Por que precisamos falar de autocontrole durante a pandemia?

(Gostaria que esse texto não fosse mais necessário, ou que estivesse ultrapassado, mas infelizmente não parece ser o caso).

Fomos selecionados evolutivamente para sermos muito suscetíveis a estímulos que ocorrem durante ou imediatamente após os nossos comportamentos. Quando esses estímulos são percebidos como uma experiência positiva (sendo que o que é positivo varia de pessoa para pessoa), tendemos a repetir o mesmo padrão de comportamento que gerou essa experiência em uma situação futura – em um contexto semelhante.

Imagine que você tenha perdido a chave do carro. Muito provavelmente você emitirá os mesmos comportamentos (ou muito parecidos) que emitiu no passado quando encontrou a sua chave das últimas vezes. Possivelmente vai fuçar as gavetas, um bolso ou bolsa que usou há pouco, olhar ao redor do móvel, na cozinha etc. Dificilmente você vai procurar pela sua chave no armário do banheiro ou dentro do freezer (verdade seja dita, eu já achei a minha na gaveta do guarda-roupas). Novamente: imagine que você está com sede e deseja um copo d’água. Qual a probabilidade de você se dirigir até a lavanderia e procurar um copo d`água dentro da máquina de secar?

Parece simplista, mas pare para pensar, nós tendemos a fazer coisas que no passado geraram uma experiência positiva, uma “recompensa”. Quanto mais IMEDIATA e CERTA (“sempre que eu faço x, acontece y”) a experiência, mais “forte” ou provável será o comportamento.

O mesmo é válido para comportamentos que geraram uma experiência NEGATIVA na nossa história de vida (o que é negativo também varia de pessoa para pessoa). Neste caso, tendemos a evitar ter os comportamentos que geraram tais estímulos aversivos ou qualquer coisa que possa sinalizar que eles possam vir a acontecer (uma das origens da ansiedade). As crianças aprendem cedo que não é uma boa ideia enfiar o dedo na tomada, pisar no formigueiro descalça, segurar a porta enquanto alguém está fechando etc.

Ou seja, somos moldados pelas consequências dos nossos comportamentos, especialmente as IMEDIATAS e CERTAS. Neste momento, não vamos entrar em questões mais complexas como o comportamento verbal, os comportamentos controlados por regras etc.

O que isso tem a ver com a pandemia? E o autocontrole?

A situação da pandemia exige que nós tenhamos vários comportamentos cujas consequências IMEDIATAS e CERTAS são prioritariamente experiências NEGATIVAS: usar máscara pode ser incômodo, ficar isolado, deixar de ver os amigos, deixar de participar de eventos sociais, ter trabalho extra com higienização e outras medidas de segurança, acúmulo de tarefas etc.

O destaque vai para os comportamentos diretamente associados à prevenção do contágio – que prioritariamente são experiências que poderíamos vulgarmente classificar como “chatas”. Poucas pessoas terminam de lavar as mãos (por 30 segundos) ou passar álcool em gel e imediatamente percebem os micróbios morrendo ou desaparecendo das suas mãos. Ou param em algum momento durante o dia e pensam “ufa, que bom que me isolei em casa hoje” (se você faz isso, já está muito à frente da maioria).

Por outro lado, as consequências POSITIVAS de se tomar as medidas acima são, em sua maioria, FUTURAS e INCERTAS (afinal, quem não conhece alguém próximo que estava “se cuidando” e acabou sendo contaminado mesmo assim?) – por vezes até invisíveis. Você toma todas as medidas de segurança e no final do dia o que acontece? Felizmente, se tudo der certo, nada. Como assim? Veja, não estamos dizendo que os cuidados não são importantes, muito pelo contrário, só estamos dizendo que para o nosso cérebro as consequências “permanecer vivo, não se contaminar, não contaminar alguém da família” não existem – não são naturalmente percebidas.

Se você está com dificuldade de visualizar isso no dia a dia, lembre-se da última vez que tentou fazer uma mudança de hábito. Por que é tão difícil deixar de comer o chocolate ou o pedaço de bolo (experiência POSITIVA, IMEDIATA e CERTA – a não ser que o bolo seja muito ruim)? Por que penamos tanto para trocar algumas horas da nossa série favorita na Netflix (POSITIVA, IMEDIATA e CERTA) por uma corrida de 30 minutos, que potencialmente poderia nos trazer muitos benefícios POSITIVOS, porém FUTUROS e INCERTOS mas que, no IMEDIATO, produz suor, dor e cansaço, experiências no geral percebidas como NEGATIVAS?

Chegamos no ponto central da discussão: para termos sucesso no enfrentamento da pandemia, precisamos ser indivíduos autocontrolados. Isso quer dizer, ficarmos sob controle (ou sermos moldados) por consequências POSITIVAS, FUTURAS e INCERTAS e criar consequências POSITIVAS, IMEDIATAS e CERTAS onde elas naturalmente não existem. Em outras palavras, temos que criar formas de nos sentirmos recompensados por fazer aquilo que temos que fazer.

O que fazer, então?

No extremo, temos que reconhecer que a sensação de estar sob ameaça – o medo da contaminação, que é NEGATIVO, FUTURO e INCERTO pode ajudar a manter os comportamentos de segurança (higienização, uso de máscara, distanciamento) por um tempo. O problema desse tipo de relação comportamental é que existe uma tendência de enfraquecimento desses comportamentos que evitam a ameaça, na medida em que a ameaça não se concretiza para nós, ou alguém próximo de nós (ainda bem), na maioria dos casos (estatisticamente falando). É como se você fosse alertado todo dia para levar um guarda-chuva para não se molhar, mas a chuva nunca viesse, ou viesse só em um a cada 30 dias. Quantos dias você aguentaria carregar o pequeno trambolho do guarda-chuva (uma experiência NEGATIVA, IMEDIATA e CERTA) antes de pensar “ah, quer saber, hoje não vai chover”. Em outras palavras, a sensação de “perigo” de contaminação tende a diminuir e, com isso, a frequência dos comportamentos de segurança também.

No caso da pandemia, infelizmente, ou felizmente (pelo menos do ponto de vista da saúde pública), temos acesso pela mídia a casos reais de pessoas que realmente sofreram as consequências da ameaça da covid-19. Se isso servir para que você mantenha os cuidados, sem causar ansiedade ou outros efeitos de sofrimento psicológico, vale como estratégia para não baixar a guarda.

Por fim, resta a alternativa de focar experiências POSITIVAS, IMEDIATAS e CERTAS que podemos criar para nós mesmos para que consigamos manter o foco nos comportamentos que irão nos proteger agora e no futuro. Que tal tirar um momento do dia para dar atenção e agradecer o fato de estar saudável, próximo dos filhos ou companheira(o)? Armazene as máscaras e os itens de segurança de forma prática e para tornar o uso o mais fácil e menos trabalhoso possível. Use a máscara mais confortável para você (uma que não gere tanto incômodo e não dê vontade de mexer ou tirar toda hora). Crie uma rotina de comemoração – “se eu fizer exercício 3 vezes na semana vou me presentear com sorvete e Netflix no sofá”. Enfim, pense nas experiências que te fazem bem e em como você pode incorporá-las no seu dia a dia.

O autocontrole, nesse cenário, é o que nos permitirá sair da inércia e do “automático” e focar aquilo que realmente importa para o nosso presente e futuro.

Beto Parro é psicólogo e ilusionista (mentalista). Co-fundador da Inconscientemente.com.br e Behavior.ly. Atua como consultor de empresas em processos de mudança comportamental e desenvolvimento de pessoas e como mentalista e palestrante, abordando temas da psicologia de forma lúdica e interativa.

Instagram: @inconscientementes

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Escrito por betoparro

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