Em 23 de Junho de 2011, Benedict Carey, do The New York Times realizou uma entrevista com Marsha Linehan, onde ela conta sua história com o transtorno de personalidade borderline.
Tradução: Mateus Felipe Tavares
Revisão técnica: Psic. Clara Carvalho e Psiq. Alexandre Tzermias
“Você é uma de nós?”
O paciente quis saber, e sua terapeuta – Marsha M. Linehan, da Universidade de Washington, criadora de um tratamento utilizado mundialmente para pacientes com comportamentos suicidas e autolesivos – já possuía uma resposta pronta. Era a que ela usava como carta na manga a fim de interromper os questionamentos, se um paciente perguntasse esperançosamente, alarmantemente ou sapiente, olhando ao macramê de cicatrizes de queimaduras, cortes ou riscos nos braços da Drª Linehan:
“Você quer saber se eu sofri?”
“Não, Marsha,” replicou o paciente, em um encontro na primavera passada. “Eu digo, uma de nós. Como nós. Porque se você for, isto daria a todos nós tanta esperança.”
“E foi isso”, disse Drª Linehan, 68, que levou sua história a público pela primeira vez na semana anterior a esta reportagem fronte a uma audiência de amigos, familiares e médicos no Institute of Living, a clínica de Hartford onde ela se tratou pela primeira vez de um isolamento social extremo aos 17 anos. “Tantas pessoas imploraram para que eu fosse à frente, e eu apenas pensei: ‘bem, eu preciso fazer isso. Eu devo isso a eles. Eu não posso morrer como uma covarde. ’”
“Nós, que lutamos para conviver com estes transtornos, podemos levar vidas plenas, felizes e produtivas se tivermos acesso aos recursos adequados.”
Ninguém tem noção de quantas pessoas com transtornos mentais severos vivem o que parecem ser vidas normais e bem-sucedidas, porque tais pessoas não têm o hábito de falar sobre suas vivências. Elas estão ocupadas demais lidando com responsabilidades, pagando contas, estudando, construindo famílias; tudo isso ao mesmo tempo em que lutam para tentar resistir às rajadas de emoções sombrias e delírios que poderiam sobrecarregar qualquer pessoa.
Agora, um número crescente delas está arriscando expor seus segredos pessoais, dizendo que o momento é este. O sistema nacional de saúde mental [dos EUA] é uma vergonha, dizem eles, criminalizando muitos pacientes e alojando os pacientes mais graves em manicômios e casas de tratamento em grupo, onde eles recebem os cuidados advindos de profissionais com qualificações mínimas.
Além do mais, o profundo estigma de ter um transtorno mental ensina às pessoas com tais diagnósticos a se enxergarem como vítimas, deixando escapar a única coisa que pode motivá-las a buscar tratamento: a esperança.
“Existe uma necessidade tamanha de acabar com os mitos acerca dos transtornos mentais, dar nome aos bois, mostrar às pessoas que um diagnóstico não tem que nos levar a uma vida dolorosa e cheia de percalços,” disse Elyn R. Saks, professora da Escola de Direito da Universidade da California do Sul, em “O Centro não Pode Aguentar: Minha Jornada Através da Loucura”. “Nós que lutamos para viver com estes transtornos podemos levar vidas plenas, felizes e produtivas se tivermos acesso aos recursos adequados.”
Estes recursos incluem medicações (comumente), terapia (com frequência), uma boa dose de sorte (sempre) e, acima de tudo, a força interna para manejar ou até mesmo expulsar os nossos próprios demônios. Esta força pode advir de inúmeros lugares, dizem os pacientes antigos: do amor, do perdão, da fé em Deus, ou de uma amizade de toda a vida.
Entretanto, o caso de Drª Linehan aponta que não há uma receita. Ela foi guiada pela missão de ajudar pessoas cronicamente suicidas, a maioria como consequência do transtorno de personalidade borderline, uma enigmática condição, caracterizada em partes por impulsos autodestrutivos.
“Eu honestamente não me dava conta que estava lidando comigo mesma naquela época,” afirmou. “Porém, eu suponho que seja verdade que consegui desenvolver a terapia que oferece coisas que eu precisei por tantos anos e nunca tive”, sustenta.
“Eu vivia no Inferno”
Linehan aprendeu sobre a tragédia de conviver com um grave transtorno mental da forma mais dura: batendo a própria cabeça contra a parede de uma sala fechada.
Marsha Linehan deu entrada no Institute of Living em 9 de março de 1961, aos 17 anos e rapidamente se tornou ocupante de uma sala de reclusão solitária na unidade conhecida como Thompson Two, voltada para os pacientes com transtornos mais severos. A equipe não via outra alternativa: a garota tinha o hábito de se machucar, queimava seus pulsos com cigarros, cortava a pele dos seus braços, de suas pernas, e tronco… Usando qualquer objeto afiado que estivesse ao seu alcance.
A solitária era uma pequena cela com uma cama, uma cadeira e uma janela minúscula e gradeada e não possuía tais objetos. Porém, estar ali só aprofundava o seu desejo de morrer. Assim, ela se dedicou a fazer a única coisa que ainda lhe fazia algum sentido naquele período: bater sua própria cabeça contra a parede e depois, no chão. Com força.
“Toda minha experiência com estes episódios fora a de que era outra pessoa que estava fazendo aquilo; era tipo, ‘eu sei que isso vai acontecer, eu estou fora de controle, alguém me ajude! onde você está, Deus?'”, disse. “Eu me sentia completamente vazia, como o Tin Man [personagem de lata, à procura de um coração, do Mago de Oz (N.T.)]; eu não conseguia encontrar nenhuma maneira para expressar o que acontecia comigo, nem para entender”.
“Tantas pessoas imploraram para que eu fosse à frente, e eu apenas pensei: “bem, eu preciso fazer isso. Eu devo isto a eles. Eu não posso morrer como uma covarde.” Disse Marsha M. Linehan, psicóloga na Universidade de Washington
Sua infância, em Tulsa, Oklahoma, proporcionou poucas pistas. Uma estudante exemplar desde cedo, pianista nata, era a terceira dos seis filhos que tiveram um empresário do ramo do petróleo e sua esposa, uma mulher extrovertida que dava conta do cuidado dos filhos e ainda participava ativamente da Junior League [associação sem fins lucrativos dos Estados Unidos com objetivo de melhorar a comunidade, N.T.] e de eventos sociais em Tulsa.
Pessoas que conheciam os Linehans à época lembram que sua terceira criança precoce estava frequentemente com problemas em casa, e a Drª Linehan lembra-se de sentir-se profundamente inadequada em comparação com seus irmãos interessantes e cheios de conquistas. Externamente, ninguém percebia o que se passava com ela. Contudo, havia muito sofrimento em seu interior, até que ela ficou acamada com dores de cabeça no seu último ano do high school [compatível com o ensino médio brasileiro (N.T.)]
Sua irmã mais nova, Aline Haynes, afirmou: “Era a Tulsa da década de 60 do século XX, e eu não acho que meus pais tinham noção do que se fazer com a Marsha. Ninguém sabia de fato o que era transtorno mental.”
Não demorou muito para que um psiquiatra recomendasse um tempo no Institute of Living, para entender as bases do problema. Lá, os médicos lhe deram um diagnóstico de esquizofrenia, e ministraram doses de clorpromazina, um benzodiazepínico e outros fármacos potentes, assim como muitas horas de análise com terapeutas Freudianos; além de prescreverem sessões de eletrochoque [eletroconvulsoterapia] como tratamento: 14 vezes na primeira vez; e 16, na segunda, de acordo com seu prontuário. Nada mudou, e então a paciente voltou para a cela solitária no pavilhão de confinamento.
“Todos tinham medo de terminar na solitária,” disse Sebern Fisher, uma colega de internação que se tornou uma amiga próxima de Marsha. Porém, em qualquer ambiente, prosseguiu a Srª Fisher, “Marsha era capaz de oferecer um bom cuidado em relação às outras pessoas. Sua paixão era tão profunda como sua solidão.”
Uma relatório de alta médica, datado de 31 de Maio de 1963, afirmava que “durante 26 meses de hospitalização, a Senhorita Linehan foi uma das pacientes mais perturbadas na clínica durante grande parte do tempo.”
Um verso que aquela garota problemática escreveu na época:
Eles me colocaram em um quarto com quatro paredes
Mas me deixaram realmente de fora [provável alusão a estar dopada, fora de si (N.T.)][1]
Minha alma foi jogada em algum lugar torto
Meus membros foram largados aqui
Batia forte a cabeça onde pudesse, a tragédia continuava: não havia quem soubesse o que estava acontecendo com ela, e como resultado, os tratamentos médicos pareciam apenas piorar a situação. Um tratamento de verdade deveria ser baseado em fatos, não em teorias, ela concluiria depois: qual emoção exata levava a pensamentos que por sua vez levavam a tais atos grotescos? Tal tratamento deveria quebrar a cadeia de comportamentos e ensinar à pessoa um novo comportamento.
“Eu estava no inferno”, afirmou ela, “e eu fiz uma promessa: quando sair, voltarei para retirar outros daqui.”
Aceitação Radical
Enquanto orava em uma capela em Chicago ela sentiu o poder de um outro princípio.
Era 1967, muitos anos após ter deixado o instituto como uma jovem desesperada e que, segundo os médicos, tinha poucas possibilidades de sobrevivência fora do hospital psiquiátrico. Sobreviver ela conseguiu, com dificuldade: fez ao menos uma tentativa de suicídio em Tulsa, assim que chegou em casa; e outro episódio após ingressar em uma associação de jovens cristãos [YMCA – as unidades da associação também oferecem moradia, N.T.] como tentativa de recomeço.
Hospitalizada novamente e de lá saiu imensamente confusa, sozinha e, mais do que nunca, dedicada à sua fé Católica. Mudou-se para outra unidade da associação cristã; conseguiu um emprego como balconista em uma empresa de seguros, e começou a estudar na Universidade Loyola no turno da noite; e orou, frequentemente, na capela do centro de reabilitação Cenacle Retreat Center.
“Uma noite eu estava ajoelhada lá, olhando a cruz, e todo o lugar se tornou dourado, quando de repente eu senti algo vindo até mim”, afirmou. “Eu tive essa experiência pulsante e apenas corri para meu quarto e disse: ‘Eu me amo’. Que eu me lembre, aquela foi a primeira vez que eu falei comigo mesma em primeira pessoa. Eu me senti transformada.”
Aquele estado durou mais ou menos um ano, até que os sentimentos devastadores retornaram após o término de um relacionamento. Mas algo estava diferente. Agora ela poderia enfrentar suas tempestades emocionais sem se machucar ou se cortar.
A porta do quarto onde quando adolescente, Dra. Linehan foi colocada em reclusão. O quarto foi transformado em um pequeno escritório. Damon Winter / The New York Times.
O que havia mudado?
Levou anos de estudo em psicologia – ela conquistou o Ph.D. na Universidade de Loyola em 1971 – antes de encontrar uma resposta. À primeira vista, parecia óbvio: ela tinha se aceitado como era. Tinha tentado suicídio tantas vezes porque o abismo entre a pessoa que ela queria ser e a pessoa que era a deixou desesperada, desesperançosa e profundamente saudosa de uma vida que ela nunca experienciaria. O abismo era real e intransponível.
A ideia básica (aceitação radical, como ela o nomeia) tornou-se crescentemente importante quando ela começou a trabalhar com pacientes; primeiro em uma clínica para pacientes suicidas, em Buffalo, e depois como pesquisadora. Sim, uma mudança real era possível. A então emergente teoria do Behaviorismo Radical ensinou que pessoas poderiam aprender novos comportamentos – e que agir de maneira diferente pode, com o tempo, modificar as emoções subjacentes.
No entanto, pessoas gravemente suicidas tentaram mudar milhões de vezes e falharam. A única maneira de se conectar com essas pessoas foi reconhecer que seus comportamentos e suas emoções faziam sentido: pensamentos de morte eram doces livramentos dado o que eles estavam sofrendo.
“Ela era muito criativa com as pessoas. Eu percebi isto imediatamente,” disse Gerald C. Davison, que em 1972 admitiu Drª Marsha Linehan em um programa de pós-doutorado em terapia comportamental na Universidade Stony Brook (ele agora é psicólogo na Universidade do Sul da Califórnia.) “Ela podia entender o cerne do sofrimento das pessoas, desafiá-las com coisas que elas não queriam escutar sem fazê-las sentir-se machucadas.”
Nenhum terapeuta pode prometer uma transformação rápida ou qualquer tipo de “insight” instantâneo por parte do paciente, muito menos um insight religioso deslumbrante. Mas a Drª Linehan estava se aproximando dos dois princípios que formariam a base de seu tratamento: aceitação da vida como ela é, não como achamos que deveria ser; e a necessidade de mudar, apesar da realidade e por causa dela. O único jeito de saber com certeza se ela teria algo a mais do que uma teoria seria testá-la cientificamente no mundo real – e nunca houveram dúvidas sobre por onde começar.
Vivendo o Dia
“Eu decidi trabalhar pessoas com comportamento suicida grave e recorrente, os casos mais severos, porque eu me dei conta de que estas são as pessoas mais miseráveis do mundo: eles pensam que são o mal em forma de gente, que são ruins, ruins, ruins! E eu entendi que eles não são,” declarou a pós-doutora. “Eu entendi o sofrimento dessas pessoas porque eu estive lá, no inferno, sem saber como sair.”
Em particular, ela escolheu tratar de pessoas com um diagnóstico que ela recebeu na juventude: Transtorno de Personalidade Limítrofe (Personalidade Borderline), uma condição muito mal compreendida, caracterizada por medo do abandono, apego excessivo, rompantes e impulsos autodestrutivos, geralmente levando a autolesões como cutting e queimaduras. Durante a terapia, pacientes com personalidade borderline podem ser aterrorizantes: manipuladores, hostis; por vezes calam-se de maneira ameaçadora; e expressando explicitamente que, ao deixar o consultório, tentarão suicídio.
A Drª Linehan percebeu que a tensão da aceitação poderia ao menos manter as pessoas no consultório: pacientes aceitam quem são, e que eles vivenciam a explosão da raiva, vazio emocional e ansiedade de maneira mais intensa do que a maioria das pessoas. Com isto, o terapeuta aceita que diante de tudo isto, cortar-se, queimar-se e tentar suicídio faz algum sentido.[2] [3]
Por fim, o terapeuta pede para o paciente se comprometer com sua mudança comportamental, um contrato verbal em troca da chance de viver: “A terapia não trabalha com pessoas que estão mortas” é uma forma de estabelecer esse contrato, disse Linehan.
No entanto, mesmo ascendendo academicamente, mudando da Universidade Católica da América para a Universidade de Washington em 1977, ela compreendia a partir de sua própria experiência que a aceitação e mudança dificilmente seriam o suficiente. Durante aqueles primeiros anos em Seattle ela se sentiu suicida algumas vezes enquanto se dirigia ao trabalho; ainda hoje ela sente acessos de pânico, como aconteceu recentemente enquanto dirigia por túneis. Ela própria recorreu a terapeutas, vezes sim vezes não ao longo dos anos, para apoio e orientação (embora não se lembre de ter tomado medicamentos após alta do instituto).
A Drª Linehan criou a sua própria abordagem para o tratamento – agora chamada de Terapia Comportamental Dialética, ou DBT (Dialectical Behavior Therapy, em inglês) -, que também inclui as habilidades de vida diária. Afinal um compromisso significa muito pouco se as pessoas não tiverem as ferramentas para executá-lo fora do consultório. Ela selecionou elementos de outras terapias comportamentais e adicionou seus próprios, como a ação oposta, onde o paciente atua de maneira oposta a como ele se sente quando uma emoção é inapropriada; e a prática de meditação mindfulness, uma técnica do Zen na qual as pessoas focam na sua respiração e observam suas emoções virem e irem sem agir de acordo com elas (o mindfulness é agora utilizado em muitos tipos de psicoterapia).
Em estudos conduzidos durante as décadas de 80 e 90 do século XX, pesquisadores da Universidade de Washington e outros lugares rastrearam o progresso de centenas de pacientes com personalidades borderline com elevado risco de suicídio que se consultavam semanalmente em sessões de terapia comportamental dialética. Em comparação com pacientes similares que fizeram outros tratamentos de outras autoridades na área, os que treinaram com a abordagem da Drª Linehan fizeram muito menos tentativas de suicídio; foram internados com menos frequência e obtiveram melhor adesão ao tratamento. Atualmente a DBT é amplamente utilizada por uma variedade de pacientes com alto nível de inflexibilidade, incluindo jovens infratores, pessoas com transtornos alimentares e dependência de substâncias psicoativas.
“Eu creio que a razão para a DBT ter causado tanto impacto é que ela dá direção a algo que não se conseguia tratar antes; as pessoas estavam simplesmente perdidas quando o assunto era personalidade borderline,” afirmou Lisa Onken, chefe do ramo de tratamento comportamental e integrativo do National Institute of Health. “Todavia eu acho que a razão de tal ressonância com a comunidade de terapeutas está altamente ligada ao carisma de Marsha Linehan, sua habilidade de se conectar tanto com clínicos quanto com o público científico”.
Talvez o mais notável seja o fato de que a Drª Linehan tenha alcançado um posto onde ela pode levantar-se e contar sua história, aconteça o que acontecer. “Eu sou uma pessoa muito feliz hoje em dia,” ela arguiu em uma entrevista em sua casa nos arredores do campus, onde mora com sua filha adotiva, Geraldine, e seu genro, Nate. “Eu ainda tenho meus altos e baixos, obviamente, mas acho que eles são como os de qualquer outra pessoa.”
Após o seu discurso de “saída do armário” na semana passada, ela visitou um quarto de reclusão solitária, que foi convertido em um pequeno escritório. “Bem, olha isso, eles mudaram as janelas,” ela expressou, segurando as mãos elevadas. “Tem muito mais luz.”
LIVES RESTORED (VIDAS RESTAURADAS, em tradução livre): Esta é a primeira publicação em uma série de perfis sobre pessoas que se mantêm funcionais apesar de conviverem com transtornos mentais severos e que decidiram por exprimir suas próprias guerras.
Uma versão deste artigo foi impressa na edição de 23 de Junho de 2011, Seção A, Página 1 do New York, edição com cabeçalho: “Expert on Mental Illness Reveals Her Own Fight.