Considerações sobre a Compatibilidade da Filosofia Dialética da DBT com o Behaviorismo Radical

A Terapia Comportamental Dialética (DBT, do original Dialectical Behavioral Therapy) é uma abordagem baseada nos princípios básicos da análise do comportamento, na filosofia dialética e na prática Zen. Inicialmente desenvolvida por Marsha Linehan como tratamento de comportamentos suicidas e autolesivos, a DBT foi reconhecida como o padrão-ouro no tratamento do transtorno da personalidade borderline e, mais recentemente, vem sendo adaptada e pesquisada como tratamento de outros quadros clínicos, como transtornos alimentares, dependência química, depressão maior, adesão a tratamentos médicos, etc., além de ter sido estendida para crianças e adolescentes com problemas comportamentais e sofrimento psicológico.

Tendo em vista que a DBT é fundamentada em três pilares – análise do comportamento, filosofia dialética e prática Zen – e que ela é frequentemente referenciada como uma abordagem cognitivo-comportamental, surge, para muitos, a dúvida de se a DBT realmente é compatível com o behaviorismo radical e com a análise do comportamento.

Em vista disso, o presente texto tem por objetivo esclarecer uma pequena faceta dessa questão, a saber, se a filosofia dialética subjacente à DBT é ou não compatível com o behaviorismo radical de Skinner, compreendido como a filosofia voltada ao caráter epistemológico e metacientífico da ciência analítico-comportamental.

Inicialmente, é importante destacar que, na DBT, o termo dialética é empregado em dois contextos: (1) como visão de mundo e (2) como postura do terapeuta, em que este se coloca em opostos, tal quando aceita seu paciente da forma como ele é (uma vez que já está fazendo o melhor que pode) e, ao mesmo tempo, o estimula a se esforçar mais (uma vez que precisa mudar). Este texto ocupa-se apenas da dialética enquanto visão de mundo.

A filosofia dialética postula que todo fenômeno (uma tese) contém, em si mesmo, sua própria oposição (uma antítese), e que o desenrolar da realidade ocorre por meio da síntese dos opostos. Linehan (1993) explica que a fundamentação da DBT na visão de mundo da filosofia dialética derivou de sua observação de contradições por parte tanto do terapeuta quanto do cliente que coexistiam ao longo do tratamento. Em suas palavras:

“As tensões que eu experienciei durante a terapia; a necessidade de mover para equilíbrio ou síntese com essa população de pacientes; e as estratégias de tratamento reminiscentes de técnicas paradoxais, que pareciam ser um complemento necessário às técnicas comportamentais padrão – tudo isso me levou ao estudo da filosofia dialética como uma possível teoria organizadora ou ponto de vista” (Linehan, 1993, p. 30).

figura-a-png

A filosofia dialética possui três características definidoras: (1) a realidade é um todo interdependente, de modo que os fenômenos causam uns aos outros; assim, para entender como uma pessoa constrói o mundo, é necessário entender como o mundo a constrói; (2) a realidade está em polaridade, de modo que verdades contraditórias coexistem e, portanto, não se cancelam; (3) a realidade é um processo contínuo, no qual as verdades estão em constante desenvolvimento (Linehan, 1993).

A primeira característica da filosofia dialética – a realidade é um todo interdependente – é idêntica à concepção Skinneriana de determinação recíproca na explicação da origem, manutenção e extinção de um comportamento operante, conforme explicita a famosa afirmação de que “os homens agem sobre o mundo, modificam-no e são, por sua vez, modificados pelas consequências de sua ação” (Skinner, 1957/1992, p. 1). A compatibilidade dessa primeira característica da filosofia dialética com o behaviorismo radical fica ainda mais evidente em um artigo de Micheletto e Sério (1993) que discute a noção de homem para Skinner:

“O homem constrói o mundo a sua volta, agindo sobre ele e, ao fazê-lo, está também se construindo. Não se absolutiza nem o homem, nem o mundo; nenhum dos elementos da relação tem autonomia. Supera-se, com isto, a concepção de que os fenômenos tenham uma existência por si mesmo, e a noção de uma natureza, humana ou não, estática, já dada. A própria relação não é estática, não supõe meras adições ou subtrações, não supõe uma causalidade mecânica. A cada relação obtém-se, como produto, um ambiente e um homem diferentes” (p. 14).

Ademais, para Skinner, não existe nada que não esteja em conexão, uma vez que a própria definição de estímulo e de resposta é transacional: estímulos e respostas não são instâncias comportamentais independentes, pois, embora seja possível identificar o que é estímulo e o que é resposta em uma relação comportamental, eles dependem um do outro para serem definidos, isto é, não há estímulo sem resposta e nem resposta sem estímulo.

O segundo princípio da filosofia dialética – a realidade é complexa e está em polaridade, de modo que verdades contraditórias coexistem – pode ser compreendido sob a ótica da multideterminação do comportamento operante, conforme analisada por Skinner (1953/1965) no livro Ciência e Comportamento Humano (em especial no capítulo “A Análise de Casos Complexos”). Ao discutir o efeito de diversas variáveis sobre uma mesma resposta, o autor aponta que, quando uma determinada resposta é, ao mesmo tempo, reforçada e punida, passa a existir um conflito entre emitir a resposta que leva à punição e emitir uma resposta que a evita. Assim, ambas as respostas, ainda que incompatíveis, têm alta probabilidade de ocorrer. Em outras palavras, o indivíduo experiencia uma tensão dialética na qual ele quer e não quer se comportar de tal forma. Isto é, verdades contraditórias acontecem ao mesmo tempo e uma não anula a outra. Conforme exemplificam Koerner e Dimeff (2007):

“Frequentemente, clientes suicidas querem, simultaneamente, viver e morrer. Dizer em voz alta para o terapeuta ‘eu quero morrer’ em vez de se matar em segredo contém, em si, a posição oposta, que é querer viver. Contudo, não é que querer viver é ‘mais verdadeiro’ do que querer morrer. A pessoa realmente não quer viver a sua vida como ela é atualmente – poucos de nós trocaríamos de lugar com os nossos clientes com TPB. De modo semelhante, a baixa letalidade de uma tentativa de suicídio também não significa que a pessoa realmente não quer morrer. Não é que a pessoa alterna entre os dois – o cliente detém simultaneamente as duas posições opostas. A mudança ou o progresso dialético advém da resolução dessas posições opostas em uma síntese. Todo o diálogo da terapia constrói novas posições onde a qualidade de vida da pessoa não dá origem a vontade de morrer. O suicídio é uma maneira de sair de uma vida insuportável. No entanto, a construção de uma vida que realmente vale a pena viver é uma posição igualmente válida. O lema constante da DBT é que uma solução melhor pode ser encontrada. A melhor alternativa para o suicídio é construir uma vida que vale a pena ser vivida” (p. 10).

Por fim, o terceiro elemento definidor da filosofia dialética – a realidade é um processo contínuo, ou seja, é fluxo constante – guarda similaridade com a concepção Skinneriana de comportamento como processo e não como algo estático e terminado, sobretudo porque, como já apontado na citação anterior de Micheletto e Sério (1993), a cada interação com o mundo obtém-se, como produto, um ambiente e um indivíduo diferentes. Inclusive, vale destacar que, em razão do caráter processual do comportamento, analistas do comportamento valorizam o uso do delineamento experimental de caso único, já que neste é possível testemunhar o processo de construção, modificação e desaparecimento de comportamentos em tempo real à medida em que o indivíduo é submetido a diversas condições onde seu desempenho serve como seu próprio controle. Em outros termos, é possível observar nesse tipo de delineamento o constante processo de desenvolvimento das “verdades”, que nunca estão acabadas. Nenhum comportamento está pronto, finalizado ou concluído para sempre; ao contrário, a “verdade” do comportamento é transformação.

Em conclusão, o presente texto teve por objetivo apontar a compatibilidade dos fundamentos da filosofia dialética, conforme apresentados por Linehan (1993) com os do behaviorismo radical, como descritos por Skinner. Muitas outras similaridades podem ser encontradas entre a DBT e a obra de Skinner, como a semelhança entre o modelo biossocial e o modelo de seleção por consequências, por exemplo, e outras já debatidas por Abreu e Abreu (2016). Espera-se que esta e outras leituras contribuam para um melhor entendimento sobre a afinidade da DBT com o behaviorismo radical.

 

Referências:

Abreu, P. R. & Abreu, J. H. S. S. (2016). Terapia comportamental dialética: um protocolo comportamental ou cognitivo? Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, XVIII, 45-58.

Koerner, K. & Dimeff, L. A. (2007). Overview of dialectical behavior therapy. Em L. A. Dimeff & Kelly Koerner (Orgs.), Dialectical behavior therapy in clinical practice: applications across disorders and settings (pp. 1-18). New York: The Guilford Press.

Linehan, M. M. (1993). Cognitive-behavioral treatment of borderline personality disorder. New York: The Guilford Press.

Micheletto, N. & Sério, T. M. A. P. (1993). Homem: Objeto ou sujeito para Skinner? Temas em Psicologia, 1, 11-21.

Skinner, B. F. (1965). Science and human behavior. New York: Free Press. (Trabalho original publicado em 1953)

Skinner, B. F. (1976). About behaviorism. New York: Vintage Books. (Trabalho original publicado em 1974)

Skinner, B. F. (1992). Verbal behavior. Acton: Copley Publishing Group. (Trabalho original publicado em 1957)

5 1 vote
Classificação do artigo

Escrito por Jan Luiz Leonardi

Jan Luiz Leonardi possui graduação em Psicologia pela PUC-SP, especialização em Terapia Analítico-Comportamental pelo Núcleo Paradigma, aperfeiçoamento em Terapia Comportamental Dialética pelo Behavioral Tech / The Linehan Institute, mestrado em Psicologia Experimental: Análise do Comportamento pela PUC-SP e doutorado em Psicologia Clínica pela USP. Foi vice-presidente da Associação Brasileira de Psicologia e Medicina Comportamental (ABPMC) na gestão 2015-2016, supervisor clínico de residentes em Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP e idealizador do Curso de Verão em Análise do Comportamento da PUC-SP. É coordenador, professor, orientador e pesquisador no Paradigma - Centro de Ciências e Tecnologia do Comportamento e terapeuta comportamental no Dialectica - Psicoterapia Baseada em Evidências.

Conheça o livro “Depressão como Fenômeno Cultural da Sociedade Pós-Moderna. Parte I: Um Ensaio Analítico-Comportamental dos Nossos Tempos”

O que fazer quando não me sinto amado? Algumas dicas para desenvolver autoestima