.thezensite.com/ZenEssays/HistoricalZen/Yasutani_Roshi.html.

Sanbo-Zen (previamente Sanbô-Kyôdan). Em inglês e outras línguas. Disponível em: http://www.sanbo-zen.org/index.html.


Zen Center of Georgia. https://www.zen-georgia.org/.

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Escrito por Alexandre Tzermias

Médico psiquiatra formado pelo Instituto Bairral de Psiquiatria, psiquiatra da infância e adolescência formado pela UNICAMP e terapeuta DBT treinado pela Behavioral Tech / DBT Brasil. Trainer-in-Training da Behavioral Tech / DBT Brasil. Co-fundador da DBT Campinas.

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