[Entrevista] Raul Manzione fala sobre ser terapeuta e treinador em ACT: “Conexão é cura”

A Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT) é uma Terapia Comportamental Contextual, que tem como principal representante Steven Hayes. A ACT utiliza estratégias de aceitação e mindfulness em conjunto com estratégias de compromisso e mudança, com o objetivo de aumentar a flexibilidade psicológica. Para falar sobre o assunto, é uma honra ter conosco Raul Vaz Manzione, que recentemente se tornou um treinador oficial de ACT por meio do processo de revisão por pares da Associação para a Ciência Comportamental Contextual (ACBS). Em sua entrevista, entre outras coisas, Raul fala sobre sua história com a ACT, sobre o processo de se tornar um treinador, e sobre o ensino, formação e atuação em ACT.

Comporte-se: Conta pra gente um pouco de sua história com a ACT, falando por exemplo de como a conheceu e o que te levou a se aprofundar nela ao invés de qualquer outra abordagem da Psicologia? 

Raul: Primeiramente, queria agradecer muito pelo convite e pelo espaço para eu dividir um pouco do que amo!

É uma história nada surpreendente, para ser sincero (risos). Sou behaviorista desde sempre e eu lembro que durante a graduação em Psicologia eu estava começando a aprender sobre terapia comportamental. Lembro de uma aula dessa disciplina onde uma aluna, que vinha de outra abordagem, perguntou indignada para a professora de terapia comportamental: “Mas o que eu faria, sendo terapeuta comportamental, com um paciente terminal, com câncer, por exemplo?” e lembro que a professora (minha eterna e querida mentora, Cássia Thomaz), respondeu: “Com Terapia de Aceitação e Compromisso”. E esse nome ficou comigo por ser bem diferente do que eu já tinha ouvido falar. Até então só conhecia e gostava muito da FAP mesmo. Desde então surgiu o interesse e quis me aprofundar mais. O interesse maior despertou durante uma palestra em um Simpósio sobre ansiedade do IPq de São Paulo (Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas) com a Karen Vogel falando sobre ACT que eu me interessei muito por ter me tocado bastante. Fui falar com ela para aprender mais sobre, porque em 2015 a ACT não tinha esse espaço como tem no Brasil hoje; era pouca gente, uma comunidade pequena, e era tudo muito no boca a boca pra saber de cursos e onde achar recursos. História vai, história vem, eu vinha estudando por conta própria até o momento em que decidi juntar dinheiro [que nem eu tinha direito rs] para ir para a Espanha no congresso da ACBS em 2017 na cidade de Sevilha. Chegando lá, fui fazer um workshop intensivo de 2 dias com o Kelly Wilson, um dos fundadores da ACT, sobre relação terapêutica. Certamente foi o workshop mais intenso que já fiz – tomei uma “surra” de compaixão e vulnerabilidade. E, de lá, saiu uma certeza ainda maior de que era com isso que eu queria trabalhar. Que esse trabalho era sobre mudar a vida de pessoas, e que essa mudança vem quando a gente se conecta com elas. Conexão é cura. Senti que a ACT se conectava profundamente com meu coração e juntava o rigor científico com a capacidade de tocar almas humanas. Eu mesmo tenho uma história dolorosa e encontrei no meu processo de aprendizado em ACT um espaço de cura. E desde então tem sido o que tenho me dedicado a fazer.

Aliás, se me permite dizer, acho que mais do que “os ensinamentos da ACT”, sinto que o que mais me faz querer pertencer e permanecer nessa comunidade foram as pessoas e conexões incríveis que fui cultivando pelo caminho!

Comporte-se: Recentemente você se tornou um treinador oficial da ACT, no processo de revisão por pares da ACBS (ACBS Peer-Reviewed ACT Trainer). Como foi esse processo?

Raul: Foi um processo longo, árduo e trabalhoso. Eu descobri sobre o que é ser um Peer-Reviewed ACT Trainer (PRT) em 2017 quando fui ao congresso da ACBS. Desde então fui estudando e buscando ver como fazia para me juntar. Vi que, para isso, eu precisava me expor às contingências de sala de aula, por assim dizer. Fiquei de 2018 até ano passado montando meu portifólio; comecei dando aulas, já dei aula até para ninguém (tinha aula marcada e ninguém veio, então falei sozinho por 1 hora inteira), e fui aprendendo a cada treinamento dado. Aliás a dinâmica de um treinamento (ou workshop) é bem diferente de uma de aula expositiva, mas aqui estou me referindo à “aula” como treinamento mesmo.

Mas não só dei treinamentos como fui à muitos treinamentos assistir e aprender para ver como estavam fazendo, treino de múltiplos exemplares etc. Precisei também estudar bastante pois o processo leva em conta duas redações que avaliam conhecimento comportamental e filosófico básicos. E, não menos importante, precisei fazer algo muito difícil para um introvertido que é fazer networking com pessoas da área – me aproximei de pessoas grandes na área, que hoje são queridas amigas minhas, como Robyn Walser, Emily Sandoz, Roberta Kovac, entre outros, que me deram super apoio nesse processo todo. Como a ACBS valoriza muito a noção de comunidade um critério avaliado é se você é uma pessoa bem quista na área (não necessariamente famosa, mas bem recomendada pelo caráter, personalidade etc.). Contei muito com o apoio da Robyn e da Emily, minhas supervisoras clínicas, em relação ao acréscimo das minhas habilidades como terapeuta também, pois isso conta bastante, afinal, para ser um bom treinador ACT deve-se ser um bom terapeuta ACT também. E um pedaço super ansiogênico desse processo é pedir para que sejam redigidas cartas de pessoas da ACBS sobre você – e acho que foi o pedaço mais difícil chegar e pedir: “Pode fazer uma carta para mim para o comitê avaliador?”.

Tiveram muitas noites que, depois do trabalho, eu praticava minha oratória também – vi muita palestra motivacional e TED Talks de temas variados para sacar como que se faz para cativar uma audiência – o timing, a cadência de voz, as introduções etc. Acho que um bom treinamento também se faz com uma boa relação com o público que participa.

E isso que digo aqui é só tocar a superfície de como foi esse processo.

Em resumo, o processo envolve:

  • Submissão de duas redações sendo uma sobre Contextualismo Funcional e outra sobre princípios de Análise do Comportamento e Teoria das Molduras Relacionais.
  • Envio de cartas de recomendação sendo no mínimo uma de alguém que afirme suas competências como terapeuta (um supervisor) e outra carta que afirme seu impacto enquanto profissional na área; as pessoas que escrevem a carta devem ser membros da ACBS.
  • Uma análise de um treinamento seu, e isso pode ser feito tanto ao vivo como por submissão de vídeo.

E tem também, entre tantos outros pontos, uma análise do seu currículo, dos seus materiais de workshops, publicações etc. Leva bastante tempo! No site da ACBS mesmo tem um detalhamento das exigências do processo.

Comporte-se: De que forma ser treinador da ACT contribui para a sua carreira e para a sua prática?

Raul: Eu acho que imensamente, sabe? Ser um treinador ACT significa que você tem um conhecimento profundo dessa terapia, e no caminho para me tornar um PRT eu busquei (e continuo buscando) em aprimorar minhas habilidades como terapeuta – e para isso fui estudar mais a fundo outras terapias como a FAP, a Terapia Focada na Compaixão (CFT), Terapia Comportamental Dialética (DBT), Terapia Comportamental Integrativa de Casal (IBCT), Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), Psicanálise, Humanista, Gestalt etc. Acho que nenhuma abordagem tem a pretensão de dar conta de toda a complexidade de ser humano. Sinto que meus clientes, supervisionandos e alunos só tiveram a ganhar com isso. A meu ver, por mais que o repertório exigido seja o de “ser um treinador”, acho muito difícil saber ensinar bem ACT sem saber praticar bem ACT.

Quando coloquei isso como alvo eu vi que eu tinha uma enorme montanha para escalar e precisava treinar para isso. Mas mais do que habilidades propriamente ditas, a jornada para me tornar um PRT me obrigou a me aproximar, conectar com pessoas, lidar com frustrações e dias ruins e a incorporar a ACT na vida e nas relações com as pessoas que eu amo. É um título que eu celebro, mas não consegui ele sozinho. A gente precisa do apoio de outras pessoas para chegar lá.

Comporte-se: Na sua avaliação, quais são os principais obstáculos ou dificuldades para o ensino e aprendizagem de ACT no Brasil?

Raul: Não necessariamente na ordem, mas penso em algumas coisas: acho que a “Localização” para a nossa cultura brasileira é uma barreira – seja porque temos poucos textos em português (mesmo com o aumento ainda é muito pouco) ou temos poucos alunos fluentes em inglês ou seja porque algumas intervenções e falas são ainda muito americanizadas, o que faz um certo sentido considerando-se ser uma terapia de origem americana. Ainda assim, acho que certas topografias fazem mais sentido naquela cultura do que na nossa.

Acho também que a barreira financeira é uma delas pois cursos custam caro e não é todo mundo que pode fazer. Se a gente for parar pra ver, a maneira que temos para aprender ACT é em um curso de formação ou especialização de longas horas. Isso demanda tempo e dinheiro. É muito custoso ensinar uma maneira radicalmente diferente de pensar – no mundo afora a gente pensa de maneira muito dualista e mecanicista. Chegar com uma visão que fala de uma ação inserida em contexto e que tudo depende deste é muita novidade pra muita gente. Queira ou não, ensinar a fazer uma ACT pautada em uma boa análise funcional é difícil e muitas vezes se opta para uma visão mais palatável com termos de nível médio como base – não é ruim, mas é limitado. Felizmente, mais e mais, os alunos e as pessoas que ministram os cursos tem visto a necessidade de enfatizar a visão funcional do comportamento humano porque ela é imprescindível à ACT. É muitas vezes difícil ligar os pontos e sinto que o ensino das bases da ACT (Contextualismo Funcional, princípios comportamentais e RFT) são meio “colocados” ali no meio e os alunos que se virem pra entender a relação ACT-RFT.

Sinto também, e os bons cursos fazem isso, que o caráter experiencial conta muito e não é muito de nossa cultura ter essa ênfase – geralmente os alunos vem mais preparados para aulas expositivas, didáticas, e não tanto para vivenciar algo intenso.

Comporte-se: Quais características um treinamento em ACT deve possuir para que ele seja considerado de Alto Padrão ou Alta Qualidade?

Raul: A resposta curta é: eu preciso garantir que estou tocando o coração das pessoas para tocar outros.

A resposta mais elaborada: Vou falar um pouco do meu lado, mas eu considero que eu sempre desenho meus treinamentos para que, ao final, os alunos consigam sair sabendo fazer alguma coisa, mesmo que pouco e que isso [o fazer] deve ser pautado na ciência e no que há de mais recente e eficaz na literatura. Depois disso, a prática experiencial vem junto. Mas se for apenas experiencial, sem uma parte mais “hands on”, e ficar só na exposição, na catarse, você se emociona e quer abraçar os outros mas o que você aprendeu a fazer com uma pessoa que busca sua ajuda? Por isso sempre procuro adicionar momentos de práticas de habilidades e a relação que isso tem com Análise do Comportamento. É aí muitas vezes que ouço dos alunos que dá um “click” porque depois de ouvir tanta teoria e tocar pontos experiencialmente sensíveis vem a hora de exercitar aquilo que até então parecia muito abstrato. Eu, particularmente, não falo de divisão teoria e prática porque, na ACT, a teoria é a prática.

Comporte-se: Quais elementos são essenciais para dizer que uma prática clínica é coerente com o que se espera da Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT)?

Raul: Acho que é saber focar nas funções que importam quando diante de um cliente. É quando somos capazes de transformar funções simbólicas problemáticas para algo que produza maior vitalidade que a gente fala que fez um trabalho bem-feito. E isso se faz com o nosso próprio comportamento. Acho que a habilidade mais importante para alguém que pratica ACT, mais do que as técnicas, metáforas e intervenções, é a habilidade de se conectar à outra pessoa em sofrimento e responder de uma maneira funcional que produza mudança comportamental saudável – na lista de competências fundamentais da ACT tem uma seção chamada “Postura Terapêutica” e é tida como habilidade mais importante. Se a gente pensar que a ACT é embasada na Ciência Comportamental Contextual (CBS), que tem como objetivo prever e influenciar comportamento com precisão, escopo e profundidade, eu acho que temos muito a oferecer quanto a precisão e profundidade, mas pouco a escopo pois nosso momento são aqueles 50/60 minutos semanais com aquela pessoa. Então temos de enfatizar a efetividade e presença máxima em sessão, isso envolve a capacidade de nos entregarmos e reconhecer que somos, também, seres humanos que sofrem e que é só uma questão de contexto que separa o rótulo de “paciente e terapeuta”. Acho que a ACT nos convida a sermos completamente honestos com nossos sentimentos e corajosos a ousar viver de um jeito que esteja alinhado com a vida que queremos cultivar – e isso não é fácil, nem deve ser. Viver alinhado com nossos valores é extremamente difícil e para podermos pedir isso a nossos clientes devemos fazer uma pausa por um segundo e considerar: “E se fosse eu? Eu ia conseguir?”. Acho que se você está fazendo ACT apenas para conquistar seus clientes ou para ganhar popularidade no mercado… não acho que isso seja ACT. É outra coisa.

Comporte-se: Com a popularização da ACT e de outras Terapias Comportamentais Contextuais, muitos profissionais que não são terapeutas comportamentais têm utilizado suas ferramentas. Quais as implicações dessa forma de uso e quais cuidados um profissional precisa ter, ao utilizar a ACT, para não se dissociar dos princípios da Análise do Comportamento?

Raul: Com martelo na mão tudo pode virar prego, sem o devido cuidado. Eu ouço bastante “a intervenção X da ACT”, que descontextualizada não significa nada. Eu acho que se deve sempre levar em conta uma boa análise funcional (e aqui eu falo enfatizando a análise funcional de relações verbais como a RFT descreve) para a aplicação eficaz de uma intervenção – embora um martelo dê bastante conta, eu tendo a preferir mais usar um bisturi. É sempre importante adaptarmos à necessidade de nossos clientes e não seguir uma receita rigidamente. Se estou fazendo uma intervenção mais estruturada (um exercício), como às vezes faço, eu estou sempre atento a como o cliente está reagindo, se isso está facilitando ou dificultando a promoção de flexibilidade psicológica e se funcionalmente faz sentido para a pessoa naquele exato momento. Diversas vezes comecei uma intervenção mais estruturada ou direto do manual e, vendo que não estava sendo útil, parei ali mesmo e discuti isso com meu/minha cliente e levamos para outra direção – às vezes simplesmente não é o momento. Eu tenho um grande receio da gente chamar de ACT algo mais topográfico como um exercício de repetição de palavras, práticas meditativas etc. Não que não possa ser, mas na essência é muito mais que isso.

Comporte-se: É muito comum que profissionais combinem as Terapias Comportamentais Contextuais em sua prática. Como pode ocorrer essa integração da ACT com outras Terapias Comportamentais Contextuais? Quais cuidados são necessários nesse processo?

Raul: Eu acho que essa integração pode ocorrer muito tranquilamente – se a gente considerar que as Terapias Comportamentais Contextuais se baseiam na mesma filosofia e visão de mundo eu não vejo nenhum empecilho para. A gente tá falando a mesma língua, o que muda muitas vezes é a formulação de caso. Acho que o cuidado é sempre aquele cuidado geral de adaptar a intervenção às necessidades da pessoa atendida; mesmo uma intervenção que no manual tem o foco de “promover desfusão cognitiva” pode ser utilizada para outra finalidade, e tudo bem. A flexibilidade é bem-vinda em qualquer ocasião!

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Escrito por Isabela Borges

Psicóloga formada pelo Centro Universitário de Patos de Minas (UNIPAM), realizou a Tutoria em Terapia Comportamental Dialética pela Ello: Núcleo de Psicologia e Ciências do Comportamento, e atualmente realiza a Formação em Terapia Comportamental Dialética pela Elo: Psicologia e Desenvolvimento. Atua na Psicologia Clínica, atendendo adolescentes e adultos individualmente, nas modalidade on-line e presencial. Oferece a oficina de Psicologia e Bem-Estar no projeto UNIPAM Sênior, com foco no desenvolvimento de habilidades para a vida.

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