Tenho um amigo de infância (daqueles amigos que você não conversa com a frequência que gostaria, mas que cada bate papo você carrega na memória e no coração) que se tornou policial militar quando adulto, e junto com outra pessoa, estávamos falando sobre os riscos da profissão dele, toda a periculosidade que envolve perseguir bandidos, ou mesmo envolver-se em tiroteios. Então, de alguma forma a conversa se voltou para os riscos de outro amigo, que trabalhava com vendas e necessitava pegar a estrada frequentemente, na qual presenciava muitos acidentes. De repente, de uma maneira surpreendente a conversa se voltou a mim: “mas o Diegão também tem que cuidar os casos que atende! “.
Foi a primeira vez que eu realmente me dei conta de que toda profissão tem seus riscos, e que na minha, não eram poucos. Confesso que ainda hoje subestimo os riscos relacionados à segurança, como assaltos a consultórios, mas tenho ficado cada vez mais atento ao risco de os terapeutas ficarem psicologicamente doentes.
Afinal, como terapeuta DBT, lido diariamente com casos de Estresse Pós-Traumático, por conta do que as pessoas sofrem de violência, sendo assim eu corro o risco de adoecer com algo chamado estresse vicário. Casos de pacientes com risco de cometerem suicídio ou terem uma overdose de drogas são diários. Esse tipo de situação me causa medo, pensamentos de que serei culpado pelos familiares ou de que serei processado e menosprezado por colegas de profissão se algo de ruim acontecer
Eu sempre destaco duas coisas na DBT que me conquistaram: a primeira é que funciona bem para os pacientes por ser uma terapia baseada em evidências, a segunda é que funciona bem com os terapeutas. Sensações de medo, estresse, evitação emocional e vergonha no meio profissional são muito comuns quando tratamos casos de desregulação emocional.
Por estes motivos, a reunião de consultoria é um item obrigatório para quem quer ingressar no mundo da DBT. Ao contrário do que muitos jovens terapeutas pensam, este não é só um espaço para supervisões técnicas, mas tem como o seu principal papel servir de terapia para os terapeutas. É um espaço para podermos usar/aperfeiçoar muito das habilidades de regulação emocional e validação com os terapeutas que passam por todas as situações que mencionei anteriormente. Afinal, o mesmo modelo biossocial que utilizamos para formular os casos de nossos pacientes, podemos usar para nossa interação com eles.
Há momentos de vulnerabilidade emocional: um determinado assunto, um tom de voz, um olhar pode bater em algum dos nossos “calcanhares de Áquiles” causando grande sensibilidade e alta intensidade. Isso pode ficar em nossas cabeças o dia inteiro, com um lento retorno ao estado de calma.
E o ambiente invalidante? Ah, o ambiente invalidante é muito fácil de se reproduzir. Alias, não vamos falar de todo o ambiente do terapeuta, e sim de uma parte dele, como diria Swenson (2016): um microambiente, seu consultório, ou clínica onde pratica seus atendimentos.
Talvez o terapeuta possa estar inserido em um ambiente de pesquisa e sentir-se pressionado por resultados, ou trabalhar em um local que a independência seja reforçada, fazendo com que não tenha o hábito de pedir ajuda. Até mesmo um grupo de consultoria pode ser invalidante ou excessivamente técnico, não observando a necessidade de validação de um determinado terapeuta.
Mas como podemos aplicar os princípios de DBT para terapeutas em burnout? É mais ou menos parecido com os meus gatos. São 4 gatos que dividem um território de poucos metros quadrados. Eles formam um bando, por isso estão constantemente lambendo uns aos outros, deixando seus cheiros para que possam se proteger e dividir recursos. O que quero dizer com isso? Devemos procurar sinais de mudança e estresse em nossos membros de equipe. Alguns indicadores são diretos, como terapeutas que dizem que não aguentam mais, mas há outros indicadores indiretos, como apresentar-se mais vulnerável emocionalmente, ou mesmo parecer mais julgador ou então desrespeitoso quando fala de um determinado paciente ou com a equipe. Outros sinais indiretos comuns são perceptíveis quando o terapeuta constantemente evita ou viola os acordos de equipe e o uso do modelo biossocial para pensar em intervenções. E por fim é comum que constantemente o terapeuta viole seus próprios limites pessoais, um período em que “estique demais “a corda.
Nas reuniões de consultoria, assim como na terapia individual, devemos manter um bom equilíbrio entre os dois paradigmas da DBT: o paradigma da aceitação e da mudança.
O paradigma da aceitação explica o motivo de fazermos mindfulness logo no inicio da reunião: para facilitar que todos terapeutas fiquem atentos ao momento presente observando, descrevendo e participando da consultoria, sem julgamentos, procurando fazer uma coisa de cada vez. Isto facilita para que o ambiente seja mais validante, para que os terapeutas possam se abrir. Destaco também o papel do observador, que auxilia o grupo a se manter dessa forma.
É extremamente recente a chegada da DBT no Brasil, o que faz com que a preocupação em manter as intervenções conforme o manual seja uma dos principais receios das novas equipes de consultoria. Porém, isso pode fazer com que os terapeutas ocultem muito suas emoções em relação o atendimento, pendendo muito mais para a balança da mudança.
O paradigma da mudança é importante para que se façam alterações para um estilo de vida mais saudável para os terapeutas. Em diversas consultorias, após algumas analises em cadeia e de soluções, muitos terapeutas já adaptaram suas agendas para dormirem mais, exercitarem mais ou ficarem mais tempo com seus filhos.
Eu mesmo percebi que o que me impedia de fazer exercícios físicos era um pequeno “missing link”. Como a maioria dos meus atendimentos ocorrem no turno da noite, minha agenda de exercícios ficaria mais apropriada pelo turno da manhã. Porém, historicamente, não a mantinha, pois acabava marcando um paciente ou uma reunião nos meus horários de exercícios.
Após algumas análises, percebi que o que fazia eu deixar de fazer exercícios para trabalhar ainda mais era um sentimento de culpa. Culpa por não estar trabalhando em um horário em que a maioria das pessoas estavam, me sentia um verdadeiro vagabundo. Obviamente essa emoção não condizia com os fatos. A análise de solução? Praticar ação oposta à culpa. Por muito tempo corri pelas ruas de Porto Alegre em parceria com minha culpa.
A verdade é que com DBT podemos identificar, prevenir e até tratar terapeutas com burnout, assim tornando uma comunidade de terapeutas que cuidam de seus pacientes e uns dos outros. Encerro esse texto dedicando para todos os meus colegas de equipe de consultoria, tanto os antigos que muito me ajudaram, quanto os atuais de cada segunda feira a noite, que fortalecem minha semana com muita validação e sim, muitas soluções de problemas.