Decolonizando a identidade sob uma perspectiva analítico comportamental

Ser branco ou negro? Eis a questão! [1]

Um breve olhar skinneriano para o conceito de identidade

Para Skinner, nós somos sujeitos enquanto uma relação, já que uma das nossas principais heranças filogenéticas é nossa suscetibilidade ao condicionamento operante. [1] Isso significa que o ser humano constrói a si mesmo em sua relação com o ambiente, alterando as variáveis externas a ele e sendo alterado por elas.

Nesse sentido, Skinner rejeita a ideia de um self como entidade causadora de comportamentos. O “eu” é um conjunto de respostas que costumam aparecer com maior frequência por causa de seu histórico de reforçamento e que possuem uma certa relação entre si. Esses conjuntos são evocados diante de situações específicas ou ambientes específicos. Além disso, Skinner salienta a relação que a identidade tem com o auto-relato, i.e a capacidade de identificar e descrever o próprio comportamento, incluindo os eventos privados. [2]

Por fim, é feita uma diferenciação entre “pessoa” e “self”.Self é entendido como um conjunto de respostas encobertas com uma maior probabilidade de ocorrência e que são possibilitadas pela aprendizagem resultante da exposição a uma comunidade verbal e que sofre impacto direto das variáveis culturais. Sendo assim, self é a autopercepção e relato de estados internos do “mundo debaixo da pele” produzidos pela exposição a contingências de reforçamento e que adquiram função de Spelas contingências verbais. [2]

Identidade e negritude em Fanon

No livro Pele negra, máscaras brancas, Frantz Fanon [3] relata como o homem negro é construído pelo branco e como uma relação primeiro econômica e sócio-política é depois “internalizada” pelo sujeito, gerando o que ele chama de “epidermização da inferioridade”. [2]

Em diversos momentos do livro, o autor relata que os moradores da Martinica, uma ilha no Caribe, não se vêem como negros. Segundo Fanon eles se vêem primeiramente como martinicanos e, depois, como sujeitos mais próximos da metrópole (França) do que de outros povos negros de Africa por exemplo.  Eles descrevem povos como os senegaleses como “inferiores”, classificando-os como realmente negros, já que são “selvagens e pouco civilizados”.

Essa dinâmica é sustentada por diversas práticas culturais que passam desde a punição aos alunos nas escolas que falam o “crioulo” em Fort-de-France, até “mantras” que eles são ensinados a repetir – “nossos ancestrais, os gauleses” – e que constrói uma narrativa de uma ancestralidade branca. 

O homem negro em Fanon só existe em relação ao branco e, seu destino, é tornar-se branco. A negritude é um movimento de resistência dentro dessa lógica colonial que não se encerra em si mesma, mas visa em seu limite, a abolição da racialidade.

Fanon acredita que na cosmovisão do colonizado há uma impureza ou imperfeição que proíbe qualquer explicação ontológica de si. Isto é, do que ele é em relação ao mundo. Não basta ser negro, precisa ser negro em relação ao branco. Sua metafísica e suas instituições a qual o sujeito se refere a nível de identidade foram abolidas por estarem em contradição com uma nova civilização que impôs sua própria cosmovisão, a do colonizador.

E como olhar para esses fenômenos a partir de uma perspectiva analítico comportamental?

Infelizmente a produção acadêmica sobre o pensamento decolonial e a análise do comportamento é quase nula. Considerando que existe uma aproximação topográfica além de interrelações e conexões entre o pensamento decolonial e a negritude, utilizarei, a nível de análise, parte da produção acadêmica (que ainda incipiente, existe) sobre a negritude e a racialidade na análise do comportamento.

Como o self tem impacto direto das variáveis culturais, como descrito anteriormente, é fácil sugerir que o repertório verbal que é ensinado para o sujeito colonizado está já “contaminado” por essas relações e associações que são feitas entre características físicas do homem negro e tatos pejorativos.

Fanon descreve um dos mecanismos de manutenção da relação colonial como sendo a indústria cultural. Por exemplo, uma história de quadrinhos onde o herói é branco e o vilão negro ou de uma outra etnia.

Um processo parecido é descrito por Mizael e Rose [4] que propõe uma análise de como se constroem, a nível ontogenético, essas relações raciais. Os autores utilizam a  teoria das molduras relacionais (RFT). O preconceito e enviesamento racial,  nesse nível secundário de seleção, seria a capacidade dos indivíduos de criar relações contingentes entre eventos através de dicas contextuais, e.g, preto↔luto↔morte↔ruim, logo, preto↔ruim. O preto (cor) pode servir também como uma dica contextual para a derivação do oposto enquanto algo positivo (daí todas as relações simbólicas associadas ao branco como pureza e bondade por exemplo).

Essas associações e derivações que são determinadas onto-culturalmente são, então, aprendidas pelo sujeito colonizado, produzindo o fenômeno descrito anteriormente da epidermização da inferioridade. Como consequência, a autopercepção e o auto relato desse sujeito passa a ser baseado nesses tatos, mandos e intraverbais que compõem seu repertório verbal

Em determinado momento do livro, Fanon fala que esses significantes já estão tão internalizados que uma simples frase nos evoca sensações diferentes.

“Uma magnífica criança loura, quanta paz nessa expressão, quanta alegria e, principalmente, quanta esperança! Nada de comparável com uma magnífica criança negra, algo absolutamente insólito. Não vou voltar às histórias dos anjos negros. Na Europa, isto é, em todos os países civilizados e civilizadores, o negro simboliza o pecado.” (2008, p.160)

O colonizado, assim como judeu, se “deixa infectar” por esses estereótipos e vive com medo de fazer jus a eles. O homem negro é escravo da sua própria negritude.

Então num processo de mimesis (ou modelação) o sujeito colonizado tenta se afastar de todos essas descrições que foram lhe ensinadas ativa ou passivamente sobre si mesmo, passa a agir como o branco, aprende seu idioma, adere ao seu jeito de vestir e até sua postura, visando nesse processo se aproximar cada vez mais dele e ser reconhecido como um igual, portanto, tornar-se branco.

Além dos reforçadores sociais que existem em ser aceito em um grupo como um igual, esse fenômeno indica que o homem negro se vê preso nessa relação, onde o seu único caminho é buscar sua humanidade na branquitude, pois lhe faltam ferramentas para exercer um contracontrole.

Se esses processos de manutenção da colonialidade, que possuem uma função evidente para o contínuo exercício da exploração perpetrado pela metrópole, são desnudados, se todas essas relações funcionais e contingenciais entre as categorias verbais que compõem o repertório autodescritivo desses sujeitos são expostas; e se os determinantes sócio-político-econômicos envolvidos na violência colonial e no chamado racismo estrutural são explicitados, o sujeito colonizado pode enfim sair dessa falsa dicotomia, ou maniqueísmo delirante como descrito por Fanon e tornar-se enfim, humano.

O decolonialismo é um fenômeno social complexo que envolve a interação de variáveis de todos os níveis de seleção de forma intrincada. O objetivo dessa breve análise é começar a pavimentar um caminho que está diante de nós, porém esquecido.

Espero que esse breve texto incite a curiosidade a respeito do pensamento pós-colonial dos companheiros e companheiras que percebem o potencial que a análise do comportamento tem para descrever e explicar com maior clareza esses processos.

Por fim, Fanon nos diz:

“Em outras palavras, o negro não deve mais ser colocado diante deste dilema: branquear ou desaparecer, ele deve poder tomar consciência de uma nova possibilidade de existir; ou ainda, se a sociedade lhe cria dificuldades por causa de sua cor, se encontro em seus sonhos a expressão de um desejo inconsciente de mudar de cor, meu objetivo não será dissuadi-lo, aconselhando-o a “manter as distâncias”; ao contrário, meu objetivo será, uma vez esclarecidas as causas, torná-lo capaz de escolher a ação (ou a passividade) a respeito da verdadeira origem do conflito, isto é, as estruturas sociais” (2008, p. 95-96)


[1] “[…]o branco e o negro representam os dois pólos de um mundo, pólos em luta contínua, uma verdadeira concepção maniqueísta do mundo; a sorte está lançada, não nos esqueçamos: branco ou negro, eis a questão!” (Fanon, 2008, p.56)

[2] Importante ressaltar que é o que ele chama pois existem diferenças conceituais  e topográficas deste, com o Transtorno da Personalidade Esquiva, conhecido como popularmente “complexo de inferioridade” descrito pelo DSM V.


Referências

[1] Micheletto, N.; Sério, T. M. de A. P. Homem: objeto ou sujeito para Skinner? Temas em Psicologia, v. 2, p. 11-22, 1993.

[2] Moreira, F. R., Silva, E. F., Lima, G. D. O., Assaz, D. A., Oshiro, C. K. B., & Meyer, S. B. (2017). Comparação entre os conceitos de self na FAP, na ACT e na obra de Skinner. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 19(3), 220–237.

[3] Fanon, F. (2020). Pele negra, máscaras brancas (Portuguese Edition). Ubu Editora.

[4] Medrado Mizael, T., & César de Rose, J. (2017). Análise do Comportamento e Preconceito Racial: Possibilidades de Interpretação e Desafios. ACTA COMPORTAMENTALIA, 25(3), 365–377. http://www.revistas.unam.mx/index.php/acom/article/view/61632

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Escrito por Wueslle Thibes

Psicólogo clínico CRP 08/31872. Analista do Comportamento interessado em RFT, decolonialismo e pautas raciais. Email para contato: wueslle@gmail.com

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