Terapias feministas e Green FAP: Integrando valores ao processo terapêutico

Anteriormente tentei discutir a influência dos valores do terapeuta na sua atuação profissional (https://comportese.com/2013/10/a-questao-do-poder-e-do-privilegio-na-pratica-clinica/). Busquei questionar como preconceitos e outras formas de controle do status quo podem ser mantidos sem nos darmos conta. Desta vez tentarei mostrar brevemente duas formas de discutir os valores e o impacto destes dentro do setting clínico: uma aproximação da FAP com as terapias feministas e a Green FAP.

Antes disso, dois conceitos merecem ser retomados: a noção de poder e privilégio. Poder pode ser entendido como o controle de um indivíduo ou grupo sobre reforçadores importantes e sobre história de reforçamento de outros indivíduos; já privilégio é o acesso diferenciado a reforçadores, sendo que este acesso é garantido não por mérito, e sim, pela sua inclusão em determinado grupo social (Terry, Bolling, Ruiz & Brown, 2010). A história de vida do terapeuta, embebida em seus privilégios, constrói valores particulares. Esses valores podem guiar decisões sobre a intervenção clínica, e gerar relações de controle, das quais o terapeuta pode não estar consciente.

A discussão acerca das relações de poder e privilégio dentro do setting se faz necessária, não apenas para evitar vieses na intervenção, mas principalmente por que estas discussões podem levar os clientes a desenvolver o seu autoconhecimento, além de a questionar certas práticas culturais (ou relações de poder) que influenciam diretamente na sua vida ou do seu grupo. Talvez a maioria dos leitores não discorde da importância desse tipo de questionamento dentro da prática clínica, mas pode ser que algumas pessoas tenham dificuldades para pensar em como colocar isso em prática sem parecer panfletagem em torno de uma causa dentro do consultório. Afinal, como diria o escritor Jim Dodge “qualquer um amassa tomates; o difícil é fazer o molho”. Portanto, vamos olhar brevemente duas maneiras de fomentar esse tipo de discussão na prática clínica.

As terapias feministas e a FAP:

As terapias feministas englobam vários tipos de terapia que surgem no decorrer da evolução do próprio movimento feminista (mais informações sobre esta história podem ser encontradas em Narvaz & Koller, 2007). Assim como não se pode falar de um único movimento feminista, também não é possível identificar apenas uma terapia feminista. Mas apesar de toda a pluralidade, existem certos pontos em comum, se não em todas as terapias, pelo menos na maior parte. A principal interseção entre as terapias feministas é o seu comprometimento com o questionamento e a modificação das relações de poder na sociedade.

Apesar do enfoque contextual destas terapias se aproxima bastante do enfoque do behaviorismo radical, não existem tantos trabalhos unindo as duas visões de mundo. As terapias feministas se expandiram num contexto muito mais psicanalítico do que analítico-comportamental (irônico, não?). Como um palpite, eu diria que isso tem a ver a crítica severa que as terapias feministas tem com o método experimental das ciências naturais, método este que sempre foi o sonho de consumo de 9 entre 10 analistas do comportamento. Talvez por isso que a principal abertura (mas não a única) que estas áreas encontraram para dialogar foi no campo da terapia, particularmente, na terapia analítico funcional (FAP). A iconoclastia e mobilização para a mudança, bem como a sua crítica às relações de poder hierarquizadas das terapias feministas, encontraram uma boa recepção dentro da FAP, uma terapia que valoriza a relação terapêutica e se preocupa bastante com as relações de poder que podem surgir dentro do setting clínico.

Uma intervenção baseada nesses pressupostos tem dois objetivos bem característicos: (a) evidenciar os fatores sociopolíticos que aparecem na relação terapêutica e; (b) quebrar a hierarquia na relação entre terapeuta e cliente. Os fatores sociopolíticos são abordados por meio de: identificação e discussão junto ao cliente do seu papel dentro do seu contexto social (gênero, classe social, etnia, etc), bem como os seu privilégio por fazer parte de determinados grupos e as relações de poder que exerce e que está submetido; desenvolvimento de estratégias de enfrentamento (coping); e encorajar o cliente a agir na direção de uma mudança social (micro e macro).

Já a quebra da hierarquia na relação terapêutica é necessária para evitar que o terapeuta reproduza as relações de poder desiguais que os clientes encontram fora do gabinete. Isto pode ser feito por meio de: clarificação de valores (tanto do terapeuta quando do cliente), a fim de que o cliente possa escolher aqueles que fazem mais sentido para a sua realidade, além de questionar aqueles que lhe foram ensinados; desmistificação do processo terapêutico; uso cuidadoso de diagnósticos, para evitar a noção de “doença”; e o desenvolvimento de intervenções condizentes com a realidade do cliente (Terry, Bolling, Ruiz & Brown, 2010).

Ao final do processo é esperado que o cliente amplie o seu conhecimento a respeito das variáveis que controlam o seu comportamento, bem como a construção social destas relações de controle e a sua responsabilidade na manutenção das mesmas. Para esse tipo de terapia todo comportamento (ou pelo menos a maior parte) tem uma dimensão sociopolítica, portanto, em algum momento a queixa do cliente irá passar por esta seara, e sem levar isso em consideração a terapia não estaria favorecendo a autonomia do cliente. Este posicionamento sociopolítico é tão valorizado que não é incomum que este tipo de intervenção resulte no engajamento do cliente em grupos ou em atividades que visem uma mudança social mais ampla.

A Green FAP:

Outra forma de debater os valores dentro do consultório foi proposta pela Green FAP. Enquanto a FAP costuma ser uma terapia que evita se comprometer com qualquer tipo de valores, a Green FAP abraça abertamente os valores das politicas verdes (green politics) (Tsai, Kohlemberg, Bolling & Terry, 2011). A ideologia por trás destas politicas dá grande importância para a sustentabilidade, justiça social e modelos alternativos de democracia. Os autores desta proposta afirmam que conforme os problemas globais foram se intensificando, uma abordagem baseada em valores que evidenciassem e discutissem estes problemas se fez necessária.

Cabe ressaltar que a Green FAP não tira de foco as queixas do cliente. Na verdade ela é uma intervenção que pode ou não ser usada a depender de cada caso. As discussões propostas por esse tipo de terapia são adicionadas na intervenção, e não devem concorrer com outros focos do processo terapêutico. Para seus proponentes a consciência social tem um papel crucial no tratamento, beneficiando tanto os clientes quanto o planeta (Tsai, Kohlemberg, Bolling & Terry, 2011).

Uma intervenção baseada nessa proposta pode parecer um tanto estranha, pois, além de se basear nas politicas verdes, é fortemente influenciada por filosofias orientais (e.g., budismo). Os proponentes desta abordagem dão dicas de como um terapeuta que queira implementar este tipo de intervenção deverá atuar. Ele deve: criar um espaço de discussões sobre as politicas verdes dentro do setting; promover o comportamento altruísta, como por exemplo, doações ou participação em ONG’s; desenvolver o senso de responsabilidade social universal, no intuito de gerar ações voltadas para o bem estar do grupo; avanço no senso de propósito e de missão pessoal, os indivíduos devem buscar um objetivo para a sua vida e se empenhar nele, que pode ser desde escrever poesia até voluntariado em países em guerra, o importante é que o terapeuta ajude o cliente a encontrar seus próprios objetivos e se engajar na sua realização.

Conclusão:

Estas não são as duas únicas formas de utilizar os valores para o avanço do processo terapêutico e da modificação das relações de poder desiguais que influenciam tanto os comportamentos do cliente quanto do terapeuta. Outras terapias (e.g. Terapia de Aceitação e Compromisso – ACT) colocam os valores como ferramentas de extrema importância que não podem ser deixadas de lado pelo terapeuta. Porém tanto as terapias feministas quanto a Green FAP se destacam neste meio, devido a sua intervenção comprometida com uma mudança social, não se restringindo apenas a mudança do comportamento do cliente.

Retomando o velho Jim Dodge: “qualquer um amassa tomates; o difícil é fazer o molho”. Basear uma intervenção nestas propostas não é algo simples, na verdade é bem difícil de ser feito e requer uma leitura aprofundada de cada uma. Sem o devido cuidado, o terapeuta pode acabar impondo seus próprios valores (que ele pode confundir com os valores dessas terapias) e ferindo gravemente o processo terapêutico e o próprio código de ética da nossa profissão. Todavia, este tipo de discussão não é apenas de extrema importância, como também é prevista nos princípios fundamentais desse mesmo código de ética:

“II. O psicólogo trabalhará visando promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades e contribuirá para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

III. O psicólogo atuará com responsabilidade social, analisando crítica e historicamente a realidade política, econômica, social e cultural.

VII. O psicólogo considerará as relações de poder nos contextos em que atua e os impactos dessas relações sobre as suas atividades profissionais, posicionando-se de forma crítica e em consonância com os demais princípios deste Código.”

Amassar tomates já é um primeiro passo, mas precisamos aprender a fazer o molho.

Referências:

Narvaz, M. G., Koller, S. H. (2007). Feminismo e terapia: a terapia feminista da família – por uma psicologia comprometida. Psicologia clínica, 2(19), pp.117-131.

Terry, C., Bolling, M. Y., Ruiz, M. R., Brown, K. (2010). FAP and feminist therapies: confronting power and privilege in therapy. Em Kanter, J. W. et al (Orgs). The practice of functional analytic psychotherapy. (pp. 97-122). Seatle: Springer.

Tsai, M., Kohlemberg, R. J., Bolling, M. Y., Terry, C. (2011).Valores na terapia e Green FAP. Em Tsai, M., Kohlenberg, R. J., Kanter, J. W., Kohlenberg, B., Follete, W. C., & Callaghan, G. M. (2011). Um guia para a Psicoterapia Analítica Functional (FAP): consciência, coragem, amor e behaviorismo. (pp.249-265). Santo André, SP: ESETEc

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Escrito por Bernardo Rodrigues

Psicólogo pela Universidade da Amazônia, mestre em Psicologia Experimental pela UFPA, especialista em clínica analítico-comportamental pelo Núcleo Paradigma. Atualmente trabalha como psicoterapeuta e acompanhante terapêutico no Núcleo Paradigma.

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