A produção de uma nova comunicação no setting terapêutico de casal

Os cientistas ainda não chegaram a um consenso sobre em que ponto o homem primitivo começou a usar a linguagem, mas é interessante imaginar o que o homem da caverna acharia de nossas “DRs” – a tão presente “Discussão de Relação” – hoje em dia. Dos primeiros grunhidos até as “DRs” por WhatsApp das super ocupadas pessoas de hoje, a comunicação foi ganhando complexidade e acompanhando o desenvolvimento das sociedades conforme se tornavam mais diversas.

Na Idade Média, uma época peculiar da história da humanidade, cuja sociedade estratificada era dividida entre os que rezavam, os que lutavam e os que trabalhavam, a importância que se atribuía à noção de individualidade era secundária, portanto, nada se esperava do comportamento e da opinião individual na comunicação, ou seja, no jeito como uma pessoa pedia e negociava qualquer coisa não havia prevalência de sua personalidade e subjetividade. Para saber mais sobre o tema subjetividade, indico o livro Subjetividade e Relações Comportamentais, de Emmanuel Zagury Tourinho [1].

É, em partes, a partir de uma mudança importante nas relações de trabalho em nossa sociedade (desde a Idade Moderna) que há maior valorização do indivíduo e, sendo assim, o modo como cada pessoa se expressa é muito importante para obter o que precisa. Além da satisfação dos nossos desejos, a maneira como nos comunicamos imprime nossa marca no mundo e determina a qualidade das nossas relações pessoais.  

Se trocarmos de novo de cenário e olharmos microscopicamente para dentro dos lares, a comunicação adequada pode garantir aproximação, amizade, intimidade e empatia entre os pares. Comunicarmos nos ajuda a ter muitas coisas do(a) parceiro(a): amor, afeto, escuta, consideração, que busque as crianças na escola, que visite a casa da sogra, que lave a louça, que chegue cedo em casa etc. Esperamos que o outro faça ou queira fazer aquilo que nos satisfaz. O processo de comunicação de um casal pode ser um divisor entre um relacionamento bem ou malsucedido. 

A comunicação dos casais no consultório 

Em geral, quando um casal chega no consultório, é comum escutarmos uma descrição de culpabilização. O(a) parceiro(a) descreve o comportamento do outro como sendo fonte de sua infelicidade e, além disso, a própria maneira de contar os problemas é, em si, um gatilho para mais brigas. Os pedidos são feitos de um modo acusatório, os(as) parceiros(as) fecham-se em seus pontos de vista e, assim, aumenta ainda mais o fosso entre cada um. 

Diante dessa circunstância, o terapeuta deve estar atento para promover algumas situações que facilitem a conversa entre o casal, além de ensinar habilidades para uma comunicação mais saudável e efetiva. É tarefa do terapeuta criar um ambiente que permita o surgimento de novas respostas, que produzam novas consequências e que estejam de acordo com o objetivo do casal. Segundo Sherman, Oresky e Rountree [2], citados por Silva e Vandenberghe no artigo “A importância do treino de comunicação na terapia comportamental de casal” [3], é importante assegurar alguns aspectos para que a comunicação produza aproximação no lugar de afastamento. Revejo alguns aspectos e adiciono outros descrevendo mais sobre eles. 

Criar um ambiente seguro

É essencial que esse encontro entre terapeuta e casal seja seguro. Para que se possa falar de qualquer assunto – filhos, afeto, sexo, inseguranças, sonhos – o terapeuta deve garantir que o consultório não seja um espaço para se xingar, ou se ofender, ou para uma fala passivo-agressiva. O terapeuta deve ensinar ambos a escutar sem interromper e encontrar o que faz sentido na fala do outro, ainda que uma das partes não concorde com o ponto de vista exposto. É imprescindível também que o terapeuta interfira para impedir a escalada do conflito de um modo agressivo. O terapeuta também precisa estar atento a uma eventual sobrecarga emocional de um dos parceiros e, caso necessário, criar momentos de pausa até que os ânimos se acalmem. Cultivar um ambiente seguro é promover um contraponto ao ambiente de conflito que se tem em casa, além de viabilizar um espaço de confiança.  

Colocar o problema de uma forma suave 

Segundo Gottman [3], os primeiros minutos de uma conversa são preditores do sucesso dela. É preciso falar de um problema sem atacar a personalidade do outro, sem comparar-se achando-se melhor. Como fazemos isso? Primeiro, usamos o pronome eu, e não você. Qual o porquê disso? Quando começamos usando você, o resto da frase pode apresentar conotação de acusação. Usando a primeira pessoa, permitimos que o outro entenda como a situação nos afeta, sem gerar um contexto em que exista uma vítima e um algoz. Colocar um problema de maneira suave deve começar com “eu sinto…” (aqui, pode-se expressar um sentimento, por exemplo: raiva, medo, rejeição, vergonha, tristeza etc.) “…sobre…” (alguma situação) “… e preciso de….” (verbalizado no positivo, por exemplo: no lugar de dizer “não quero que você chegue tarde”, melhor dizer “preciso que você chegue cedo”). Tal estratégia de verbalização ajuda o outro a ouvir em vez de se defender. 

Enviar mensagens claras sobre o que se quer

Há pessoas com dificuldade de pedir o que precisam, ou porque elas não sabem o que precisam, ou porque elas acham que não têm o direito de pedir, ou, ainda, porque acham que é humilhante pedir e, assim, o outro tem que adivinhar. Alguns exemplos de como expressar necessidades claramente: “preciso que você inicie o ato sexual”, “preciso de mais carinho”, “preciso falar mais sobre nossos filhos”, “preciso conversar com você sobre meu dia”, “preciso que você jante comigo conversando” etc. Formulando necessidades de forma mais clara, cria-se uma circunstância em que fica mais fácil para o outro compreender a demanda e atendê-la, se possível. 

Não reter informações

Não é raro uma pessoa olhar para outra com muita surpresa depois de uma fala e dizer “eu não sabia que você se sentia assim sobre isso”. Talvez pela falta de tempo ou porque conversar é aversivo, muitas vezes as pessoas deixam de falar seus sentimentos, propósitos e medos. No entanto, essas informações são importantes para que o outro possa entender e retê-las, seja para evitar um conflito, seja por orgulho, seja por achar que está pressuposto, apenas pavimenta o caminho para o afastamento. 

Ouvir para entender e não rebater

O professor Anatol Rapoport [5] foi uma figura de destaque nos estudos sobre conflito e cooperação e como as nações fazem a paz. Segundo ele, as nações que obtinham sucesso em suas negociações tinham um jeito próprio de se comportar: primeiro ouvir, depois, entender, resumir e validar os pontos de vista uns dos outros antes de colocar seus próprios pontos. Para o relacionamento entre casais, aplica-se o mesmo princípio. Somente ouvindo e compreendendo consegue-se chegar a um acordo, ou seja, ouvir para entender e validar o outro, não para rebater. O treino da escuta atenta evita, ainda, que o(a) parceiro(a) se antecipe ao outro adivinhando sua intenção. Saber ouvir é uma ferramenta importante para que o ouvinte se desarme de uma atitude defensiva e, também, abre caminho para conectar-se melhor com as necessidades do outro ao colocar-se em seu lugar.  

 “Entendo, mas …”

Esse tipo de colocação pode ser invalidante. O “mas” nega todo entendimento anterior. É mais frutífero trocar esse modo de exprimir-se por “vejo de outra forma…”, pois sempre existem duas verdades ou visões acerca do mesmo problema. É melhor que o ouvinte diga “eu entendo” apenas se ele entende mesmo.

Há inúmeras publicações sobre o papel da comunicação nos relacionamentos, esse texto quer chamar atenção para alguns aspectos do diálogo e no que o terapeuta deve prestar atenção para ajudar o casal a desenvolver tal repertório. Dentro do setting terapêutico, o papel do terapeuta é fundamental para impedir agressões, ensinar novas respostas dando modelo e dar dicas que se aproximem dos propósitos dos cônjuges.  

“Eu falei direitinho, pedi de ‘modo suave’, mas o outro foge da conversa ou me ataca e acabamos não nos entendendo. O que aconteceu?” Isso é um conflito que não tem solução óbvia e que chamamos de impasse, mas isso é assunto do nosso próximo texto: Conflito é tudo igual? 

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[1] Tourinho, E. Z. (2009). Subjetividade e relações comportamentais. São Paulo: Editora Paradigma Núcleo de Análise do Comportamento.  

[2] Sherman, R., Oresky, P & Rountree, Y. (1991). Solving problems in couples and family therapy: Techniques and tactics. New York: Brunner/Mazel. 

[3] Silva, L. P. e Vandenberghe, L. (2008) A importância do treino de comunicação na terapia comportamental de casal. Psicologia em estudo. Maringá, v. 13, n. 1, p. 161-168.

[4] Gottman, J. M., Coan, J., Carrère, S., & Swanson, C. (1998). Predicting marital happiness and stability from newlywed interactions. Journal of Marriage and the Family, 60, 5 – 22. 

[5] Kopelman S., (2020) Tit for Tat and Beyond: The Legendary Work of Anatol Rapoport, Negotiation and Conflict Management Research 13(1). p.60-84.

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Escrito por carolperroni

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