Algumas questões sobre atendimento online por uma terapeuta FAP

Reconhecendo as demandas específicas desse período de pandemia e identificando em supervisão a ansiedade de terapeutas sobre a transição abrupta de uma modalidade presencial para uma virtual, resolvi escrever esse texto discutindo algumas questões sobre o formato de atendimento online. Digo, de início, que uso como referencial de trabalho a Psicoterapia Analítica Funcional (FAP), por permear não só minha prática clínica, como também a forma como essas questões vão ser abordadas nesse texto.

Antes de começar, sobre esse tema, é essencial dar uma conferida nas resolução CFP n. 11/2018 do Conselho Federal de Psicologia para uma orientação mais técnica e ética. O propósito desse texto é mais emocional.

Ressalvas quanto ao atendimento online

Eu sou uma grande defensora do atendimento online, mesmo frente a alguns questionamentos comuns de profissionais e público em geral. Não é que eu acredite que não há problemas, eu acredito que há. Só não acredito que eles sejam suficientes pra desqualificá-lo ou classificá-lo como pior ou melhor que o formato presencial. A minha experiência com profissionais da área sugere que o incômodo com esse formato possa ter mais a ver com ideias ou sentimentos preexistentes do que com o atendimento em si (e aqui já digo que tudo bem se você não concorda comigo, ainda podemos seguir tomando um café juntas e lendo até o final).

Cada terapeuta tem seu estilo, o que nos torna mais ou menos confortáveis em determinadas situações e contextos. Talvez uma parte desse texto seja um convite à consciência de quais são eles pra entender como podem nos ajudar ou não nesse processo. Se você sente alguma dificuldade no atendimento online (ou com a ideia de atender online), vasculhe de onde isso pode vir. Se você se sente distraída (Nota 1) frente à tela, eu não duvido que isso também apareça de alguma forma no atendimento presencial, possivelmente com aquele(a) mesmo(a) cliente, talvez mais suave em função da quantidade de estímulos visuais, auditivos, olfativos que você recebe. Situações que ocorrem no formato online talvez só estejam mais em evidência porque se misturam com os pensamentos e sentimentos já existentes.

Que outras questões aparecem? Falta de controle de imprevistos? Que em uma transmissão online a probabilidade de dar errado é muito maior que a presencial? Uma amiga uma vez me confessou essa preocupação e rimos enquanto eu contava do dia que fui atender e faltou energia no prédio, e eu fiz a sessão às escuras. Aproveitei também para contar a vez que eu caí de uma cadeira (que deslizou por causa das rodinhas) em plena primeira sessão. Pois é, problemas técnicos e imprevistos simplesmente acontecerão, porque eles acontecem, no formato presencial ou online (Spoiler: pela minha experiência, os atrasos são raríssimos nos atendimentos online! E o tempo de trabalho efetivo costuma ser muito maior). Isso não te exime de contratar uma internet de qualidade e planejar um ambiente propício, assim como você teria que pagar a conta de luz e repor a água na clínica presencial. Cuidados constantes.

Atenção plena

A atenção plena (mindfulness) já é muito discutida no campo das terapias contextuais como uma atenção dirigida ao momento presente, com uma postura de abertura, aceitação e não julgamento (para saber mais, clique aqui). Essa prática permeia grande parte do meu trabalho e da minha vida. Agora mesmo, enquanto escrevo esse texto, observo o suor frio nas mãos diante do que se tornará uma exposição pra mim.

Pra simplificar, eu digo que a prática da atenção plena é dar uma chance pra se conhecer. Só observar, sem julgamentos, sem os tão comuns “eu deveria ser, sentir ou fazer assim”. Só quem eu sou, o que me afeta e como me afeta. Como você se sente, que inquietudes, distratores, ou pensamentos e emoções te provoca só a expectativa de atender online (se quiser dividir, conta um pouquinho pra mim através do e-mail que vou deixar ao final do texto)? Não tem certo ou errado, é só você.

Às vezes, mais que o foco no ter que atender online e nos pontos ruins que isso pode ter, vale o foco no medo/insegurança que você pode estar sentindo frente a exposição a uma situação totalmente nova e desconhecida (o que é normal).

E isso vale para tudo o que parece assustador e que de fato pode acontecer, como as falhas de conexão, por exemplo. Como você se sente tendo que pedir pra outra pessoa que repita a última frase? Como a outra pessoa reage a você não ter escutado ou a ela ter que repetir a última frase. Como ela responde a uma ligação interrompida? Como você responde? Talvez você se sinta frustrado e seja um ótimo (e genuíno) momento pra oferecer um modelo de expressão de sentimentos. Você se sente em dívida porque a conexão está caindo? Você acha imediatamente que o problema é a sua internet e vai antecipando as desculpas? Você se sente menos competente porque o atendimento é online, como se parte das suas habilidades fosse perdida porque você não está na frente da pessoa?

Se você sente que o atendimento online não vai te dar tantas informações como o presencial, eu te diria que talvez não as mesmas. Mas tudo isso é material. Diz sobre você e diz sobre a pessoa que você está atendendo.

Observe

A atenção plena já é uma forma de observação. A ênfase desse tópico é pra você observar o(a) cliente, com toda a sua atenção. Observe onde está, se mudou de lugar (vale fazer comentários naquele momento de conversa leve). Observe a postura, as roupas, a cadeira (ou a cama, o sofá, qualquer que seja o local que a pessoa tenha escolhido pra fazer a sessão). Se a fala está acelerada, se está gaguejando, se batuca o dedo na mesa ou se balança a perna pelo movimento do corpo. Observe os olhares, se olha pra câmera, se não, se passeia por outras telas enquanto fala com você (dá pra perceber pela velocidade do olhar, pela mudança de luminosidade ou pelo reflexo dos óculos). Ficar sob controle disso tudo dá algo em que se apegar caso se sinta ansiosa ou distraída, te colocando no aqui e agora.

Se couber, pergunte como a pessoa está se sentindo. Como é fazer sessão online, o que esperava e o que está achando até agora (que tenha função terapêutica, que não seja só checagem por ansiedade). Diga como você está se sentindo também, se couber. (Spoiler: Geralmente quem se sente ansiosa com a expectativa de atender online acha a experiência em si mais tranquila do que estava imaginando). Se não ficar mais tranquila, se pergunte por quê, se ocorre com todos ou com clientes específicos, e que características aquela relação pode ter que está promovendo isso. Tem clientes que já são mais responsivos que outros(as), e produzem uma sensação de tranquilidade e conforto, enquanto outros(as) exigem mais da gente, e produzem uma sensação de cansaço e insuficiência.

Deixe seu corpo falar também

Uma das questões sobre o atendimento online é que, tal como ocorre com a terapeuta, o(a) cliente também perde muito da estimulação que teria em uma sessão presencial, muitas das consequências que você emitiria se estivesse ali toda na frente dele(a). Portanto, deixe seu corpo falar também. Apareça mais, deixe o ambiente claro, amplifique respostas corporais de acordo com o que estiver sendo trabalhado. Aproxime-se da câmera quando ela ou ele estiver falando uma coisa importante ou difícil. Afaste-se ou relaxe na cadeira quando o tema estiver mais leve. Todo o seu corpo é mecanismo de consequenciação. Franza o cenho, faça cara de surpresa, tristeza, satisfação, de acordo com cada situação e com seu estilo pessoal.

Nada do que eu estou falando nesse tópico deve ser novidade, porque tudo também deve ser feito em uma sessão presencial, mas vale ficar mais atenta a isso em um formato online, especialmente se essa situação lhe provoca ansiedade. Por vezes, estamos tão imersas na nossa própria ansiedade que nos desconectamos da outra pessoa e do que ela está falando e, consequentemente, ficamos menos reativas.

Faça supervisão

Ainda fico impressionada com a quantidade de informação veiculada hoje sem uma nota sugerindo “faça terapia” ou “faça supervisão”. Mesmo consciente de que não é uma alternativa acessível para todas as pessoas, considero sempre válido incluir como um ponto importante para ser lembrado tanto quanto as outras dicas (sendo até a mais eficaz). Somos pessoas, nossas dificuldades com os novos formatos de atendimento (e com quaisquer outras questões que aparecem em sessão) têm tudo a ver com a nossa história e com as nossas características. Portanto, se você tem essa possibilidade, uma abordagem individualizada ainda é o melhor remédio.

Se você tem alguma dúvida, eu me coloco à disposição para tentar respondê-las ou abordá-las em outros textos. A questão agora é que, independente de achar bom ou ruim, melhor ou pior, muita gente está tendo que se deparar com essa nova realidade, sob risco de ficar sem renda ou de deixar as pessoas que acompanha na mão. Ou, ainda, muita gente quer fazer alguma coisa nesse momento crítico, como atendimento social, grupos de apoio, orientações, cursos, etc., necessitando usar justamente o formato online para não se colocar e colocar outras pessoas em risco. Então vamos todas fazer a nossa parte.

Ficarei feliz em ajudar.
Meu e-mail é renatacsp1@gmail.com.

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Nota 1: Por ser uma profissão majoritariamente feminina (90%, CFP, 2013), os termos referentes à classe de profissionais da Psicologia serão usados no feminino, conforme orientação do Conselho Federal de Psicologia.

Nota 2: Agradeço à Alessandra Villas-Bôas pela revisão cuidadosa do texto.

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Classificação do artigo

Escrito por Renata Silva Pinheiro

Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Maranhão (2013) e mestra em Psicologia (Teoria e Pesquisa do Comportamento) pela Universidade Federal do Pará (2016). Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo (USP), com Doutorado Sanduíche no Exterior pela Universitat Autònoma de Barcelona (Espanha).

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