“Deus falou comigo!” – sobre o sobrenatural, o Big Brother e como nos comportamos

“Deus falou comigo, povo. A plaquinha com o número 11 caiu quando eu estava caminhando. Do nada a placa caiu!!! E não tinha vento. Caiu, assim, do nada. Foi Deus! Deus falou comigo”.

Foi mais ao menos assim que a advogada e maquiadora Juliette, do Big Brother Brasil, justificou sua “sorte” em um jogo de salvação para o famigerado “paredão” do programa fetichista mais assistido do mundo. E Juliette não foi a primeira e nem será a última a atribuir a Deus – ou qualquer outra força sobrenatural – uma mudança de comportamento ou pensamento. Outros participantes, como Gilberto ou Camila de Lucas, já disseram que sonhos premonitórios e revelações divinas mudaram suas ações no programa.

A idéia é que “agentes sobrenaturais”, ou seja, algo para além do mundo físico, conhecido e natural exerça algum tipo de FORÇA sobre o mundo observável, explícito – bruto mesmo. De modo que no mundo, para além das ondas de rádio e forças magnéticas (que existem mas não vemos!) habitem também os desejos e motivações de SERES INTELIGENTES, como anjos, espíritos ou Deus (e deuses!). Esta idéia de “sobre-naturalidade inteligente e com motivações próprias” parece algo que acompanha o Ser Humano desde os primórdios. E te digo que – goste você ou não – isso é esperado, e natural, para nós Humanos.

Nossos cérebros são máquinas engenhosas de interpretação. E são máquinas tão complexas que não se contentam com o “incerto” ou “acaso”. O cérebro, por motivos, até mesmo de segurança, quer e precisa encaixar as experiências que vivemos, em “caixas de significado” – o que significa: precisa dar nomes, posicionar as experiências que atingem o organismo momento-a-momento através de palavras e formas conhecidas

É por isso que, quando somos crianças, e vemos sombras e reflexos durante a noite, e essas sombras – porventura – apresentam um formato de um animal, temos medo. Nossos cérebros querem, em última instância, nos proteger e garantir a vida. Por isso, eles possuem “sistemas operacionais” instalados para detecção de perigo, para além de uma contínua INTERPRETAÇÃO de tudo que acontece ao nosso redor.

Portanto, se algo ASSUSTADOR ou INESPERADO acontece, não se encaixando em um padrão prévio esperado, a Rede de Saliência em seu cérebro entra em ação ativando o corpo e as regiões cognitivas para TENTAR DAR SENTIDO ao temeroso e surpreendente. Esta é a forma que o cérebro faz. Ele busca categorias conhecidas – como formas, nomes, etc. Se você ver uma luz muito brilhante no céu se movendo rapidamente talvez você ache que é OVNI, e não um balão metereológico, e você só pode achar que é OVNI porque algum dia alguém lhe disse algo sobre OVNIS. Ou você assiste muitos filmes sobre ETs. Mas se você nunca ouviu falar sobre OVNIS talvez o seu cérebro não encontre uma resposta óbvia, ou rápida, mas ele segue trabalhando, simplesmente porque ele foi feito para ser assim. Não ter uma resposta, e ficar em paz com isso, é algo que nunca foi útil para o seu cérebro. Cérebros que buscavam todas as hipóteses possíveis, para nossos ancestrais das cavernas, garantiam maior chance de sobrevivência e propagação da espécie. Cérebros menos “ativos”, mais preguiçosos, nunca foram úteis. Mas por que seu cérebro não pensou em um balão metereológico? Oras, porque você nem sabe o que é um balão metereológico, mas sabe tudo sobre ETs, não é mesmo. É só ligar a TV. Portanto, ETs e OVNIS são a primeira opção de muitos cérebros quando vêem luzes estranhas no céu. Pode ser tanta coisa, mas o cérebro “encaixota”: “é muito diferente! É um disco voador, provavelmente”. Era um disco voador? Não sabemos!

Pensadores da Psicologia Evolucionista advogam que nossos cérebros, a partir dessa busca incessante em encontrar sentido no mundo, particularmente frente ao extraordinário, tiveram um papel preponderante na geração de sistemas de crenças que foram se complexificando e co-criando o que hoje chamamos de valores culturais e ou religiosos. Crenças religiosas como alma, espírito, demônios, rezas, falar com os mortos, céu, inferno e Deus, por exemplo, apesar de nunca terem se apresentado através de evidências científicas tão brutais quanto a força da gravidade, são parte da Humanidade. Serviram e seguem servindo para dar sentido a um mundo e uma realidade por vezes muito estressante e tremenda para o cérebro.

Pessoas que dizem ver anjos, espíritos, ou sentir a presença de Deus, são pessoas comuns, que estão sentadas ao seu lado, enquanto você lê este texto. Talvez seu pai ou sua mãe sejam assim. Talvez você! Deus já falou contigo, assim como falou com a Juliette? Talvez.

Isso significa que anjos existem? Ou que Deus existe, e realmente fala com as pessoas?

A resposta é: NÃO SABEMOS. Do ponto de vista coletivo, de um saber coletivo balizado pela ciência, nem temos como saber. A resposta ontológica está vedada, neste caso. Não temos até mesmo instrumentos de qualquer natureza para verificar a existência (ou não), de Deus ou entidades sobrenaturais. Muito menos, caso EXISTAM, que possam se comunicar conosco. Porém não podemos afirmar – categoricamente – o contrário, ou seja, que absolutamente NÃO EXISTAM. O que sabemos é que muitas pessoas acreditam – E SENTEM E EXPERIMENTAM – de modo subjetivo e idiossincrático, a existência destas entidades. Não apenas sentem, como podem mudar seus comportamentos, e até mesmo ganhar 1 milhão de reais em um programa de TV. Foi Deus? Foi o acaso? Se você perguntar para a Juliette ela dirá que Deus ajudou. E quem é você para dizer que não?

E não vale a pena vir citar Allan Kardec, o seu vizinho espírita, o pastor do seu bairro, o milagre que sua avó conta, ou os estudos de Ian Stevenson sobre vidas passadas, como comprovação científicas da existência de espíritos ou de Deus. Não servem como evidência categórica e inquestionável, do ponto de vista científico. São apenas um aglomerado impressionante de evidências anedóticas e uma massa bruta de vivências subjetivas, coletivas e individuais. Não devem ser ignoradas ou diminuídas, mas não são prova inconteste do sobrenatural. Além disso, quando postas sob prova, acabam violando premissas básicas de leis físico-químicas conhecidas, de modo que ou abandonamos essas leis, ou revisamos elas tão profundamente que param de fazer sentido até para coisas conhecidas! São algo entre o anedótico e uma profissão de fé. Mas não significam que não sejam vivências reais, do ponto de vista de quem as experimenta.

Se eu sinto que Deus está falando comigo, e é algo que eu – somente eu – sinto e percebo. Quem poderá dizer que não é real? Porém, é preciso relativizar o poder da subjetividade, senão logo mais sinto que sou o Dalai Lama, mas eu sei que isso não é verdade. Portanto, a verdade subjetiva é extremamente complexa, e onde ela é forte, é ao mesmo tempo extremamente frágil.

E vale lembrar que – quando estamos sob estresse e medo – nosso sistema cerebral límbico está explodindo em atividade, gerando uma tendência hiperbolicamente maior de buscarmos uma resposta. A resposta, alivia a pressão. Rezar, por exemplo, ajuda a aliviar a pressão ou dar sentido para medos e incertezas. Tem um Deus escutando do outro lado? Não sabemos. Mas quem reza acredita que sim.

Assim, essa máquina fantástica de interpretação do mundo – o cérebro – tem na crença no sobrenatural uma possível função econômica que auxilia na diminuição do senso de incerteza frente ao estresse ou ao extraordinário. Por isso que a Juliette do BBB sente que a plaquinha com o número 11 não caiu ao “acaso”, mas porque “Deus” enviou um “sinal” para ela. Qual é a verdade? Deus falou com ela? Ou a placa caiu simplesmente porque leis físicas de atrito e gravidade estavam simplesmente atuando? Ou as duas coisas? A verdade é que NÃO SABEMOS.

OBRIGADO DEUS!!!

Sabemos, entretanto, que em ciência a imputação de agentes sobrenaturais em pouco ajuda para esclarecermos a realidade de fenômenos físico-químicos. Simplesmente porque entramos em um “pode ser, pode não ser” infinito. Entramos em uma questão filosófica capaz de estancar o avanço de um problema, ou se solução rápida demais (e incerta!). O que ajuda no empreendimento científico é a constante curiosidade, a inquietação, a revisão por pares, a permanente dúvida. Por isso, crenças sobrenaturais só ajudam – neste caso – se fomentam a curiosidade contínua somada a instrumentos de investigação humanos. Se apenas entrega respostas rápidas e vozes coletivas de “verdade”, podem impedir o avanço.

Veja o exemplo dos primeiros astrônomos, ou de Newton. A maioria era crente em Deus, mas sem um telescópio ou diversos instrumentos de mensuração, a sabedoria de “Deus” nunca poderia ser revelada. Por isso, até hoje, cientistas crentes (ou seja, que crêem em Deus), muitas vezes atribuem os seus achadas científicos à “vontade e autorização de Deus em se revelar através da matemática, da química, da física, etc”. Já outros(as) cientistas não entendem como algo razoável colocar “Deus”, ou algo similar, na fórmula. Tudo que existe é um mundo natural – por si só enigmático e incrível – mas que nada tem relação com Deus, céu, inferno ou outros agentes sobrenaturais.

Fato é que nossos cérebros são inquietos, curiosos, surpreendentes, e não se contentam com pouco. Eles são máquinas infinitamente complexas, que buscam incessantemente respostas fechadas para problemas – simples ou complexos. Isso ajuda a aliviar o sistema! Veja o desafio abaixo. O que você vê na imagem?

UMA VELHA? Ou uma moça jovem de perfil? Qual é a resposta verdadeira? Não tem! Percebe que seu cérebro ficou (ou ainda está!) buscando a imagem que ele não viu primeiro? Fato é que ele rapidamente tentou dar sentido para o que está “vendo”. Após “ver” tentou encaixar em algum categoria já conhecida, como “idosa”, “velha”, “moça”, etc. Mas não tem uma “resposta certa”. E se você ver qualquer outra coisa que não seja uma velha ou uma moça de perfil, também está certo, pois é a sua percepção! Qual é a verdade? A sua!

Há muitos anos atrás, aqui no Brasil, uma mancha surgiu em uma janela de uma casa no interior de SP. Logo as pessoas começaram a “ver” a imagem de uma SANTA naquele borrão. Algumas pessoas chegaram a dizer que foram abraçadas pela SANTA, que apareceu para elas e falou com elas. O fenômeno da mancha no vidro, porém, é conhecido na física como irisação, sendo uma degradação alcalina da superfície do vidro que gera distorções em forma e cor. É um fenômeno relativamente comum. Mesmo com laudos científicos emitidos pela própria Igreja, contradizendo o fato como “milagre”, até hoje existem peregrinações para a “Santa da Janela”, que reúnem até 150 pessoas. Os cérebros querem crer, porque crer alivia demais as dores e incertezas da vida. Seria isso? Ou a SANTA abraça mesmo as pessoas?

Assim, para quem “crê”, podemos pensar que essa crença no sobrenatural seria: 1 – uma mera subjetividade que faz bem a quem crê, e não diz respeito a um SER REAL ou; 2 – a uma expressão em um vidro de um SER REAL, QUE É UM SANTO OU SANTA, e não vive neste mundo; o que é?…………não sabemos! O que sabemos é que – do ponto de vista da ciência empírica, ficamos com o fenômeno da irisação. É a explicação mais simples e mais elegante, portanto. Mas quem pode afirmar que a SANTA não utilizou a irisação para SE MOSTRAR? Que foi um desejo da SANTA se mostrar através do mundo natural e seus fenômenos? Percebam como é complexo.

Mas, afinal: foi Deus quem derrubou a plaquinha com o número 11 para ajudar a Juliette do BBB a se livrar do paredão? Ou isso seria apenas o cérebro dela tentando dar sentido a uma experiência estressante? O que você acha?

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Escrito por Tiago Tatton

piadista inveterado, torcedor do Flamengo e pai da Clara Luz. Nas horas vagas é psicólogo, especialista e mestre em Ciência da Religião (UFJF/MG), doutor em Psicologia (UFRGS/RS e King´s College Londres), pós-doutor em Psiquiatria e Ciências do Comportamento (UFRGS/RS). Diretor Geral da Iniciativa Mindfulness. Em 2016 completou o Mindfulness Advanced Teacher Intensive pela Universidade da California em San Diego (USA).

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