Clínica e psicopatologia

Primeiro ponto. O sofrimento humano pode surgir e ser sustentado de modos tão variados quanto o número de pessoas que habitam nosso planeta. No entanto, algumas maneiras de sentir, pensar e agir em sofrimento podem ser identificadas mais sistematicamente, interpretadas com ajuda de determinados parâmetros – como o recurso dos quatro Ds proposto por Davis (2009); deviance, distress, disfunction, danger. A saber: desvio diz respeito aos comportamentos inadequados socialmente; sofrimento se refere tanto a experiência do indivíduo como das pessoas que se relacionam com ele; disfunção é a noção da interferência de prejuízos em aspectos importantes da vida da pessoa; e risco avalia o perigo de determinados comportamentos para si e para os outros.

Segundo ponto. Silveira (1991) analisou a evolução do diagnóstico comportamental, traçada pela história da Terapia Comportamental, e assinala mudanças críticas na concepção do diagnóstico: a inclusão de critérios sociais na seleção de comportamentos-alvo; o reconhecimento da pluralidade dos comportamentos-alvo e a inclusão de respostas não-observáveis no trabalho terapêutico; a preocupação com a história da pessoa; e a utilização de taxonomias psicopatológicas. As reflexões e críticas que geraram mudanças nas concepções e práticas terapêuticas estão pautadas no compromisso em oferecer o melhor tratamento para quem busca ajuda.

A síntese. A clínica da psicopatologia envolve a análise de comportamentos – publicamente observáveis e os que são apenas privadamente contatados – e os parâmetros que os enquadram nas classificações nosológicas, admitindo que o contexto em que a história individual se dá é determinante para o saudável e para o patológico. Isso porque tal distinção depende de se caracterizar um desvio: um comportamento, tão normal quanto os princípios da Análise do Comportamento são capazes de descrever, passa a gerar sofrimento, prejuízos e colocar pessoas em risco. Pois, como afirmou Sidman (1960):

“(…) o comportamento mal adaptado pode ser resultado de combinações quantitativas e qualitativas de processos que são, eles próprios, intrinsecamente ordenados, absolutamente determinados, e normais em sua origem”
p. 43

Nesse sentido, ainda que o corpo, genético e fisiológico, apresente suas condições – determinadas filogeneticamente e/ou por mutações no indivíduo –, a seleção pelas consequências opera sempre ambientalmente. Por mais clichê que essa frase possa soar para analistas do comportamento, o que ela significa é o que dá condições para que os psicoterapeutas tenham potencial de atuar. 

Manuais como o DSM podem ajudar os psicoterapeutas com suas operacionalizações, que se tornam cada vez mais detalhadas; em 2022, a última versão do DSM – o DSM-V-TR – foi publicada com aproximadamente 300 classificações de transtornos. Aproveitando a utilidade de topografias tão bem descritas, o clínico pode fazer seu trabalho: analisar funcionalmente como o indivíduo de quem está diante “tornou-se quem é”. E, conhecendo-o, é capaz de se relacionar terapeuticamente com ele.

Ainda que as funções comportamentais sejam encontradas de modos infinitamente idiossincráticos na história e na vida de cada indivíduo, os processos de reforçamento e extinção descritos pela análise do comportamento desvelam regularidades funcionais que possibilitam ao clínico trabalhar sensível e tecnicamente. Nos artigos sobre as contingências de ansiedade (Queixas de ansiedade e o trabalho clínico) e depressão (Queixas de depressão e o trabalho clínico) exercito como praticar isso.

A abordagem analítico-comportamental busca superar a tradição de hospitalização e medicalização dos sujeitos em sofrimento, compreendendo que o patológico não é de natureza diferente do saudável. É na interação recíproca entre subjetividade e sociabilidade que se pode pensar saúde e adoecimento, ampliando as perspectivas de sistemas semiológicos e nosológicos prévios, com seus diagnósticos e prognósticos. Afinal, diagnósticos e tratamentos não possuem sentido em si, em nenhuma especialidade da saúde: uma pessoa não toma remédio simplesmente para diminuir pressão alta, mas para viver bem com a pressão estabilizada.

Um adendo. Ainda que este texto proponha uma reflexão sobre psicopatologia e clínica, a saúde mental é um campo de dimensões assistenciais, jurídico-políticas e socioculturais. A integração do cuidado individual e cidadão é condição necessária de saúde; portanto, envolve médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, educadores e diversos outros agentes participativos da rede de atenção à saúde (Amarante, 2007).

Amarante, P. (2007). Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro, RJ: FIOCRUZ.
Davis, T. O. (2009). Conceptualizing psychiatric disorders using “Four D’s” of diagnoses. The Internet Journal of Psychiatry, 1 (1): 1-5.
Sidman, M. (1960). Tactics of Scientific Research. Nova York: Basic Books.
Silvares, E. F. M. (1991). A evolução do diagnóstico comportamental. Psicologia: Teoria & Pesquisa, 7 (2): 179-187.

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Escrito por Francine Fernandes

Formada em Psicologia pela UFSCar e especialista em Clínica Analítico-Comportamental, atua como psicoterapeuta e supervisora clínica.

“Resolve o meu problema, aí!” – o dilema dialético da passividade ativa versus competência aparente na DBT

Especialização e Formação em Terapia de Casal