Um luto pouco falado – mas muito sentido: perder o terapeuta

Imagem retirada de https://br.depositphotos.com/stock-photos/rosas-luto.html

Falar sobre perdas incomoda – em diversos aspectos.

Acolher e ser empático requer de quem ouve o lamento o repertório de colocar-se no lugar de quem sofreu a perda, imaginar-se perdendo algo que é muito estimado e, mais do que isso, oferecer algo que conforte e respeite o que está sendo vivido. Se quisermos sofisticar este repertório de quem acolhe, falaremos de criar condições favoráveis para o outro lidar com a perda – e a tão difícil necessidade de seguir em frente.

Estar diante de alguém em sofrimento por um luto, muito possivelmente, irá despertar sentimentos em quem ouve, mas não necessariamente sofreu a mesma perda: o medo de perder pessoas queridas, ou mesmo a lembrança de quem já se foi e, junto com ela, todos os sentimentos envolvidos.

Até este ponto, o leitor pode não ter se deparado com nada novo. Lidar com perdas sofridas pelos outros nos coloca em uma posição de desconforto (seja produto de empatia ou pela nossa própria dor).

Terapeutas se deparam com certa frequência com o relato de seus clientes sobre diversas perdas sofridas: relacionamentos rompidos, óbito de familiares, amigos, personalidades influentes. Pessoas que fizeram parte da história ou que estavam até poucos momentos presentes na vida dos clientes. Mas uma perda em especial pode ser pouco recorrente, ou mesmo ter suas especificidades: e quando o paciente está sofrendo porque perdeu seu antigo terapeuta?

O cliente pode falar sobre isso na sessão? Confidenciar as dores desta perda a alguém que irá, a partir de então, representar um papel semelhante? Muito além de poder, ele precisa disto!

Vamos nos lembrar de que, ao falar de alguém querido que se foi, estamos entrando em um baú riquíssimo de sentimentos e comportamentos do nosso cliente: quem ele era na presença do terapeuta? Qual o tipo de vínculo que se construiu: o cliente conseguiu confiar, ser recíproco (no que cabe à relação terapêutica), ser sensível, soube se colocar em um lugar de receber cuidado, mas também de assumir-se como responsável pelo seu desenvolvimento pessoal?

E a outra direção da relação: o que a interação com o terapeuta lhe proporcionava? Acolhimento, reconhecimento de suas dores, valorização de suas potencialidades, respeito ao seu sofrimento, sem colocá-lo no papel e vítima de sua história? Oportunidades para se reinventar, aprender a ser mais e melhor em sua vida para fora do ambiente terapêutico?

Ao conhecermos sobre o processo psicoterapêutico anterior, poderemos conhecer dados muito relevantes sobre o repertório do nosso cliente.

Se entendermos que nossos clientes se assemelham a um quebra-cabeças (imagine uma bela paisagem), o terapeuta pode vir a ser alguém que conhece um conjunto bem grande destas peças, ou algumas delas com riqueza de detalhes sem igual. Pode ser que cada pessoa com quem o cliente interage conheça um conjunto diferente delas: a família pode conhecer -e ser – as peças que compõem o lago da paisagem; alguns amigos, as peças que compõem o céu; o parceiro amoroso, as peças que formam a bela vegetação em volta do lago. Cada um conhece muito bem um pedaço daquela paisagem e traços das demais. O terapeuta, se tiver tido sucesso, poderá ter se debruçado com profundidade sobre diversas destas peças, tão gradativamente apresentadas pelo seu cliente, e com muito esforço, montadas para compreender e buscar a harmonia entre todas as peças.

Como é difícil para o cliente perder alguém que o conhece tão bem e o acompanha nesta jornada de explorar suas próprias peças. Igualmente difícil pode ser se expor a uma nova tentativa: como será que o novo terapeuta irá lidar com as tantas peças?

Entendo que o número de peças deste quebra-cabeças se amplie ao longo da história de vida do cliente – e de todos nós. E, assim como as demais peças do quebra-cabeças, a perda do terapeuta precisa ser um tema da terapia (mais peças se juntam à paisagem que já existia). Talvez a dor da perda seja ainda tão forte, recente, ou impactante, que se tenha que cuidar disso antes de olhar para as outras peças do quebra-cabeças.

Esta perda pode não ser considerada relevante em outros contextos – pode ser banalizada e, com isso, tornar-se mais um motivo de sofrimento. É preciso que o ambiente de terapia e, sobretudo, a nova relação terapêutica, sejam espaço para lamentar, sentir e cicatrizar esta perda. De maneira similar ao enfrentamento dos demais temas tão caros para os nossos clientes. Que seja uma dor permitida, não alimentada, porém respeitada e suportada.

Referências:

https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2023/02/08/apos-a-morte-do-meu-psicologo-demorei-um-ano-para-voltar-a-terapia.htm

Guilhardi, H. J. (2004). Considerações sobre o papel do terapeuta ao lidar com os sentimentos do cliente. In M. Z. S. Brandão et al. (Orgs). Sobre Comportamento e Cognição – Contingências e Metacontingências: Contextos Socioverbais e o Comportamento do Terapeuta. (Vol. 13, pp. 229-249). Santo André: ESETec Editores Associados.

3.5 2 votes
Article Rating
Avatar photo

Escrito por Marília Zampieri

Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de São Carlos - UFSCar, Especialista em Psicologia Clínica Comportamental pelo Instituto de Terapia por Contingências de Reforçamento - ITCR-Campinas, Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de São Carlos - UFSCar. Atua como psicóloga clínica e supervisora de atendimentos a adultos em Campinas - SP e online, e como supervisora dos cursos de especialização do ITCR - Campinas.
Possui acreditação como Analista do Comportamento pela ABPMC.

HABILIDADES SOCIAIS NA ADOLESCÊNCIA E INTERNET

Queixas de depressão e o trabalho clínico