História de um casamento: a dor de se relacionar

Alerta: Esse texto contém spoilers.

No final de 2019 foi lançado o filme “História de um Casamento”, pela Netflix. Muito bem recebido pela crítica, o filme conta a história de Nicole e Charlie, um casal que está no início de um processo de divórcio. Não por acaso, a cena inicial do filme mostra a leitura de cada um sobre o que mais gosta na outra pessoa – tarefa solicitada por um mediador do processo de divórcio e que termina não saindo como planejada. Ao longo do filme, Nicole e Charlie precisam se deparar com diferentes transformações dos sentimentos que têm um pelo outro e do significado da sua história juntos.

Em uma das cenas mais bonitas do filme, Charlie se emociona cantando uma música quando está em um bar com amigos. A música – Being Alive, de Stephen Sondheim, parte do musical Company – é muito interessante para pensar nas diferentes formas com as quais podemos lidar com nossos sentimentos e no impacto do estabelecimento de uma relação entre esses sentimentos e um contexto de valor. Segure essa informação; vamos voltar a ela mais tarde.

No contexto da Terapia de Aceitação e Compromisso, falamos de uma questão central: a esquiva experiencial, isto é, a tendência humana de se afastar de pensamentos e/ou sentimentos que sejam desagradáveis ou indesejados. Procuramos nos afastar ao máximo de tudo o que nos faça ou mesmo possa vir a nos fazer sofrer. No contexto de um relacionamento, é comum que nos afastemos do nosso parceiro quando nos deparamos com algo doloroso. Posso sentir falta do meu parceiro e reagir a isso me afastando emocionalmente em vez de me aproximar, temendo expressar meu desejo de afeto e ser rejeitada, por exemplo. Ou podemos nos afastar de alguém de quem tenhamos vontade de nos aproximar por conta do medo de um possível sofrimento. De repente aquela pessoa fala sobre ter saído recentemente de um relacionamento e isso me remete a uma relação prévia que me fez mal. Reajo a isso, então, me afastando de um envolvimento para evitar a possibilidade de sofrer como sofri no passado.

Podemos pensar em milhares de exemplares que mostram como é fácil nos afastarmos de relações significativas pelo medo do sofrimento. Nesse momento nos deparamos com algumas perguntas: O quão importante é, para mim, desenvolver uma relação amorosa e íntima? Que tipo de relação eu gostaria de desenvolver com um parceiro? A ACT trata disso quando fala de valores. O quão valoroso é, para mim, estar nessa relação? O que torna essa relação valorosa?

Imaginemo-nos na posição de terapeutas por um momento. Imaginemos que nosso cliente é o Charlie, de História de um Casamento. Vamos extrapolar o retratado pelo filme e imaginar que Charlie vem para a terapia e fala do sofrimento de uma relação, mas que conseguimos compreender que é valoroso para ele estabelecer relações que tenham características de amor, carinho e respeito. É aí que entra um termo importante da ACT que muitas vezes confunde um pouco a nossa cabeça: a recontextualização verbal. Esse é um ponto em que uma intervenção ACT vai divergir de uma intervenção cognitivo-comportamental. Nosso foco com a recontextualização verbal será o de modificar não ao conteúdo do que nosso cliente está dizendo, mas ao seu contexto. Voltemos àquela música[1] que falei mais cedo. Lembra dela? Vamos dar uma olhada na letra, da forma como passa no filme. O narrador está nos falando sobre o que seria estar em um relacionamento:

Música:

Someone to hold you too close (Alguém que abrace você de perto demais)
Someone to hurt you too deep (Alguém que magoe você profundo demais)
Someone to sit in your chair (Alguém que sente na sua cadeira)
To ruin your sleep (Que faça você perder o sono)

Diálogo:

Pessoa 1: That’s true, but there’s more to it than that.(É verdade, mas não é só isso)Pessoa 2: Is that all you think there is to it?(Você acha que é só isso?)

Pessoa 3: You’ve got so many reasons for not being with someone, Robert, but you haven’t got one good reason for being alone. (Você tem tantas razões para não estar com alguém, Robert, mas você não tem nenhuma boa razão para estar sozinho)
Pessoa 4: Come on, you’re on to something, Bobby. You’re on to something. (Vamos lá, você está chegando em algum lugar, Bobby. Está chegando em algum lugar)

Música:

Someone to need you too much (Alguém que precise demais de você)
Someone to know you too well (Alguém que conheça você bem demais)
Someone to pull you up short (Alguém que ponha você contra a parede)
To put you through hell (Que jogue você no inferno)

Diálogo:

Pessoa 1: You see what you look for, you know. (Você enxerga o que procura ver, você sabe)
Pessoa 2: You’re not a kid anymore, Robby. I don’t think you’ll ever be a kid again, kiddo. (Você não é mais criança, Robbie. Acho que nunca voltará a ser criança, rapaz)

Música:

Being alive (Estar vivo) 

Being alive (Estar vivo) 

Being alive (Estar vivo)

Diálogo:

Pessoa 1: Blow out the candles, Robert, and make a wish. Want something. Want something! (Sopre as velinhas, Robert, e faça um pedido. Queira alguma coisa. Queira alguma coisa!)

Somebody hold me too close (Que alguém me abrace de perto demais)
Somebody hurt me too deep (Que alguém me magoe profundo demais)
Somebody sit in my chair (Que alguém sente na minha cadeira)
And ruin my sleep (Que me faça perder o sono)

And make me aware (E me deixe consciente)

Of being alive (De estar vivo)

Being alive (Estar vivo)

Somebody need me too much (Que alguém precise de mim demais)
Somebody know me too well (Que alguém me conheça bem demais)
Somebody pull me up short (Que alguém me bote contra a parede)
And put me through hell (E me jogue no inferno) 

And give me support (E me dê suporte) 

For being alive (Para estar vivo)

Make me alive (Me faça estar vivo) 

Make me alive (Me faça estar vivo) 

Make me confused (Me deixe confuso) 

Mock me with praise (Zombe de mim com elogios)
Let me be used (Me deixe ser usado)
Vary my days (Diversifique os meus dias)

But alone (Mas sozinho)
Is alone (É sozinho)
Not alive (Não vivo)

Somebody crowd me with love (Que alguém me sufoque de amor)
Somebody force me to care (Que alguém me force a me importar)
Somebody make me come through (Alguém que me faça estar a altura)
I’ll always be there (Eu sempre estarei lá)
As frightened as you (Tão assustado quanto você)
To help us survive (Para nos ajudar a sobreviver)
Being alive (Estar vivo)
Being alive (Estar vivo)
Being alive (Estar vivo)

Leia essa letra com atenção. O que acontece com o narrador na medida em que vai falando? Inicialmente ele está nos contando todos os motivos pelos quais ele não deveria se envolver em uma relação. Fala de alguém que vai tirá-lo da sua zona de conforto, que vai fazê-lo passar por coisas pelas quais não gostaria de passar. Só que ao decorrer da sua fala, algo acontece. Ele continua falando de aspectos que podem ser considerados pouco agradáveis, mas parece que algo muda no contexto. Estar nesse lugar desconfortável parece ter a ver com algo valoroso para esse narrador, algo que o faça se sentir vivo. E é isso que tanto nós, terapeutas, quanto nossos clientes, muitas vezes temos dificuldade para nos lembrar.

Pensemos nas molduras relacionais: o desconforto, a dor, o incômodo e todos os defeitos do nosso parceiro parecem estar em uma relação de oposição com o próprio relacionamento. Se eu sofro, logo há algo de errado nesse relacionamento. Se eu me sinto sufocada, logo preciso sair da relação. Se sinto medo, preciso fazer algo a respeito. Na recontextualização verbal procuraremos estabelecer relações de coordenação. Sim, haverá dor, desconforto, medo. E haverá amor, vitalidade, sentido. O parceiro que me traz uma coisa é o mesmo que me traz a outra. Não pretendo com isso dizer que vai ser bacana ou mesmo tranquilo nos mantermos em um relacionamento e sentirmos a dor que vem dele, mas digo que essa dor não precisa ter a função aversiva de nos mandar correndo na direção oposta. Posso me sentir assustada, triste ou irritada e agir de forma a me aproximar do meu parceiro. O trabalho com valores consiste em estabelecer uma direção de caminhada, um sentido. A partir daí, as ações valorosas são estabelecidas em relação de hierarquia com o meu valor. Pensamos: considerando que a minha direção é uma relação de amor, carinho e respeito, quando me sinto irritada ou magoada e ajo de forma a magoar o meu parceiro, estou me aproximando ou me afastando dos meus valores?

Um ponto aqui se faz importante de ser lembrado: valores não têm a ver com metas. Isso significa que me manter na direção de uma relação de amor, carinho e respeito não está necessariamente relacionado a manter um casamento, por exemplo. E o filme História de um Casamento ilustra isso brilhantemente. Após um processo difícil de divórcio, Charlie e Nicole finalmente conseguem estabelecer uma relação de amor, carinho e respeito – separados. Retornando ao nosso Charlie hipotético, poderíamos dizer que a ACT fez o que se propôs a fazer: ajudar o cliente a lidar com eventos privados difíceis e ainda assim caminhar em direção aos seus valores.

Estamos falando aqui de, ao mesmo tempo, aprendermos e tentarmos ensinar, para aquelas pessoas para as quais intimidade é um valor dentro do seu relacionamento, que sofrer quando se é pelo outro também está em uma relação de hierarquia com – isto é, faz parte de – estar vivo. É função ao mesmo tempo que contexto, respeitando o conteúdo em vez de negá-lo.


[1] Caso você queira assistir esse momento no filme, ele começa às 2:00:48.

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Escrito por Aline Simões

Aline Simões é psicóloga clínica e trabalha com crianças, adolescentes e adultos. É mestre em Psicologia Social, pela Universidade Federal da Bahia e especialista em Terapias Contextuais pelo Instituto de Psicologia Contextual de Madrid.

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