Incertezas no Processo de Psicoterapia Parte 1: Fenômeno Clínico e Modelo Teórico

Nota: O texto abaixo é o primeiro de três textos que buscam discutir o processo de psicoterapia. O primeiro texto foca na distinção entre fenômeno clínico e modelo teórico. O segundo irá abarcar a ampla gama de desfechos possíveis para uma psicoterapia. O terceiro irá discutir se a população clínica que busca tratamento no Brasil de fato se assemelha à população estudada nos estudos de eficácia das psicoterapias comportamentais.

Na psicologia do cotidiano é comum buscarmos explicações para o nosso comportamento e para as ações de terceiros. Ao notar que um amigo está atrasado, por exemplo, uma série de explicações podem ser cogitadas, tais como: “o transporte atrasou”, “alguma emergência aconteceu”, “ele esqueceu do evento” etc. A priori, todas as opções são verdadeiras se embasadas em ideias gerais sobre o porquê as pessoas se atrasam em nossa cultura ou se embasadas no conhecimento que temos sobre o comportamento do amigo em questão. Essencialmente, no entanto, você não sabe o porquê do atraso até que o amigo se apresente. A facilidade contida nesta situação hipotética é que podemos perguntar diretamente ao amigo o que houve e talvez fechar um vão entre fenômeno (i.e., atraso do amigo) e modelo teórico (i.e., hipóteses sobre o atraso). Ao obter uma resposta, encerramos o processo de dedução envolvido na pergunta “Porque meu amigo se atrasou?” e também eliminamos o desconforto associado a não saber o porquê do atraso.

Na ciência, a ligação entre fenômenos e modelo teórico não é tão direta e em geral os pesquisadores convivem com um constante “não sei, mas imagino…”. Em especial na psicologia e na psiquiatria, teorias sobre processos cognitivos ou sobre como as intervenções comportamentais e farmacológicas funcionam existem em grande número. Um mesmo fenômeno clínico, como por exemplo a terapia de exposição, possui bem mais de uma teoria acerca de como e por que funciona. E quem dera, quem dera mesmo, tivéssemos explicações suficientes para eliminar o não saber constante que assombra profissionais de saúde mental interessados em prover o melhor tratamento possível.

Para exemplificar o quando a ligação entre modelo teórico e fenômeno é frágil, segue abaixo um caso conhecido da psicologia/psiquiatria. Você já deve ter lido sobre impulsividade ou sobre comportamento impulsivo, certo? Em nossa cultura tendemos a relacionar falta de planejamento, incapacidade de controlar impulsos ou busca incessante por prazer como sendo comportamentos impulsivos e assumindo, implicitamente, que todos estão relacionados ou são determinados por uma variável latente chamada de Impulsividade. Quando pensamos no uso do termo impulsividade dentro da nossa cultura, tal generalização de diferentes processos em um mesmo conceito faz sentido. No entanto, a pesquisa vem mostrando algo diferente. Medidas de autorrelato de impulsividade, como questionários, tendem a apresentar uma baixa correlação com medidas objetivas de impulsividade (Dang et al., 2020). Enquanto medidas de autorrelato exigem que as pessoas avaliem seus próprios comportamentos as medidas objetivas usualmente expõem pessoas a “tarefas” no qual elas devem controlar a velocidade de reações motoras, dedicar atenção para estímulos específicos ou tomar decisões complexas. Apesar de não correlacionarem, ambas as medidas parecem distinguir grupos com ou sem transtornos de controle de impulso e prever comportamentos impulsivos fora do laboratório (Sharma et al., 2014). Com base nisso, o que pesquisadores atuais têm debatido é que os modelos teóricos de impulsividade na psicologia/psiquiatria, antes amplamente aceitos, parecem não capturar todo o fenômeno clínico medido por questionários de impulsividade ou medidas objetivas (Strickland & Johnson, 2021). No fim, não sabemos com precisão o que é impulsividade, mas sabemos que as medidas capturam um fenômeno clínico que ainda carece de modelos teóricos.

O que será que acontece nas psicoterapias? No estudo da psicoterapia, por vezes assumimos que se um tratamento funciona o modelo teórico subjacente também é correto. Não aceitamos o desconforto de não saber porquê ou como um tratamento funciona. Na seção abaixo vamos discutir com mais detalhes a relação entre processo de terapia e mudança clínica. Para fins didáticos, consideremos que fenômeno clínico é aquilo que acontece no tratamento e modelo teórico são as hipóteses que psicoterapeutas e pesquisadoras cogitam sobre o processo de mudança em psicoterapia.    

O Processo de Psicoterapia

A ideia de buscar o melhor tratamento possível, considerando as evidências disponíveis, as preferências e a cultura do paciente e a expertise do terapeuta não é nova (APA, 2006) e espera-se que esteja cada vez mais presente na prática clínica em psicologia. Algo pouco falado, no entanto, é o quanto a busca pelo melhor tratamento possível envolve lidar com incertezas, lidar com o não saber. Isso porque mesmo quando o tratamento é eficaz, ainda não sabemos o que dentro do tratamento é responsável pela eficácia.

Como exemplo, vamos considerar a terapia comportamental dialética (sigla em inglês, DBT). A DBT é um tratamento reconhecidamente eficaz para transtornos que envolvem comportamento suicida de acordo com estudos conduzidos majoritariamente fora da américa latina (Decou et al., 2019). Um dos fatos interessantes da DBT é que o fenômeno clínico foi desenvolvido por tentativa e erro para o tratamento de pacientes com risco de suicídio (Linehan & Wilks, 2015). Obviamente, isso não indica que a criadora do tratamento, Marsha Linehan, se absteve da leitura de evidências da época para a elaboração do tratamento. Pelo contrário, a autora buscou na literatura sobre comportamento social, behaviorismo, filosofia dialética, terapia de resolução de problemas, humanismo e práticas medidativas Zen estratégias para lidar com o sofrimentos dos pacientes atendidos por DBT (Linehan & Wilks, 2015). O que chama atenção na criação de um tratamento por tentativa e erro é que o fenômeno clínico foi construído anteriormente ao modelo teórico. Dito de outra forma, primeiro o foco esteve em descobrir o que funciona, para depois explicar porquê.

Hoje a DBT possui uma estrutura padrão que envolve quatro elementos: terapia individual, grupos de habilidades, coaching telefônico e encontros com uma equipe de consultoria para os terapeutas. Tais elementos equilibram paciente e terapeutas nos polos de aceitação e mudança. Dado que a DBT envolve tanto estratégias específicas do tratamento quanto estratégias derivadas de outras modalidades de terapia comportamental, aquilo que ocorre dentro do tratamento, o fenômeno clínico, é consideravelmente variável (Lynch et al., 2006). Portanto, explicar a mudança em DBT pode ser um desafio. Modelos teóricos iniciais assumiam que a efetividade clínica ocorreria pela aplicação de intervenções de mindfulness, validação, análise em cadeia e estratégias dialéticas (Lynch et al., 2006). E será que o modelo teórico sobre o porquê as mudanças ocorrem em DBT está correto? A respostas mais sincera é, ainda, “não temos certeza“. Na revisão mais recente sobre mecanismos de mudança da DBT, parte dos mecanismos de mudança originalmente teorizados por Lynch e colegas (2006) parece de fato mediar a relação entre fenômeno clínico e mudança (Mehlum, 2021). No entanto, as pesquisas ainda estão em fase inicial e mecanismos de mudança ligados a outros tipos de psicoterapia, como é o caso da relação terapêutica, parecem ser tão importantes quanto os mecanismos de mudança inicialmente teorizados para a DBT (Mehlum, 2021).

É claro que a DBT não é único tratamento comportamental que contém um vão entre fenômeno clínico e modelo teórico. A terapia de aceitação e compromisso (sigla em inglês ACT) também possui o mesmo problema. Diferentemente da DBT, os mecanismos de mudança da ACT foram teorizados quase simultaneamente à criação do tratamento. Muitas das intervenções principais da ACT foram testadas em laboratório (Levin et al., 2012) e estudos de mediação parecem indicar que o fenômeno clínico da ACT gera mudança pelos mecanismos inicialmente teorizados (Stockton et al., 2019). A questão no caso da ACT é que uma parte da melhora clínica é atribuída a transformações na função evocativa de estímulos verbais, um processo extensivamente estudado em laboratório pelos pesquisadores da teoria das molduras relacionais (sigla em inglês, RFT). A RFT possui muitos estudos de laboratório mostrando o quanto a linguagem humana pode ser modificada pela relação arbitrária estabelecida entre estímulos verbais e símbolos. Se assume desde o início da ACT que boa parte dos processos clínicos podem ser explicados pela RFT. Porém, ainda não sabemos o quanto o fenômeno clínico da ACT pode ser explicado pelo modelo teórico da RFT, dado que o processo de tratamento da ACT é pouco estudado e dado que raramente intervenções derivadas da pesquisa básica em RFT passam a ocupar espaço enquanto fenômeno clínico na ACT (McEnteggart et al., 2015).

Obviamente, o propósito dos exemplos acima não é relativizar a eficácia da DBT e da ACT para uma série de condições clínicas. O objetivo é mostrar ao leitor os vãos explicativos que temos entre fenômeno clínico e modelo teórico mesmo quando os tratamentos funcionam.

Um Breve Acolhimento à Incerteza

O leitor pode estar agora pensando que o foco do texto é criticar excessivamente algo pouco relevante na psicoterapia. O que importa é que funciona, certo? Acho que daria para concordar com essa pergunta se não fosse a grande quantidade de novas psicoterapias que aparecem a cada poucos anos, cada uma com um modelo teórico diferente e com estratégias terapêuticas aparentemente novas. Poderíamos também ignorar o debate acima se a eficiência dos tratamentos fosse pouco relevante. No entanto, temos o compromisso de oferecer aos pacientes o melhor tratamento possível sem incluir elementos irrelevantes para a mudança clínica.  

Em uma época em que buscamos por respostas rápidas e fáceis para perguntas complexas, é necessária uma pausa. É necessário, eventualmente, dizer “não sei” para que assim possamos formular perguntas e buscar informações. E o não sei, no estudo das psicoterapias, cabe muito bem no espaço entre fenômeno clínico e modelos teóricos de mudança em psicoterapia. Por mais eficaz e competente que um terapeuta seja, sempre haverá algo desconhecido no processo clínico. Não há nenhum problema em admitir que às vezes não sabemos por que um paciente nosso mudou. O problema talvez seja sempre assumir que sabemos como a mudança ocorre ou assumir que a melhor evidência disponível é também isenta de vãos explicativos entre fenômeno clínico e teoria.

Referências

APA Presidential Task Force on Evidence-Based Practice (2006). Evidence-based practice in psychology. The American psychologist, 61(4), 271–285. https://doi.org/10.1037/0003-066X.61.4.271

Dang, J., King, K. M., & Inzlicht, M. (2020). Why Are Self-Report and Behavioral Measures Weakly Correlated?. Trends in cognitive sciences, 24(4), 267–269. https://doi.org/10.1016/j.tics.2020.01.007

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Levin, M. E., Hildebrandt, M. J., Lillis, J., & Hayes, S. C. (2012). The impact of treatment components suggested by the psychological flexibility model: a meta-analysis of laboratory-based component studies. Behavior therapy, 43(4), 741–756. https://doi.org/10.1016/j.beth.2012.05.003 Linehan, M. M., & Wilks, C. R. (2015). The Course and Evolution of Dialectical Behavior Therapy. American journal of psychotherapy, 69(2), 97–110. https://doi.org/10.1176/appi.psychotherapy.2015.69.2.97

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McEnteggart, C., Barnes-Holmes, Y., Hussey, I. & Barnes-Holmes, D. (2015). The ties between a basic science of language and cognition and clinical applications. Current Opinion in Psychology, 2, 56-59. doi:10.1016/j.copsyc.2014.11.017

Mehlum L. (2021). Mechanisms of change in dialectical behaviour therapy for people with borderline personality disorder. Current opinion in psychology, 37, 89–93. https://doi.org/10.1016/j.copsyc.2020.08.017

Moncrieff, J., Cooper, R. E., Stockmann, T., Amendola, S., Hengartner, M. P., & Horowitz, M. A. (2023). The serotonin theory of depression: a systematic umbrella review of the evidence. Molecular psychiatry, 28(8), 3243–3256. https://doi.org/10.1038/s41380-022-01661-0

Sharma, L., Markon, K. E., & Clark, L. A. (2014). Toward a theory of distinct types of “impulsive” behaviors: A meta-analysis of self-report and behavioral measures. Psychological Bulletin, 140(2), 374–408. https://doi.org/10.1037/a0034418

Stockton, D., Kellett, S., Berrios, R., Sirois, F., Wilkinson, N., & Miles, G. (2019). Identifying the Underlying Mechanisms of Change During Acceptance and Commitment Therapy (ACT): A Systematic Review of Contemporary Mediation Studies. Behavioural and cognitive psychotherapy, 47(3), 332–362. https://doi.org/10.1017/S1352465818000553 Strickland, J. C., & Johnson, M. W. (2021). Rejecting impulsivity as a psychological construct: A theoretical, empirical, and sociocultural argument. Psychological review, 128(2), 336–361. https://doi.org/10.1037/rev0000263

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Gibson Weydmann

Escrito por Gibson Weydmann

Psicólogo clínico (UNISINOS) e especialista em terapias contextuais. Professor da Universidade La Salle. Mestre e Doutor em Psicologia Experimental pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com período de doutorado na McGill University. Pós-doutorando no LPNeC-UFRGS.

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