Desvendando o Tratamento do TEPT no Brasil

Como terapeutas analistas do comportamento tratam do transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) no Brasil? Dados inéditos de uma pesquisa ainda não publicada, conduzida por mim e Luísa Santi neste ano de 2020, sob a orientação da Dra. Joana Singer Vermes e do Prof. Carlos Lopes Rodrigues, procuram lançar luz sobre esta questão ainda pouco estudada. A partir de uma amostra de terapeutas de todas as regiões do Brasil, esse survey, que é o primeiro do tipo no país, procurou identificar as abordagens adotadas no tratamento de TEPT.

Para isso, 208 participantes, médicos e psicólogos, todos com experiência em casos de TEPT, foram indagados sobre os modelos teóricos que baseiam suas intervenções, como são feitos os diagnósticos e quais os procedimentos específicos utilizados em terapia, dentre outros pontos. A expectativa é que esse trabalho ajude psicólogas, psicólogos e psiquiatras na reflexão sobre suas práticas ao lidarem com essa condição clínica tão impactante. Além disso, a partir do cotejamento com as recomendações da literatura, idealmente se poderia propiciar à comunidade acadêmica novas hipóteses de pesquisa e também auxiliar as instituições de ensino em geral a calibrar a oferta de cursos e treinamentos.

Dos respondentes, 25% declararam ter a análise do comportamento como matriz teórica, a terceira mais frequente, e 47% se disseram filiados à terapia cognitivo-comportamental (TCC), que foi a vertente com maior número de menções. Esse recorte é interessante para as leitoras e os leitores do Comporte-se, pois algumas intervenções de base comportamental aparecem entre as mais fortemente recomendadas pelas principais diretrizes internacionais de prática clínica, por terem eficácia mais comprovada em estudos controlados (Hamblen et al., 2019). Posto isso, entre aqueles que se autodefiniram como analistas do comportamento, as técnicas de relaxamento foram o tipo de procedimento terapêutico mais utilizado para cuidar das consequências do trauma, com 62,5% de menções. A seguir vieram mindfulness (50%), manejo afetivo (44%), reestruturação cognitiva (37,5%) e exposição prolongada (EP; 29%). Vale observar que 23% disseram não realizar qualquer procedimento padronizado, 12,5% apontaram aplicar o eye movement desensitization and reprocessing (EMDR), e 17% mencionaram usar práticas alternativas, como a acupuntura e o reiki. Adicionalmente, 10% citaram utilizar fármacos como procedimento de intervenção.

Comparando com os terapeutas que se identificaram com a abordagem cognitivo-comportamental, entre eles a reestruturação cognitiva foi o procedimento para tratamento do TEPT mais mencionado (81%), seguido das técnicas de relaxamento (74%), manejo afetivo (38,5%), mindfulness (36%), biofeedback (19%), EP (17,5%) e EMDR (10%). Neste grupo, práticas alternativas eram utilizadas por 14% dos profissionais, enquanto a hipnoterapia era uma ferramenta para 13% deles. De modo semelhante ao verificado com os analistas do comportamento, 15% citaram administrar fármacos, e apenas 5,5% declararam não utilizar qualquer procedimento padronizado.

As principais diretrizes clínicas internacionais para o tratamento do TEPT são aquelas publicadas pela American Psychological Association (APA), pela International Society for Traumatic Stress Studies (ISTSS), pelo British National Institute for Health and Care Excellence (NICE), pelo Phoenix Australia Centre for Posttraumatic Mental Health e pelo U.S. Department of Veterans Affairs and Department of Defense (VA/DoD) (Hamblen et al., 2019). O consenso entre elas é que a terapia do processamento cognitivo (CPT), a terapia cognitivo-comportamental focada no trauma, o EMDR e a EP são os tratamentos de primeira linha para o TEPT. Destaque-se que todos esses tratamentos têm um significativo componente de exposição ao evento traumático, razão pela qual são muitas vezes chamados de “psicoterapias focadas no trauma” (trauma-focused psychotherapies; TFTs; Schnurr, 2017). Há alternativas, não tão consensuais quanto as anteriores, mas que também contam com respaldo em algum grau, das quais podemos citar a psicoterapia eclética breve, a exposição por narrativa escrita, o treinamento de inoculação de estresse, a psicoterapia interpessoal, a terapia comportamental dialética (DBT), a terapia de aceitação e compromisso (ACT) e a psicoterapia psicodinâmica, entre outras (Hamblen et al., 2019).

Naturalmente, essas recomendações terapêuticas são baseadas em certas premissas, e tais premissas não são igualmente aceitas por toda a comunidade de psicólogos e psicólogas. Por exemplo, pode-se dizer que elas reproduzem um modelo médico, focado mais na doença e em seus sintomas do que na pessoa como um todo. Essa é sem dúvida uma preocupação relevante e, de fato, dentro dos próprios modelos psicológicos baseados em evidências científicas cresce o reconhecimento de que é importante caminhar cada vez mais rumo a práticas terapêuticas diretamente calcadas nas necessidades e na complexidade de cada caso, superando classificações diagnósticas rígidas e protocolos inflexíveis. Vide, por exemplo, o recente movimento em prol das terapias baseadas em processos e o sustentado interesse pelas abordagens transdiagnósticas (Gutner & Presseau, 2019; Hayes, Hofmann, & Stanton, 2020).

O delineamento da nossa pesquisa privilegiou a coleta de dados a respeito de procedimentos terapêuticos específicos, sem aferir diretamente os pacotes terapêuticos utilizados (CPT, TCC, ACT etc.), mas disponibilizando espaço para manifestações espontâneas de resposta. Dito isso, nas principais práticas clínicas reveladas pelos analistas do comportamento por meio desse levantamento, há elementos de várias das terapias mais recomendadas pelas diretrizes internacionais para o TEPT, embora poucas distintamente comportamentais. O mindfulness, por exemplo, faz parte de uma variedade de abordagens abrigadas sob o leque cognitivo-comportamental, principalmente a partir das contribuições das terapias contextuais funcionais (Hayes, 2004). Já o EMDR afasta-se da linhagem comportamental ao justificar a combinação de técnicas de exposição com rotinas de estimulação bilateral a partir de um modelo calcado na ideia de mecanismos mal adaptativos no processamento cognitivo das experiências traumáticas (Castelnuovo, Fernandez, & Amann, 2019).

No conjunto dos procedimentos preferencialmente adotados pelos analistas comportamentais, segundo a enquete, a exposição prolongada é aquele classificado como uma terapia de primeira linha pelas principais guidelines e, ao mesmo tempo, cuja conceitualização tem uma longa história no campo da ciência do comportamento, perpassando os paradigmas respondente e operante. Inclusive, vale lembrar que exercícios de exposição costumam ser descritos como parte da parcela “comportamental” das terapias cognitivo-comportamentais que os adotam (Vinograd & Craske, 2020). Nesse sentido, poderia ser surpreendente o achado de que não mais do que 29% dos analistas do comportamento brasileiros consultados apontaram a EP como procedimento de eleição para o cuidado do TEPT. No entanto, já se sabe que o uso relativamente limitado desse procedimento de exposição não acontece apenas no Brasil (de Jong et al., 2020; Deacon & Farrell, 2013). Pesquisas mostram que alguns dos principais obstáculos para a difusão e adoção dos exercícios de exposição são a escassez de oportunidades de treinamento especializado, as crenças e expectativas negativas sobre os resultados e a sensibilidade à ansiedade, do próprio terapeuta e do cliente (Olatunji, Deacon, & Abramowitz, 2009; Pittig, Kotter, & Hoyer, 2019).

A EP está longe de ser uma panacéia, mas talvez seja subutilizada, sozinha ou em conjunto com outras práticas clínicas. Afinal, sucintamente, a literatura aponta que as terapias baseadas em procedimentos de exposição (a) têm eficácia relativamente alta, seja quando comparadas a outras opções psicológicas ou em relação a fármacos; (b) são em regra seguras e toleráveis, além de muitas vezes preferíveis para os clientes e seus cuidadores, em face de alternativas menos ansiogênicas a curto prazo; e (c) têm taxas de abandono comparáveis às de outros tratamentos do TEPT, as quais são moderadas por diversos fatores além da exposição à memória traumática per se, tais como motivação, apoio social, gravidade dos sintomas, idade, situação de trabalho e estado civil do cliente, além de serem influenciadas por características pessoais e habilidades técnicas próprias do terapeuta (Deacon & Farrell, 2013; Imel et al., 2013; Lewis et al., 2020; Olatunji et al., 2009; Proença et al., 2019).

De acordo com a Força-Tarefa Presidencial sobre Prática Baseada em Evidências da Associação Americana de Psicologia, a decisão sobre o tratamento mais adequado a escolher para qualquer condição psicológica deve ser baseada no julgamento de um clínico experiente e treinado, nos valores e preferências do cliente e nas evidências científicas disponíveis (APA, 2006). Partindo do pressuposto de que mais informação e diálogo são sempre melhores do que menos, espera-se que os resultados aqui compartilhados dessa pesquisa inédita sobre as práticas adotadas por terapeutas brasileiros no tratamento do TEPT contribuam no sentido de difundir mais informação e ampliar tal diálogo, especialmente entre analistas do comportamento e psicólogos cognitivo-comportamentais.

Referências bibliográficas

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Castelnuovo, G., Fernandez, I., & Amann, B. L. (2019). Editorial: Present and future of EMDR in clinical psychology and psychotherapy. Frontiers in Psychology, 10:2185. doi:10.3389/fpsyg.2019.02185

de Jong, R., Lommen, M., van Hout, W., de Jong, P. J., & Nauta, M. H. (2020). Therapists’ characteristics associated with the (non-)use of exposure in the treatment of anxiety disorders in youth: A survey among Dutch-speaking mental health practitioners. Journal of anxiety disorders, 73, 102230. doi:10.1016/j.janxdis.2020.102230

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Gutner, C. A., & Presseau, C. (2019). Dealing with complexity and comorbidity: Opportunity for transdiagnostic treatment for PTSD. Current Treatment Options in Psychiatry, 6(2), 119–131. doi:10.1007/s40501-019-00170-2

Hamblen, J., Norman, S., Sonis, J., Phelps, A., Bisson, J., Nunes, V., … Schnurr, P. (2019). A guide to guidelines for the treatment of posttraumatic stress disorder in adults: An update. Psychotherapy, 56(3), 359–373. doi:10.1037/pst0000231

Hayes, S. C. (2004). Acceptance and commitment therapy, relational frame theory, and the third wave of behavioral and cognitive therapies. Behavior Therapy, 35, 639-665. doi:10.1016/ S0005-7894(04)80013-3

Hayes, S. C., Hofmann, S. G., & Stanton, C. E. (2020). Process-based functional analysis can help behavioral science step up to novel challenges: COVID-19 as an example. Journal of Contextual Behavioral Science, 18, 128–145. doi:10.1016/j.jcbs.2020.08.009

Imel, Z. E., Laska, K., Jakupcak, M., & Simpson, T. L. (2013). Meta-analysis of dropout in treatments for posttraumatic stress disorder. Journal of Consulting and Clinical Psychology, 81(3), 394–404. doi:10.1037/a0031474

Lewis, C., Roberts, N. P., Gibson, S., & Bisson, J. I. (2020). Dropout from psychological therapies for post-traumatic stress disorder (PTSD) in adults: Systematic review and meta-analysis. European Journal of Psychotraumatology, 11(1), 1709709. doi:10.1080/20008198.2019.1709709

Olatunji, B. O., Deacon, B. J., & Abramowitz, J. S. (2009). The cruelest cure? Ethical issues in the implementation of exposure-based treatments. Cognitive and Behavioral Practice, 16(2), 172–180. doi:10.1016/j.cbpra.2008.07.003

Pittig, A., Kotter, R., & Hoyer, J. (2019). The Struggle of behavioral therapists with exposure: Self-reported practicability, negative beliefs, and therapist distress about exposure-based interventions. Behavior therapy, 50(2), 353–366. doi:10.1016/j.beth.2018.07.003

Proença, C. R., Markowitz, J. C., Prado, E. A., Braga, R., Coimbra, B. M., Mello, T. F., Maciel, M. R., … Mello, M. F. (2019). Attrition in interpersonal psychotherapy among women with post-traumatic stress disorder following sexual assault. Frontiers in Psychology. 10:2120. doi:10.3389/fpsyg.2019.02120

Schnurr, P. P. (2017). Focusing on trauma-focused psychotherapy for posttraumatic stress disorder. Current Opinion in Psychology, 14, 56–60. doi:10.1016/j.copsyc.2016.11.005

Vinograd, M., & Craske, M. G. (2020). History and theoretical underpinnings of exposure therapy. In T. S. Peris, E. A. Storch, & J. F. McGuire (Eds.), Exposure therapy for children with anxiety and OCD: Clinician’s guide for integrated treatment (pp. 3–20). doi:10.1016/B978-0-12-815915-6.00001-9

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Escrito por Michelli Cameoka

Psicóloga comportamental. Mestranda em Psicologia Clínica na UnB. Graduada pelo UniCEUB. Formação em análise comportamental clínica pelo Instituto Brasiliense de Análise do Comportamento (IBAC). Especializada em Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT), Teoria das Molduras Relacionais (RFT) aplicada à clínica e em sua integração às terapias de exposição voltadas ao TOC, ao TEPT e aos transtornos de ansiedade em geral. Concluiu o ACT BootCamp®️ na Filadélfia (EUA), com Steven Hayes, Kelly Wilson e Robyn Walser, bem como o treinamento intensivo de Exposição e Prevenção de Resposta (EPR) do Centro para o Tratamento e Estudo da Ansiedade, da Universidade da Pensilvânia, fundado por Edna Foa. É membro da Association for Contextual Behavior Science (ACBS). Lattes: http://lattes.cnpq.br/1155921146785360. e-mail: micameoka@gmail.com

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