A maior mudança de paradigma na suicidologia baseada em evidências – pouco surpreendente para qualquer analista do comportamento

Eu poderia apostar que todas as pessoas que já foram a alguma palestra sobre suicídio e sua prevenção no Brasil ouviram falar sobre fatores de risco e, em alguns casos, fatores de proteção. Alguns exemplos clássicos de fatores de risco bem estabelecidos na literatura internacional e repetidos à exaustão são: ser do sexo masculino, ter uma tentativa prévia de suicídio, ter acima de 45 anos e ter um diagnóstico de transtorno psiquiátrico, em especial transtornos de humor, transtorno de uso de substância e transtornos de personalidade (Franklin et al., 2017).

Ao ser apresentada a essas informações, um questionamento nunca me era sanado: qual seria a utilidade clínica desse paradigma? E mais, apesar da intenção de nos ajudar a compreender e explicar o fenômeno do suicídio, o que os dados sobre intervenções baseadas neste modelo nos diziam?

Em 2017 eu tive a minha resposta. Uma meta-análise reuniu 50 anos de pesquisa na área da suicidologia e foi contra o modelo de fatores de risco do suicídio, indicando o pouco impacto desse paradigma na prevenção do suicídio e no desenvolvimento de tratamentos específicos (Franklin et al., 2017), causando um frisson pelos corredores dos congressos da Associação Internacional para Prevenção do Suicídio, seguido de um crescente questionamento acerca da sua utilidade.

E por que o alarde? Tradicionalmente, o entendimento da conduta para tratamento dos pacientes com demandas relacionadas ao suicídio foi permeado pelo modelo de fatores de risco, o qual preconiza a identificação e descrição de correlatos para o entendimento do comportamento suicida (Bryan & Rudd, 2018).

É inegável que alguns fatores de risco transcendem a ingerência do psicólogo. Por exemplo, os fatos de um paciente ser de determinado sexo ou idade não são passíveis de intervenção clínica. Por outro lado, acreditava-se no potencial das ferramentas disponíveis para ajudar os pacientes a diminuírem a apresentação da sintomatologia de transtornos psiquiátricos. 

O raciocínio era assim: se a maior parte das pessoas que morrem por suicídio têm algum transtorno psiquiátrico, então essa condição deveria causar ou ser muito contributiva para o comportamento suicida. De fato, o modelo dos fatores de risco não se propõe a investigar processos ou causas da suicidalidade, mas presume que o acúmulo de fatores de risco contribuiria para o comportamento suicida. Então, como adiantei há pouco, a ideia dos tratamentos informados por esse modelo é reduzir os fatores de risco, visando reduzir, portanto, o risco de suicídio. 

O segundo modelo, denominado modelo psiquiátrico sindrômico para a compreensão do suicídio, pode ser visto, como ficará evidenciado a seguir, como uma subcategoria do modelo de fatores de risco. Isso porque se trata de um paradigma no qual o comportamento suicida é entendido como um sintoma dos transtornos psiquiátricos. Nesse caso, o raciocínio seria: se a suicidalidade existe como expressão consequente de um transtorno psiquiátrico, ao tratar o transtorno psiquiátrico, o risco de suicídio seria reduzido ou eliminado (Bryan & Rudd, 2018).

“Mais de 90% das pessoas que morreram por suicídio teriam um diagnóstico de transtorno psiquiátrico” – é um dado frequentemente compartilhado por adeptos desse paradigma. No entanto, os estudos que indicaram esse dado estão tendo sua metodologia e, consequentemente, acurácia, questionados (Hjelmeland et al., 2012). Além disso, apesar da correlação, o fato da maior parte dos transtornos psiquiátricos estarem associados a um risco de suicídio, não indica a causalidade do suicídio como consequência dos transtornos psiquiátricos.

O diagnóstico de um possível transtorno mental não deve, claro, ser negligenciado, contudo, o suicídio transcende a categorização diagnóstica, e a hierarquização deve ser clara – o foco do trabalho do psicólogo clínico e do paciente deve ser compreender e direcionar ferramentas para o manejo específico do comportamento suicida.

O terceiro paradigma, mais alinhado com essa perspectiva, é o modelo funcional. De acordo com Hayes e colaboradores (1996), pensamentos e comportamentos suicidas não são resultantes de um transtorno psiquiátrico, mas sim da forma como o sujeito experiencia seus processos psicológicos, sobretudo levando em consideração seu contexto e história pessoal. Clinicamente, esse modelo sugere, como foco primário do tratamento, o contexto em que emergiu e se manteve o comportamento suicida ao longo do tempo.

Outra meta-análise reuniu os resultados de 24 estudos, investigando a efetividade de tratamentos para ideação suicida e tentativas de suicídio (Tarrier et al., 2008). Um dos resultados mostra-se consonante com a perspectiva do modelo funcional  ter maior utilidade clínica. Os tratamentos cujo alvo-primário era a suicidalidade contribuíram para melhorias mais expressivas, em comparação àqueles tratamentos que enfatizavam o manejo de um transtorno psiquiátrico.

Apesar da proposta não ser novidade, esse modelo levou mais tempo para se consolidar na suicidologia e, hoje em dia, é consensualmente percebido pelos pesquisadores como mais adequado. Mesmo com os dados demonstrando a superioridade do modelo funcional, mais especificamente dos tratamentos apoiados nessa perspectiva, a maior parte dos psicólogos e psiquiatras continua a ser influenciada pelo modelo psiquiátrico sindrômico, indicando uma lacuna na educação e treinamento dos profissionais da saúde para lidar com a suicidalidade (Schmitz et al., 2012) e acabando por repetir a transmissão de informações que podem não estar inadequadas, mas também parecem não ser tão contributivas para pensarmos as intervenções psicológicas no manejo clínico da suicidalidade. Um exemplo de disseminação dessa perspectiva é a propagação de informações baseadas nesse paradigma por órgãos relevantes, por exemplo, a cartilha “Suicídio: Informando para prevenir” (ABP, 2014).

A história desses três paradigmas talvez seja novidade até para para alguns analistas do comportamento, no entanto o destino final decerto é familiar. Afinal, a ênfase da clínica analítico-comportamental não é nos sintomas como consequências de um transtorno, mas sim na descrição dos comportamentos e suas relações com o ambiente, sua probabilidade, frequência e intensidade (Banaco et al., 2012). Os autores da área há muito enfatizam a importância de um olhar funcionalista para as queixas clínicas, sendo o comportamento suicida um desses alvos a serem analisados separadamente. 

Quem busca compreender e trabalhar com a prevenção do suicídio de acordo com as premissas da prática baseada em evidências alicerça-se sobre a concepção do suicídio como um fenômeno transdiagnóstico. A principal implicação dessa percepção é: do modelo funcional de compreensão do suicídio derivam-se os tratamentos mais efetivos para reduzir pensamentos e comportamentos suicidas.

Referências Bibliográficas:

Associação Brasileira de Psiquiatria. (2014). Suicídio: Informando para prevenir. ABP. Disponível em: http://www.flip3d.com.br/web/pub/cfm/index9/?numero=14#page/51

Banaco et al. (2012). Psicopatologia. In: HUBNER, Maria Martha Costa; MOREIRA, Márcio Borges (org.). Temas Clássicos da Psicologia sob a Ótica da Análise do Comportamento. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan.

Bryan, C. J., & Rudd, M. D. (2018). Brief cognitive-behavioral therapy for suicide prevention. Guilford Press.

Franklin, J. C., Ribeiro, J. D., Fox, K. R., Bentley, K. H., Kleiman, E. M., Huang, X., Musacchio, K. M., Jaroszewski, A. C., Chang, B. P., & Nock, M. K. (2017). Risk factors for suicidal thoughts and behaviors: A meta-analysis of 50 years of research. Psychological bulletin, 143(2), 187–232. https://doi.org/10.1037/bul0000084

Hayes, S. C., Wilson, K. G., Gifford, E. V., Follette, V. M., & Strosahl, K. (1996). Experimental avoidance and behavioral disorders: a functional dimensional approach to diagnosis and treatment. Journal of consulting and clinical psychology, 64(6), 1152–1168. https://doi.org/10.1037//0022-006x.64.6.1152

Hjelmeland, H., Dieserud, G., Dyregrov, K., Knizek, B. L., & Leenaars, A. A. (2012). Psychological autopsy studies as diagnostic tools: are they methodologically flawed?. Death studies, 36(7), 605–626. https://doi.org/10.1080/07481187.2011.584015

Schmitz, W. M., Jr, Allen, M. H., Feldman, B. N., Gutin, N. J., Jahn, D. R., Kleespies, P. M., Quinnett, P., & Simpson, S. (2012). Preventing suicide through improved training in suicide risk assessment and care: an American Association of Suicidology Task Force report addressing serious gaps in U.S. mental health training. Suicide & life-threatening behavior, 42(3), 292–304. https://doi.org/10.1111/j.1943-278X.2012.00090.x

Tarrier, N., Taylor, K., & Gooding, P. (2008). Cognitive-behavioral interventions to reduce suicide behavior: a systematic review and meta-analysis. Behavior modification, 32(1), 77–108. https://doi.org/10.1177/0145445507304728

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Loren Beiram

Escrito por Loren Beiram

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