Doença mental existe? Uma breve discussão à luz da Análise do Comportamento

Não raramente, deparamo-nos com pessoas ao nosso redor queixando-se de algum mal-estar psicológico. Esse mal-estar pode assumir várias facetas: ansiedade, medo, tristeza profunda, ira, euforia, apatia, irritabilidade… Em tempos de Google, Tik Tok e redes sociais, o autodiagnóstico parece uma realidade cada vez mais presente e perigosa. E os riscos do autodiagnóstico ou mesmo da banalização e do entendimento equivocado de um diagnóstico são diversos, incluindo desde a automedicação à falsa compreensão sobre limitações e “incapacidades”. Afinal, a descrição de um diagnóstico representa a inserção de uma variável de controle social importante sobre o comportamento daquele que foi diagnosticado e dos que o rodeiam. É nesse contexto que o entendimento de que esses estados de sofrimento não constituem uma doença, visão defendida pela Análise do Comportamento, oferece uma alternativa mais pragmática para que pessoas em sofrimento e profissionais da saúde desenvolvam estratégias de manejo com resultados mais promissores.

Desconstruindo a ideia de “doença”

A própria ideia de “doença mental” é algo que na Psicologia se discute com frequência. Podemos considerar de fato essas condições de sofrimento psíquico enquanto “doenças”? Por que as pessoas perdem o controle de suas emoções? Por que elas não conseguem seguir em frente diante de certas dificuldades? Depressão é “frescura” ou falta de Deus? Essas são questões que o senso comum impõe à ciência e que, não apenas a Psicologia, mas a Medicina, as Neurociências e outras disciplinas têm se dedicado a investigar.

O próprio conceito de doença pode ser discutido a partir de diferentes perspectivas, havendo uma ou outra que se torna mais aceita a partir de um determinado momento da história, considerando-se os avanços e as tendências científicas de cada época (SCLIAR, 2007). Um fato, porém, é facilmente evidenciável diante da caracterização das psicopatologias segundo o modelo médico vigente representado nos principais manuais diagnósticos da atualidade – a Classificação Internacional de Doenças (CID) e o Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM): este modelo descreve topograficamente comportamentos que ocorrem com certa regularidade juntos para cada categoria diagnóstica, mas não explica como esses padrões se estabeleceram ou se mantêm. (BANACO, et al., 2012)

 A Análise do Comportamento, por sua abordagem causal selecionista, compreende que todo comportamento representa uma forma de adaptação do indivíduo ao seu ambiente, ou seja, todo comportamento que se mantém no repertório de um indivíduo “funciona” dentro da sua história de contingências (SKINNER, 2007). Dessa maneira, a própria concepção de doença parece perder o sentido, pois estamos falando de comportamentos que são aprendidos a partir da interação de fatores biológicos, individuais e sociais. (BANACO et al., 2012)

Portanto, para entendermos como a Análise do Comportamento discute o conceito de “doença mental”, é necessário resgatar alguns pressupostos básicos do Behaviorismo Radical, filosofia que sustenta a ciência do comportamento, a saber: a) A noção de comportamento como interação entre organismo e ambiente, e sua sujeição às leis do reforço; b) A multideterminação do comportamento e a influência dos três níveis de variação e seleção: filogênese, ontogênese e cultura, e; c) A noção de monismo físico, contrapondo-se à visão dualista predominante no senso comum e em teorias psicológicas e filosóficas tradicionalistas. É claro que apenas esses três elementos não são os únicos necessários ao entendimento da visão analítico-comportamental sobre as psicopatologias, mas, para fins de um texto [bastante!] introdutório sobre o tema, considero-os os essenciais.

Mentalismo e significado de mental

Uma questão bastante relevante na obra de Skinner é a consideração de que o significado de uma palavra é determinado pelas relações que a comunidade verbal estabelece ao usá-la e, portanto, não está inserido na palavra em si mesma. Neste sentido, é importante ressaltar que a terminologia adotada pelas classificações diagnósticas atuais é de “transtornos”. Optou-se aqui por discutir a partir da palavra “doença” tendo em vista a abordagem ainda equivocada dessa concepção em muitos contextos de discussão sobre o tema. Sobre a questão do significado, Vargas (2007, pp. 161-162) esclarece:

     A linguagem é as práticas de um grupo. O repertório de um indivíduo é moldado em relação a estas práticas. Para poder adquirir este repertório, um indivíduo entra em contato com o repertório de outros e ele é contingencialmente reforçado para as suas formas específicas em relação a eventos que tornam o repertório do indivíduo efetivo.

A expressão “doença mental” é amplamente utilizada em nossa comunidade verbal dentro de um modelo médico de abordagem do sofrimento psicológico, portanto é imprescindível, para efeitos desta breve apresentação, descrever por que essa terminologia precisa ser superada.

Em primeiro lugar, o próprio termo “doença mental” torna-se vazio de sentido dentro desse contexto teórico-metodológico. O adjetivo “mental” remete à existência de uma mente, entidade metafísica que seria determinante do comportamento. A visão interacionista, externalista, monista e antimentalista proposta pelo Behaviorismo Radical vai de encontro à ideia de que tal entidade exista. O comportamentalismo entende que os determinantes do comportamento se encontram no ambiente, eliminando qualquer possibilidade de causalidade interna (SKINNER, 1974). Aliás, uma das críticas mais frequentemente feitas ao Behaviorismo Radical é a de que ele é “mecanicista”, por rejeitar a existência da mente, ou a subjetividade e por utilizar as noções de condicionamento para a explicação do comportamento. Essa crítica, entretanto, carece de coerência interna (e de aprofundamento teórico!!!).

O mecanicismo é a pedra angular de praticamente todas as ciências modernas, inclusive da Psicologia. Do modo como a Mecânica adotou a noção de força inicial para explicar o movimento dos corpos, a Psicologia, em suas diversas concepções, recorre a inúmeros eventos antecedentes para explicar o comportamento humano. Desta forma, aquilo que vem antes do comportamento passou a ser utilizado para explicá-lo. Entre estas causas, podemos citar os sentimentos, as emoções, os desejos, a mente, o self, o inconsciente etc. (CRUZ & CILLO, 2008, 376).

Considerando essa perspectiva, a ideia de uma mente determinando o comportamento, não soa, afinal, como uma força iniciadora que age sobre um corpo (o indivíduo) tirando-o da inércia? Não seria a noção de mentalismo em si mesma mecanicista? A proposição behaviorista, ao contrário, fala em interação entre organismo e ambiente, numa mútua influência entre essas duas instâncias, o que modificaria tanto o organismo que se comporta quanto o ambiente em que o comportamento ocorre. Essa concepção substitui a ideia de causalidade antecedente pela noção de relação funcional. (SKINNER, 2007).

Voltando à desconstrução do conceito de “doença mental”, a palavra “doença” não se adequa à proposta behaviorista radical. Uma rápida análise dos manuais diagnósticos em psiquiatria pode mostrar que a lista de sinais e sintomas psiquiátricos traz, nada mais, nada menos que descrições de comportamentos. “Humor depressivo”, “anedonia”, “alucinações”, “delírios”, “catatonia” são termos que comportam descrições topográficas de eventos públicos e privados. Os manuais são, portanto, listas topográficas de COMPORTAMENTOS presentes em quadros ditos patológicos e os diagnósticos descrevem padrões de comportamento que podem ser apresentados pelos indivíduos. Uma explicação analítico-comportamental não pode, dessa forma, concordar que esses rótulos descrevam doenças, uma vez que eles não fazem referência a aspectos que a própria Medicina considera relevantes para a classificação de doenças como identificação de etiologia, fisiopatologia entre outros (BANACO et al., 2012).

Análise do Comportamento e Transtornos Psiquiátricos

Você pode estar se perguntando neste momento: “Mas então a Análise do Comportamento não considera que existam pessoas que realmente sofram de problemas psiquiátricos? Depressão não existe? Ansiedade não existe?” A resposta é: Não! Nós, analistas do comportamento, acreditamos sim que exista sofrimento clinicamente significativo e que depressão, ansiedade e tantos outros quadros psiquiátricos existem. Apenas não os entendemos ou descrevemos enquanto doenças. Acreditamos que se trata de comportamentos que precisam ser descritos em termos de probabilidade, frequência, intensidade e de suas relações com o ambiente. Acreditamos que existe sofrimento significativo em função da interação da história de aprendizagem particular de cada indivíduo, das suas vulnerabilidades biológicas e da interferência de fatores culturais, não sendo a visão de adoecimento ou de anormalidade suficiente para explicá-lo. (BANACO et al., 2012)

Se se trata de comportamentos, então precisamos explicá-los segundo as leis do reforço e encontrar seus determinantes nos três níveis de variação e seleção. Tratamos tal repertório como adaptativo, uma vez que ele, apesar de socialmente inadequado, representa uma forma de adaptação do organismo ao seu ambiente e às contingências às quais ele foi exposto ao longo de sua história de vida. Os “comportamentos-problema” são entendidos como EXCESSOS ou DÉFICITS comportamentais produtos da história de contingências. É claro que, se tais excessos ou déficits compõem o repertório do indivíduo, eles têm sido reforçados positiva e/ou negativamente. Mas é essencialmente em função do controle aversivo que um repertório se torna socialmente inadequado ou indesejado (SIDMAN, 2009). 

Essa é uma visão funcionalista dos quadros psiquiátricos que apresenta como vantagem o oferecimento de uma explicação pragmática, contextual e histórica a respeito da existência do comportamento dito anormal. Entender como esse repertório se instalou e como ele se mantém, fornece ao clínico material de trabalho mais sólido e amplia suas possibilidades de análise e intervenção. É importante ressaltar que o entendimento da Análise do Comportamento quanto à classificação diagnóstica com base em descrições topográficas dos quadros psiquiátricos não desconsidera a importância da utilização dos manuais diagnósticos na abordagem do sofrimento psicológico. Esses manuais descrevem padrões comportamentais prováveis de ocorrer e, assim, oferecem uma visão genérica e inicial que favorece possíveis condutas ao clínico em Psicologia e/ou Psiquiatria. Entretanto, essa apresentação em forma de topografia não explica sobre a pessoa que se comporta e não fornece elementos compreensivos sobre as causas de tal comportamento. Uma abordagem mais completa dos quadros psiquiátricos deve incluir, portanto, descrição e classificação de padrões comportamentais e suas implicações clínicas, sociais e ocupacionais para o indivíduo bem como a compreensão dos aspectos funcionais do repertório que se pretende explicar. Compreender que o sofrimento do indivíduo é função de um conjunto de contingências presentes em sua história de vida tem um efeito revelador para clínico e para o cliente, além de ampliar as possibilidades de condutas terapêuticas não só dos profissionais que acompanham o cliente, mas, ainda, de sua família e de todos aqueles envolvidos em seu círculo social.

Referências

Banaco et al. (2012). Psicopatologia. In: HUBNER, Maria Martha Costa; MOREIRA, Márcio Borges (org.). Temas Clássicos da Psicologia sob a Ótica da Análise do Comportamento. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan.

Cruz, R. N. DA .; Cillo, E. N. P. D. E. (2008). Do mecanicismo ao selecionismo: uma breve contextualização da transição do behaviorismo radical. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 24, n. 3, p. 375–385..

Scliar, M.(2007). História do conceito de saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 17, n. 1, p. 29–41.

Sidman, M. (2009). Coerção e suas implicações. Campinas: Editora Livro Pleno.

SKINNER, B. F. (1974). Sobre o Behaviorismo. São Paulo: Cultrix.

SKINNER, B. F. (2007). Seleção por conseqüências. Rev. bras. ter. comport. cogn.,  São Paulo ,  v. 9, n. 1, p. 129-137.   Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-55452007000100010&lng=pt&nrm=iso>. acessos em  03  set.  2023.

VARGAS, Ernst A. (2007). O Comportamento Verbal de B. F. Skinner: uma introdução. Rev. bras. ter. comport. cogn.,  São Paulo ,  v. 9, n. 2, p. 153-174. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-55452007000200002&lng=pt&nrm=iso>. acessos em  03  set.  2023.

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Escrito por Regienne Peixoto

Psicoterapeuta analítico-comportamental de adultos. Docente de disciplinas de Análise do Comportamento no Centro Universitário UNDB em São Luís-MA. Graduada em Psicologia pela UNAMA. Especialista em Saúde Mental pela UEPA. Mestra em Teoria e Pesquisa do Comportamento pela UFPA.

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