Quando falamos sobre desregulação emocional global (DEG) é comum pensarmos principalmente em quem apresenta tal condição, afinal, é esta pessoa que “vive em sua própria pele” os desafios que tanto discutimos aqui na coluna de DBT. Porém, a visão dialética deste sofrimento tem outro polo que também necessita de cuidado e preparo para lidar com esta realidade: os familiares e pessoas próximas de indivíduos com DEG. Neste artigo será apresentado o Treino de Habilidades DBT como importante recurso no trabalho direto com o contexto familiar do cliente.
Conforme menciona Valerie Porr (2010), o que as famílias vivenciam ao lidar com a DEG não é muito pesquisado e geralmente não é considerado, a não ser quando se estudam os fatores etiológicos ligados à psicopatologia. O julgamento comumente presente é o da família como culpada pelo transtorno, o que pouco ou nada ajuda na mudança comportamental tanto da família quanto do cliente. Muitas pessoas com DEG não estão em tratamento, e quando estão, o tratamento normalmente não envolve seus familiares.
O sofrimento no outro lado da história
Basta uma escuta sem julgamentos para a identificação do sofrimento genuíno e intenso vivido por estas pessoas. São pais, mães, maridos, esposas, namoradas (os), irmãos, filhos que realmente estão fazendo o melhor que podem para ajudar seu ente querido, mas o melhor que podem muitas vezes não é o suficiente. A frustração e impotência que sentem ao não conseguir diminuir a dor daqueles que amam os tornam exaustos e, às vezes, emocionalmente desregulados (Porr, 2010). É neste ponto que a sobrecarga aparece, pois além de tentar ajudar o outro, precisam lidar com suas próprias emoções.
Imaginem um cenário em que Roberto (nome fictício), solteiro, mora com os pais, falta frequentemente ao trabalho por não consegue sair da cama, pois sente tristeza e desespero após o fim de seu namoro. Sente desesperança tão intensa que já tentou o suicídio algumas vezes, e segue pensando em morrer. Em sua última tentativa de suicídio, foi chamado de covarde por seus pais e irmãos, que lhe disseram que era egoísta e não pensava neles. A cada tentativa de suicídio de Roberto, sua ex-namorada é chamada por seus familiares para vir lhe acalmar, e assim ela o faz. Quando Roberto consegue ir ao trabalho, ouve dos familiares que “não está fazendo mais que sua obrigação, que tem que ser forte, ser homem!”.
Esse breve exemplo representa o quanto o manejo comportamental se faz necessário também no ambiente do paciente. Frequentemente as famílias recebem da pessoa com DEG comportamentos que não entendem e, com isso, tem reações pouco habilidosas. Essas reações invalidam ou reforçam os padrões comportamentais indesejados do cliente. Se estabelece um padrão de interações emocionais negativas, com pouca ou nenhuma demonstração de amor e compaixão.
Treinamento de Habilidades DBT para Familiares
É crescente a percepção de que intervir com a família, potencializa os objetivos do tratamento principal para DEG. Entendendo que familiares emocionalmente desregulados sofrem, e podem não conseguir ajudar como desejam, vem sendo desenvolvidos trabalhos direcionados ao desenvolvimento de habilidades em familiares e pessoas próximas dos clientes em tratamento por DBT.
Em 1995, Valerie Porr fundou a Associação TARA (Treatment and Research Advancements National Association for Personality Disorder), organização sem fins lucrativos que desenvolve trabalhos de apoio e treinamento a familiares de pessoas com DEG baseados em DBT (TARA’s Family DBT Skills). Referenciadas pelo trabalho de Linehan (2010) e pelas contribuições de Porr (2010), a psicóloga Carola Pechon juntamente com a Dra. Corrine Stoewsand desenvolveram um manual psicoeducativo e de treinamento de habilidades DBT para familiares e pessoas próximas de indivíduos com DEG, na Fundacion Foro (Argentina). Em 1999, Hoffman, Fruzzetti e Swenson publicaram um artigo que apresentou sua intervenção de treinamento de habilidades para familiares baseados em DBT.
Baseado no trabalho de Pechon e Stoewsand, o treino de habilidades DBT para familiares é proposto em grupos que reúnem-se em média por 12 encontros. Objetiva-se psicoeducar os participantes sobre a DEG, ensinar estratégias de validação, manejo comportamental, consciência plena, regulação emocional, efetividade interpessoal, tolerância ao mal-estar e como enfrentar comportamentos de risco. Familiares e pessoas próximas passam bastante tempo com o cliente, logo, podem ser promotores de modificação comportamental pelo contexto. Segundo Linehan afirmou na reunião de 2004 da Associação Americana de Terapia Comportamental “as famílias são um recurso inexplorado para reforçar habilidades DBT” (Porr, 2010).
A psicoeducação é essencial como base a todo o processo, pois as pessoas precisam ter acesso às informações mais recentes disponibilizadas na comunidade científica, incluindo conhecimentos sobre a condição clínica e sua neurobiologia, assim como as psicoterapias baseadas em evidências para o caso. Esta é uma das principais formas de combater o preconceito e estigma impregnado pelo senso comum quando se tratam de transtornos mentais, em especial aqueles ligados à DEG. Outra função desta psicoeducação adequada é justamente aproximar a família como complemento ao tratamento, ao invés de “causadora da doença”, diminuindo a culpabilização pelo sofrimento daqueles que mais querem ajudar e as autoinvalidações em decorrência destes julgamentos.
O treinamento das habilidades de consciência plena, efetividade interpessoal, regulação emocional e tolerância ao mal-estar se mostra indispensável aos familiares. O ambiente invalidante que não forneceu as habilidades necessárias ao nosso cliente, muitas vezes não o fez porque não há como se fornecer o que não se tem. Estando plenamente consciente, sendo capaz de identificar, nomear e regular suas próprias emoções, comunicando-se de forma respeitosa e assertiva, tolerando momentos de mal-estar extremos, e aprendendo a aceitar realidades que não podem ser modificadas, é muito mais provável que os familiares consigam ser mais validantes e efetivos com seu ente querido que tenha DEG.
Como terapeuta DBT, tive a oportunidade de conduzir o Treinamento de Habilidades para Familiares e esta foi, sem dúvidas, uma experiência motivadora. Objetivos como diminuição do estresse familiar, aumento de comunicação efetiva e reconstrução de esperança foram atingidos, transformando a raiva já instaurada como estilo de interação familiar, em compreensão e aceitação. Como menciona Porr (2010), a falta de compreensão e frustração em não saber como ajudar pode ser expressa como raiva, ao passo que, quando as famílias aprendem e sabem como fazer, essa raiva passa por metamorfose a compaixão.
É essencial a nós terapeutas a empatia também por estes familiares. Se algumas vezes nos sentimos desgastados e confusos diante de nossos clientes, imaginem como se sentem aqueles que convivem com eles há muito mais tempo e se veem esgotados de alternativas para lidar. Tal exercício em nada diminui nossa ética e respeito pelo paciente, afinal, são duas realidades coexistentes, ambos sofrem, ambos estão fazendo o melhor que podem, e ambos podem ainda fazer mais. Manter-se dialético passa por muitos contextos, e um deles é ser compassivo com estas polaridades. Paradoxalmente, ao fazer isso o terapeuta rompe com a polarização e disponibiliza a ajuda que realmente será efetiva ao cliente e sua família.
REFERÊNCIAS
Hoffman, P. D., Fruzzetti, A. E., & Swenson, C. R. (1999). Dialectical Behavior Therapy: Family Skills Training. Family Process, 38, 399-414.
Linehan, M. M. (2010). Terapia cognitivo-comportamental para o transtorno da personalidade borderline. Porto Alegre: Artmed.
Porr, V. (2010). Overcoming Borderline Personality Disorder: A Family Guide for Healing and Change. Oxford University Press, 1st Edition.