Wolfgang Köhler, Da Prússia com Amor

Entre cartas, rádios piratas e rumores. o Köhler além dos primatas.

Da série “Os Veteranos das Guerras Psíquicas” #2.

Figura 01. Música tema do Filme Moscou contra 007 (From Russia with Love, EON Production, USA-UK, 1963).

Com o perdão pela corruptela do nome original do filme Moscou contra 007 (007 – From Russia with Love, EUA-UK, 1963), mas o texto de hoje é um dos petardos de curiosidade da história da psicologia. Um mistério cinematográfico de um personagem de rica história e que aqui será apenas brevemente discutido pelo seu papel como algo mais que pesquisador num território estrangeiro, insular e remoto.

Wolfgang Köhler nasceu em Reval (território da atual Tailin, Estônia) no ano de 1887. De pais alemães, Köhler estudou nas Universidades de Tübingen e Berlin, tendo concluído seu doutorado em 1909 sobre psico-acústica com orientação de Carl Stumpf, importante psicólogo do início do século XX. Em 1910, após a obtenção de seu título de doutor, Köhler começaria um período de pesquisa junto ao laboratório de Max Wertheimer. No Instituto Psicológico da Academia de Frankfurt, Wertheimer usaria o próprio Köhler e Kurt Koffka como seus primeiros sujeitos de pesquisa nos experimentos em Psicologia da Gestalt.

Figura 02: Genealogia acadêmica de Wolfgang Köhler (adaptada de neurotree.org).

Do entusiasmo que Köhler nutriu no tempo com Wertheimer, Köhler planejava uma linha de pesquisa em psicologia da Gestalt com humanos, planos que mudaram repentinamente quando ele foi recrutado pela Academia Prussiana de Ciências em 1913 para ocupar a posição de coordenador da estação de pesquisa de macacos antropoides nas Ilhas Canárias, território espanhol próximo à costa noroeste da África. A história até aqui é clara e bem documentada. Em grande medida, você encontrará essa história em qualquer bom livro de história da psicologia. A curiosidade começa com a descoberta de novos fatos que parecem indicar que Köhler teria atuado como espião do governo alemão nas Ilhas Canárias ao longo de seus sete anos (1913-1920) como responsável pela unidade de pesquisa na Ilha de Santa Cruz de Tenerife durante a Primeira Guerra Mundial (WWI, sigla para World War I).

Quando foi alocado nas Ilhas Canárias, Köhler esperava ocupar uma posição provisória que duraria apenas o ano de 1914. Contudo, com a explosão da WWI em julho de 1914, o reservista Köhler buscou o consulado alemão local para alistar-se no exército alemão. Todavia, ao invés de ser absorvido pelo esforço de guerra do exército alemão, Köhler seguiu em sua posição de chefe de pesquisa da estação de Tenerife não apenas pelo restante de 1914 como até após o fim da guerra em 1920. Até aí, nada demais, correto?

Figura 03: Mapa da Ilha de Tenerife. Extraído de Ley, 1997

Na estação alemã de pesquisa sobre antropóides Köhler trabalharia com um conjunto de primatas antropóides, principalmente chimpanzés. Quando Köhler notou pela primeira vez um de seus chimpanzés (chamado Sultão) empilhando algumas caixas para alcançar um cacho de banana, ele o chamou de Einsicht, a palavra alemã para inteligência, discernimento e conhecimento, mas foi traduzida para o inglês como “insight”. O insight de Köhler foi definido como uma mudança repentina na consciência e relatado em seu livro Intelligenzprüfungen an Anthropoiden, em inglês The Mentality of Apes, ou numa tradução literal para o português “A Inteligência dos Macacos”, descrevendo sua pesquisa durante seu tempo no Instituto da Academia Prussiana de Ciências em Tenerife (nas Ilhas Canárias). Köhler entendeu suas descobertas como evidências contra a estreiteza da psicologia associativa inicial incorporada no behaviorismo de John Watson. O vídeo abaixo mostra é um trecho de um programa da National Geographic com trechos de um filmagens originais do trabalho de Kohler com Sultão na estação de pesquisa. Um legado eternizado nos livros de história de Psicologia até hoje. Todavia, há uma ressalva importante a se fazer sobre a presença desses primatas na estação.

Figura 04. Chimpanzés solucionando o problema de empilhar caixas e de conectar peças. Trecho de vídeo do Canal National Geographic e originais na Academia Prussiana de Ciências.

A Ilha de Santa Cruz de Tenerife não possui nenhum chimpanzé ou grande primata nativo nessa ilha ou se quer no arquipélago das ilhas canárias. Instalar uma estação de pesquisa ali exigia um custo logístico que poderia ser reduzido se instalada em outra parte da África Continental. Se a Alemanha ainda tinha territórios e aliados em território continental, instalar uma estação de pesquisa em Tenerife parecia agregar um custo cuja justificativa poderia estar para além dos interesses que a pesquisa sobre primatas antropóides trazia. Desde o pré-guerra, Kohler já havia declarado em cartas sobre os rumores que circulavam na ilha à respeito de sua presença ali. Segundo ele, um senhor inglês havia espalhado o boate de que ele [Köhler] era um espião alemão naquelas terras. Rumor desmentido na mesma carta. Contudo, fontes primárias do escritório britânico de assuntos estrangeiros sobre a I Guerra Mundial apontam para atividade de espionagem na ilha. Uma atividade balizada pelo governo alemão e feita por agentes de formação qualificada. Ley (1997) e Teuber (1994), dois historiadores dessa atividade de espionagem, estão de acordo que não há evidência do engajamento de Köhler na prática de espionagem pré-guerra. Ainda assim, após o início da guerra, o contexto mudaria profundamente e a rotina do trabalho de campo de Köhler mudaria. Ao laboratório se somaria o front de inteligência e os riscos de bombardeio, prisão, tortura e morte.

Em sua casa em Tenerife, Köhler tinha os meios e os fins para espionar os inimigos da Alemanha na primeira grande guerra. Entre os meios, estão uma posição estratégica nas ilhas Canárias e uma estação e uma casa com estrutura para transmissão de rádio desde a ilha até porções continentais e navios alemães. O mapa da figura 02 destaca a posição da casa de Köhler na ilha, marcada com um “X”. uma posicação virada para o norte, que permitia vislumbrar navios circulantes pela entrada do mediterrâneo e transmitir em rádio para outros territórios continentais na África e na Europa. Conhecer o fluxo de navios na conexão do Mediterrâneo com o Atlântico era fundamental à marinha alemã. E as Canárias um ponto de vigilância provilegiado.

Ainda assim, contexto social não seria suficienta para ditar ações que pdoeriam colocar a vida de si e de sua família em risco. Köhler precisaria de motivações mais próximas. De ordem governamental e pessoal. De um lado, ele recebera uma convocatória direta do governo alemão para que Köhler continuasse em Tenerife (Ley, 1990). Por outro, o próprio Köhler declarava em cartas seu interesse e engajamento com sua nação, um compromisso que sustentaria em sua vida pública no retorno à Alemanha da República de Weimar no seu retorno após a I Guerra Mundial, e depois em suas críticas ao regime Nazista.

O período de Köhler em Tenerife terminou em 1920. Ele voltou para o território continental da Alemanha e ocupou por dois anos uma posição como professor em Gottingen (1920-1922), mas rapidamente conquistaria uma posição na Universidade de Berlin onde permaneceria até 1935. Neste tempo, voltaria a cooperar com Wertheimer e Koffka, orientaria a brilhante psicóloga Hedwig von Restorff (a qual se consagraria pela descrição do efeito von Restorff; Restorff, 1933), e em Berlin Köhler onde escreveria uma de suas obras mais influentes até hoje, o livro Gestalt Psychology (Köhler, 1929). Infelizmente a história de Köhler não termina nesse ciclo fecundo em Berlin. Köhler, como tantos outros cientistas e gestaltistas alemães, seria uma das vítimas do nazi-fascismo. No caso dele, como uma das poucas vozes dentro das universidades alemães de não judeus que se ergueram contra as leis anti-semitas do regime de Adolf Hitler iniciado em 1933. Kohler seria perseguido até se ver obrigado a deixar sua posição em Berlin e emigrar para os Estados Unidos da América em 1935. Uma história para outro dia. Talvez outra série.

Köhler viveu uma guerra e serviu seu país, talvez em mais de uma forma pelas evidências mencionadas aqui, mas foi perseguido como inimigo de sua pátria por defender a liberdade na educação e nas ciências e por defender o direito de um povo inteiro de não ser perseguido por sua identidade étnica e religiosa. Em tom jocoso, ele duvidava de que a radicalização do partido nazista pudesse acontecer, mas acabou padecendo deste radicalismo que menosprezou. De espião à exilado, Köhler seria um dos poucos que conseguiram costurar sua carreira na ciência mesmo depois de se mudar aos EUA. Um sobrevivente persistente. Mais um atributo de um bom espião, talvez.

Figura 05. Performance da Berlin Film Orchestra na BBC Proms 2011 Last Night Celebrations in Scotland. interpretação de “James Bond Medley”.

#OsVeteranosDasGuerrasPsíquicas

Referências

Ley, R. (1990). A whisper of espionage: Wolfang Köhler and the apes of Tenerife. Garden City, NY: Avery Publishing Group Inc.

Ley, R. (1997). Köhler and Espionage on the ISland of Tenerife: A Rejoinder to Teuber. The American Journal of Psychology, 110(2), 277-284.

Restorff, H. (1933). Über die Wirkung von Bereichsbildungen im Spurenfeld. Psychologische Forschung, 18(1), 299–342. DOI:10.1007/BF02409636.

Teuber, M. L. (1994). The Founding fo the primate station, Tenerife, Canary Islands. American Journal of Psychology, 107, 551-581.

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Escrito por Luiz Henrique Santana

Psicólogo (UFPA). Mestre em Neurociência e Cognição (UFABC). Doutorando em Psicologia Experimental (USP). Pesquisador do Departamento de Psicologia na University of California in Los Angeles e Analista de Pesquisa Freelancer na Pearson Educacional. Ex-professor de Neuropsicologia e Psicologia Experimental (Análise do Comportamento) em Universidades pública e privada no Brasil. Ex-pesquisador visitante no Institute of Neuroscience (Chinese Academy of Sciences). Membro e Coordenador Estudantil de assuntos de Pesquisa (Student Research Coordinator) da Association for Psychological Science Student Caucus. Diretor do projeto The Online Museum of Psychological Science.

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