O Modelo ACL para conceitualização/ formulação de caso em FAP

A motivação para esse texto veio de momentos em que ouço as dificuldades de terapeutas para realizarem a conceitualização de casos clínicos em FAP. De fato, não é uma tarefa muito fácil, pois a conceitualização em FAP costuma ter a compreensão ideográfica dos comportamentos do/a cliente. Isto é, os Comportamentos Clinicamente Relevantes (CCRs) podem assumir formas e funções únicas, a depender das variáveis contextuais históricas e atuais de cada cliente. No campo das pesquisas, isso não é diferente: as pesquisas mais frequentes em FAP costumam ser as de delineamento de sujeito único, justamente por conta das propriedades aparentemente únicas do CCR. Esse aspecto tem sido visto como um limitador no avanço das pesquisas em FAP, uma vez que a definição de um CCR depende de uma conceitualização de caso que costuma ser definida livremente de acordo com o entendimento do clínico/pesquisador (Maitland, Kanter, Manbeck & Kuckzynski, 2017).

Os livros clássicos da FAP já apresentavam modelos de conceitualização de casos clínicos (Kohlenberg & Tsai, 1991, Tsai et al, 2009). Instrumentos como o FIAT (Callaghan, 2006) também buscaram definir classes de respostas que poderia facilitar a compreensão do que definiriam os CCRs. As pesquisas que sucederam ao FIAT, contudo, utilizaram-no muito pouco. Dessa forma, os modelos até então propostos pareceram não cessar os problemas de compreensão sobre o que poderiam ser considerados CCRs para uma conceitualização de caso (Maitland et al, 2017).

Com base nessas questões, resolvi abordar de uma maneira mais simples o que tenho lido para facilitar conceituações de caso em FAP. Um artigo muito importante que vou utilizar ao longo desse texto é o de Maitland et al (2017): Relationship science informed clinically relevant behaviors in Functional Analytic Psychotherapy: The Awareness, Courage, and Love Model. Esse artigo apresenta uma maneira muito interessante, baseada no Modelo Consciência, Coragem e Amor (Modelo ACL), de compreendermos classes de resposta consideradas clinicamente relevantes quando o objetivo terapêutico é identificar e intervir sobre as dificuldades interpessoais que o/a cliente apresenta.

A proposta dos autores nesse artigo foi fornecer um modelo analítico de conceitualização estrategicamente abstrato (baseado no que se tem realizado no campo da ciência comportamental contextual) que até pode ser menos comportalmentalmente preciso em comparação às análises clássicas (em função da utilização de termos de nível médio – isso vale outro artigo que me interessa muito escrever logo mais!), mas que a linguagem adotada pode ser pragmaticamente benéfica para compreensão dos fenômenos interpessoais estudados. De forma geral, os autores consideram que o Modelo ACL pode auxiliar na validação de CCRs pré-especificados com base nos estudos já existentes sobre processos interpessoais e sociais e as dificuldades de interações que um/uma cliente pode apresentar.

O Modelo ACL proposto por Maitland et al (2017) é baseado nos estudos sobre processos interpessoais de intimidade empiricamente estabelecidos (Reis & Patrick, 1996; Reis & Shaver, 1988, citado por Maitland et al, 2017). Cordova e Scott (2001) definem intimidade como um processo no qual um comportamento interpessoal vulnerável à punição é emitido e, no lugar de ser punido, é reforçado pelo ouvinte. Nesses estudos citados por Maitland et al (2017), observam-se que as relações entre vulnerabilidade e responsividade são consideradas fundamentais para o estabelecimento de relacionamentos íntimos, sejam eles com família, amigos, com relacionamentos amorosos ou estranhos. O desenvolvimento de intimidade costuma ser um alvo frequente quando a FAP é utilizada, e nesse ponto a intimidade na relação terapeuta-cliente se torna importante para a generalização de comportamentos de intimidade do/a cliente para suas demais relações.

Com base nos estudos sobre intimidade, o Modelo ACL de conceitualização de caso apresenta oito habilidades comportamentais consideradas importantes para compreendermos os pontos interpessoais fortes e fracos de nossos clientes. A figura a seguir demonstra essas habilidades.

Figura 1. O Modelo Consciência, Coragem e Amor traduzido e adaptado de Maitland et al. (2017)

Para detalhar em um linguajar ACL, irei separar as discussões realizadas por Maitland et al (2017) nos conceitos de Consciência, Coragem e Amor. Sempre que for necessário, você pode olhar a Figura 1 para compreender melhor! Ao fim desse texto, acrescento aspectos importantes sobre os comportamentos do/a terapeuta quando a conceitualização de caso do/a cliente é realizada.

Consciência

Para desenvolver habilidades comportamentais que favorecem intimidade nas relações, é importante que o/a cliente apresente duas habilidades: consciência de si como falante (identificando seus valores, necessidades, sentimentos e identidade); e consciência do outro como ouvinte (conseguindo assumir a perspectiva do outro de maneira empática). A consciência de si e do outro são habilidades que maximizam comportamentos de coragem e amor mais bem-sucedidos. Quanto mais consciência de si e do outro, mais provável é que as expressões corajosas e amorosas sejam assertivas e produzam intimidade (Maitland et al, 2017).

É comum, no consultório, encontrarmos clientes que apresentam dificuldades em se perceberem, assim como há clientes que demonstram dificuldades em perceberem o outro. O/a terapeuta pode observar se o/a cliente apresenta dificuldades em ter consciência de si com perguntas evocativas como “o que você precisa hoje?”, “o que você está sentindo agora?”, “o que você gostaria que eu fizesse?”, assim como pode observar relatos do/a cliente que podem demonstrar essa dificuldade. Sobre a consciência do outro, o/a terapeuta também pode observar como o/a cliente reage quando o/a terapeuta se revela ou demonstra emoções, assim como pode fazer perguntas como “o que você acha que estou sentindo agora?”. Explorações que envolvem treino discriminativo contextual (história de vida que favoreceu a forma como se sente hoje e variáveis atuais que contribuem para a forma como vive as relações) também são importantes para o desenvolvimento da consciência de si e do outro.

Coragem

A coragem, nesse modelo, está ligada a três habilidades: conseguir se expressar emocionalmente, abrir-se nas relações, e perguntar/pedir. Compreende-se, nesse caso, que o comportamento vulnerável à punição interpessoal é considerado um ato de coragem na linguagem ACL. É comum identificarmos clientes que apresentam dificuldades interpessoais ligadas a realizarem ações como as descritas acima. É possível, também, que um/a cliente consiga ter consciência de si e do outro, mas apresente dificuldades em expressar suas necessidades emocionais em forma de atos corajosos. Nesse momento, a oportunidade de produzir contexto para a modelagem de autoexposição na relação terapêutica se torna importante. O/a terapeuta pode emitir comportamentos de evocação fazendo perguntas como “o que é difícil para você me dizer hoje?”, ou “o que você evita me perguntar?”

Na relação terapêutica, se uma cliente possui dificuldades ligadas à coragem (se expressar, abrir-se, fazer pedidos ou receber amor do/a terapeuta) esses comportamentos seriam chamados de CCR1s e suas exposições ligadas à coragem seriam os CCR2s. Alguns exemplos de expressões corajosas, se forem as dificuldades do/a cliente, podem ser: falar para o/a terapeuta como se sente; dizer não ao/à terapeuta; falar o que precisa da sessão; pedir ajuda para o/a terapeuta; emocionar-se em sessão; expressar agradecimento ao cuidado do/da terapeuta.

Amor

O amor, nesse modelo, está ligado a outras três habilidades: prover segurança e aceitar a expressão emocional do outro, validar a abertura emocional do outro; e conseguir dar quando o outro faz pedidos emocionais. Há clientes que apresentam dificuldades em serem responsivos emocionalmente, muitas vezes porque variáveis na história de vida contribuíram para não haver essa aprendizagem. É possível, também, que fazer essa expressão emocional de amor pode ser uma habilidade de coragem a ser modelada no repertório do/a cliente, uma vez que pode já ter sido punida historicamente. Na relação terapêutica, se um cliente possui dificuldades ligadas à responsividade emocional (amor) esses comportamentos seriam chamados de CCR1s e suas exposições de prover, validar, dar e amar seriam os CCR2s. Alguns exemplos de CCR2s de responsividade emocional podem ser demonstrações verbais de empatia, assim como demonstrações físicas e emocionais de aproximação antes não realizadas pelo/a cliente que apresenta a dificuldade.

Na Figura 1, percebe-se a menção de uma relação entre falante e ouvinte ligada à nomenclatura de amor: amar e receber amor. Maitland et al. (2017) consideram essa relação como consequência das relações de coragem e amor antes definidas. Isto é, uma vez que o ouvinte provê segurança e aceita, valida e dá emocionalmente ao outro, a consequência provável seria o terceiro elemento do Modelo ACL, amar, o que também teria como consequência o receber amor por parte do falante que iniciou a expressão. Os autores não definiram esses comportamentos como habilidades, mas consideram razoável incluí-las como relevantes considerando a natureza recíproca do processo interpessoal de intimidade.

E o/a terapeuta, como fica?

Considerando que a FAP tem como mecanismo de mudança clínica o responder contingente do/a terapeuta aos comportamentos clinicamente relevantes do/a cliente (Kohlenberg & Tsai, 1991; Tsai et al., 2009), é imprescindível que as habilidades do/a terapeuta também sejam desenvolvidas conforme o Modelo ACL. Isto é, como terapeutas, somos falantes e ouvintes na relação com nossos clientes (e em nossas relações pessoais). Por isso, precisaremos entender os pontos fortes e fracos de nossos clientes para sermos falantes e ouvintes que facilitam o desenvolvimento de repertórios mais prováveis de criação de intimidade com eles. Considera-se que a responsividade do/a terapeuta à vulnerabilidade do/a cliente (que favoreceria a intimidade na relação terapeuta-cliente) é um meio fundamental para que o/a cliente consiga aprender novas formas de se relacionar interpessoalmente em seu dia-a-dia.

Considere um exemplo. Suponhamos que você esteja atendendo Regina, uma cliente que buscou a terapia por se sentir sozinha após o afastamento gradativo de pessoas que dizem que a acham egoísta. Na conceitualização de caso sobre os alvos interpessoais a serem trabalhados, você identifica que a cliente possui dificuldades em prover segurança e aceitar, validar e dar aos outros. A partir dessa conceitualização, a relação terapêutica se torna oportunidade de favorecimento, in vivo, de mudanças importantes para Regina. Imagine que você tenha feito uma autorrevelação pessoal (expressão/abertura emocional) e ela continuou a falar sobre ela, não demonstrando acolhimento ou interesse (dar/prover segurança e aceitar). Nesse ponto, será um comportamento de coragem como terapeuta (enquanto falante) pedir atenção emocional de Regina. Você pode perguntar a ela: “você percebeu o que eu falei para você?” e a partir de intervenções como essa realizar a modelagem de CCR2s importantes para o repertório dessa cliente, ligados a ser responsiva emocionalmente nas relações interpessoais.

Utilizando-se da FAP, o/a terapeuta tem a oportunidade de checar as topografias de comportamento do/a cliente segundo o Modelo ACL acontecendo no momento da sessão. É muito importante, por esse motivo, que o/a terapeuta compreenda as próprias dificuldades e pontos interpessoais fortes, a fim de que se torne mais fácil compreender quais são seus T1s e T2s (comportamento-problema e comportamento-alvo do/a terapeuta, respectivamente) em relação às dificuldades e pontos fortes do repertório do/a cliente.

Por fim, vale ressaltar que as topografias de comportamento ligadas ao Modelo ACL descritas aqui precisam ser entendidas funcionalmente, isto é, compreendendo o que pode ter contribuído – dentro de uma visão contextual – para que o/a cliente apresente pontos fortes e dificuldades interpessoais. Além disso, ressalta-se que no começo do processo terapêutico, pequenas expressões já seriam consideradas CCR2s de Consciência, Coragem e Amor. Estar atento a esse processo progressivo para modelar CCR2s mais complexos é necessário para melhor andamento da terapia.

Referências

Callaghan, G. M. (2006). The Functional Idiographic Assessment Template (FIAT) system: For use with interpersonally-based interventions including Functional Analytic Psychotherapy (FAP) and FAP-enhanced treatments. The Behavior Analyst Today, 7(3), 357–398. http://dx.doi.org/10.1037/h0100160.

Cordova, J. V., & Scott, R. L. (2001). Intimacy: A behavioral interpretation. The Behavior Analyst, 24(1), 75–86. http://dx.doi.org/10.1007/BF03392020.

Kohlenberg, R. J. & Tsai, M. (1991). Psicoterapia Analítica Funcional: Criando Relações Terapêuticas Intensas e Curativas. Santo André, SP: ESETEc.

Maitland, D. W. M., Kanter, J. W., Manbeck, K. E., Kuczynski, A. M. (2017). Relationship science informed clinically relevant behaviors in Functional Analytic Psychotherapy: The Awareness, Courage, and Love Model. Journal of Contextual Behavioral Science, 6, 347–359.

Tsai, M., Kohlenberg, R. J., Kanter, J. W., Kohlenberg, B., Follete, W. C., & Callaghan, G. M. (2009). A guide to functional analytic psychotherapy: awareness, courage, love and behaviorism. New York: Springer.

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Escrito por Gabriela Martim

Psicóloga, especialista e mestra em Psicologia Clínica. Treinadora e Terapeuta Certificada em Psicoterapia Analítica Funcional (FAP). Amante das relação terapêutica. Atua com psicologia clínica (presencial em Curitiba-PR e online), supervisora e professora.

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