Conflito é tudo igual?

Diz a lenda que Lao Tzu, um dos pais da filosofia chinesa, seria o inventor da armadilha de dedos chinesa. A armadilha de dedos chinesa é um brinquedo que prende os dedos indicadores de alguém dentro de um pequeno tubo com aberturas em ambas as extremidades. A brincadeira é tentar libertar os dedos. No entanto, quanto mais a vítima tenta escapar, mais apertada a armadilha se torna. Há alguns conflitos na relação de um casal que são assim: quanto mais se tenta resolver, mais preso no problema se está. Mas a armadilha, como parte integrante da cultura e da tradição chinesa, tem mais a nos oferecer do que um intrincado desafio, ela nos ensina novas habilidades que podem servir de exemplo para lidar com conflitos.

Se há uma coisa com a qual o terapeuta de casal irá se defrontar é com pessoas em conflito. O psicólogo fundador e desenvolvedor da Terapia de Casal Colaborativa, Dan Wile, disse uma vez que “ao escolher um parceiro de longo prazo, você inevitavelmente escolherá um conjunto específico de problemas insolúveis” [1]. Ele dá o seguinte exemplo: imagine que Paulo se casou com Roberta. Roberta é a alegria nas festas e Paulo, que é tímido, odeia isso. Mas se Paulo tivesse se casado com João, ele e João teriam brigado antes mesmo de irem para a festa. Isso porque Paulo está sempre atrasado e João odeia ficar esperando. Paulo poderia ver essa reclamação como uma tentativa de controlá-lo. Em um terceiro cenário, se Paulo tivesse casado com Gabriela, eles nem teriam ido à festa porque estariam chateados com a discussão que tiverem, pois Paulo nunca ajuda com as tarefas de casa. E assim por diante… Ou seja, porque somos diferentes, é muito provável que haja atrito no dia a dia.

É relevante perceber que os atritos não são todos iguais, por isso é preciso que o terapeuta de casal saiba identificar se é um problema solucionável ou perpétuo, como Gottman classificou [2].

Nenhuma dupla está livre, todos os casais enfrentam esses tipos de problema.

Problemas Solucionáveis X Problemas Perpétuos

Problemas solucionáveis podem envolver questões como tarefas domésticas, disciplina dos filhos, vida sexual, relacionamento com familiares etc. Um problema solucionável refere-se a algo situacional. O conflito está relacionado especificamente a esse tema e não há um significado mais profundo por trás da posição de cada parceiro. É possível encontrar e manter uma solução.

É importante ressaltar que o que é um problema solucionável para um casal pode ser considerado perpétuo para outro.

Problemas perpétuos são aqueles que giram em torno de diferenças fundamentais nas personalidades ou necessidades de estilo de vida. Todos os casais enfrentam problemas perpétuos. Essas questões podem parecer as mesmas para outros casais, que as consideram solucionáveis, mas, diferentemente dos problemas solucionáveis, os problemas perpétuos surgem repetidamente e não parecem ter uma saída definitiva. Em vez de resolver os problemas perpétuos, o que parece ser importante é se um casal consegue estabelecer um diálogo sobre eles. O objetivo é consolidar uma comunicação que demonstre aceitação do parceiro com humor, afeto e até mesmo diversão, buscando ativamente lidar com o problema que não tem uma solução definitiva em vez de permitir que ele se transforme em um impasse.

Se, no entanto, o casal não consegue dialogar, o conflito se torna um impasse, e um impasse no conflito eventualmente leva ao desengajamento emocional. Problemas perpétuos em impasse são aqueles que foram mal administrados e acabaram se tornando “congelados” e desconfortáveis. Quando um casal tenta discutir um problema em impasse, parece que está “andando em círculos” e não avança. O impasse ocorre porque existem agendas ocultas por trás do problema. Imagine um casalem que uma pessoa está habitualmente atrasada e a outra sente que é importante chegar a tempo. Para um, chegar no horário significa se respeitar e respeitar o outro, estar pronto, prever problemas, se preparar para a situação. Já para o outro, chegar atrasado é não se estressar, levar a vida de modo leve.

Como perceber um impasse.  

Impasse ou gridlock no modelo Gottman de terapia de casal refere-se a uma situação em que um casal enfrenta um problema recorrente que não é resolvido, resultando em tensão emocional, falta de compreensão e comunicação ineficaz. O impasse ocorre quando ambos os parceiros têm pontos de vista rígidos sobre a questão, e eles se sentem presos em um ciclo negativo de discussões infrutíferas e frustração. O conflito leva a uma sensação de rejeição por parte de um dos parceiros. Não importa o quanto o parceiro tente expressar seus sentimentos, ele certamente se sentirá frustrado. Apesar dos seus esforços, ele não progredirá na área problemática. Ambos na relação se tornam tão firmes em suas posições que ninguém estará disposto a ceder. Sempre que o assunto surge, o parceiro inevitavelmente se sentirá frustrado e magoado. As conversas sobre o problema se tornam desagradáveis, sem a presença de humor, diversão ou expressões de afeto. Com o tempo, a incapacidade de avançar aumenta, resultando em difamações mútuas quando o conflito emerge. À medida que se difamam, a falta de disposição para ceder e a polarização em suas visões se intensificam, reduzindo drasticamente as chances de chegar a um acordo. Navegando por esse território complicado, os parceiros acabam na terra do completo desengajamento emocional.

Como trabalhar um impasse dentro do consultório

Vamos imaginar o seguinte casal: Camila e Solange. Elas chegam ao consultório com algumas queixas, entre elas uma situação que não conseguem resolver: como gastar o dinheiro. Tentaram conversar, mas, sempre que isso acontece, é briga na certa e cada uma vai para um lado sentindo-se incompreendida. Apesar de se esforçarem, elas não estão fazendo nenhum progresso.

Camila é muito mais conservadora financeiramente e talvez mais preocupada, enquanto Solange quer gastar dinheiro mais livremente e tem uma filosofia mais voltada para o desfrute do momento presente. Permita-me contar uma breve história da vida de Camila. Camila veio de uma família muito rica, mas seu pai, um bon-vivant, gastou toda herança provinda do avô, dono de usina. Aos 25 anos, Camila viu a família perder todo seu poder econômico apesar dos constantes avisos para o pai ter cautela. Hoje, aos 40 anos, ela é responsável pelas contas do pai e morre de medo de ficar igual a ele. Solange veio de família humilde e durante a infância não teve brinquedos ou passeios, pois sua mãe solo trabalhou duro para pôr comida na mesa e pagar as contas. Solange estudou muito indo na contramão de seu destino, hoje é advogada e ganha o bastante para ter seus luxos. No entanto, ela e Camila não conseguem nem conversar sobre as férias sem discutir e, para ambas, falar do conflito faz com que elas se sintam rejeitadas. Elas têm se agarrado tão forte às suas posições que ninguém planeja ceder. Conversar sobre as férias é desagradável, sem diversão e sem afeto. Durante as discussões, elas se ofendem com palavras como “sovina” e “impulsiva”. A cada discussão, fica mais difícil ceder e as chances de chegar a um acordo despencam.

Primeiro passo

É importante que o terapeuta identifique que elas estão lidando com um impasse e explique que é um problema enfrentado por todos os casais, pois impasses estão relacionados ao que elas passaram na vida e ao que acreditam que é o certo. Ambas estão corretas em seus pontos de vista. Depois dessa primeira abordagem, o terapeuta pode sugerir um exercício prático e pedir para elas desenharem dois círculos, conforme a figura a seguir. Dentro do círculo menor, cada uma escreverá o que considera a sua área inflexível, expressando a demanda da qual não abrem mão. No maior, escreverão suas áreas flexíveis, conforme figura 1  elencando as condições que são negociáveis. Na área inflexível, Camila escreve “guardar dinheiro” e Solange, “viajar”.

Figura 1. Áreas flexíveis e inflexíveis a cerca de um impasse

Segundo passo – a área inflexível

Agora Solange e Camila farão perguntas abertas uma à outra sobre as suas áreas inflexíveis. A ideia é manter o diálogo. Algumas questões que podem ser levantadas: (a) Você tem alguma crença, ética ou valores fundamentais que fazem parte de sua posição sobre essa questão? (b) Existe uma história por trás disso para você? / Isso está de alguma forma relacionado à sua história de infância ou de vida? (c) Conte-me por que isso é tão importante para você. (d) Quais são seus sentimentos sobre essa questão? (e) Qual seria seu sonho ideal aqui? (f) Existe um propósito ou objetivo mais profundo nisso para você? (g) O que você deseja? (h) Do que você precisa? (i) O fato de essa situação não poder ser honrada provoca algum receio ou cria um cenário desastroso?

Terceiro passo – a área flexível

Agora Camila e Solange escrevem sobre as áreas flexíveis. Camila é flexível para viajar nas seguintes condições: gastando até 5 mil reais; viajando quando juntarem 50 mil reais; viajando em baixa temporada. Solange é flexível para poupar dinheiro dessas maneiras: aumentando o aporte para aposentadoria; ficando em hotéis baratos; fazendo apenas uma viagem por ano.

Em geral, as pessoas são flexíveis sobre quem faz alguma coisa, quando faz, onde acontece, como acontece e quanto se gasta.

Se quiser saber um pouco mais sobre esse método para trabalhar um impasse, assista ao vídeo da palestra de Julie Gottman para o TEDxVeniceBeach

Desarmar-se

Depois desse exercício, é provável que Camila e Solange não consigam resolver completamente o problema e nem é nosso objetivo enquanto terapeutas. A tarefa é produzir diálogo acerca das diferenças e aproximar o mundo interno psicológico uma da outra, criando possibilidades de saídas, de acordos e que possam aceitar melhor as diferenças sem que precisem mudar o ponto de vista da parceira no que se refere à sua área inflexível, encontrando, assim, convergências em suas áreas negociáveis.

Não é papel do terapeuta dar uma resposta que seja conveniente ao problema apresentado pelo casal. Sua função é criar contingências de diálogo.

Ah! Para escapar da armadilha chinesa, é preciso empurrar ambos os dedos gentilmente, um em direção ao outro, o que reduz a tensão no material do brinquedo e permite soltá-los. A ideia por trás da armadilha de dedos é ensinar a paciência e a habilidade de resolver problemas. Em vez de forçar a retirada dos dedos, a solução é relaxar e encontrar a técnica correta para liberá-los. Esse é um importante aprendizado também para lidar com os problemas dentro de um relacionamento.

As pessoas, em geral, não querem um relacionamento no qual estão sempre ganhando e influenciando o parceiro, mas acabam esmagando o sonho do(a) outro(a) quando desconhecem o que está subjacente ao pedido de seu(sua) parceiro(a). É muito melhor ter um relacionamento em que cada qual apoia o sonho (valor) do outro. Se os sonhos de ambos se conectarem, tanto melhor. Trabalhar o impasse pode levar tempo e esforço, mas com paciência e com a técnica e o apoio de um terapeuta de casais, é possível desenredar a relação e torná-la mais harmoniosa.

[1] Wile, D. (2008). After the honeymoon. Oakland, CA: Dan Wile.

[2] Gottman, J. M. & Gottman, J.S. (2018).  The Science Of Couples And Family Therapy: Behind The Scenes At The Love Lab. NY: Norton

TED: https://www.ted.com/talks/julie_schwartz_gottman_world_peace_starts_at_home?utm_campaign=tedspread&utm_medium=referral&utm_source=tedcomshare

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Escrito por carolperroni

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