Constelações familiares: técnica de Psicologia?

Esta semana um programa de TV de grande audiência divulgou a utilização da chamada Constelação Familiar pela Justiça Brasileira. A técnica foi apresentada como uma forma de auxiliar as pessoas a resolverem problemas interpessoais no âmbito judicial. No programa de TV em questão apareceram alguns profissionais de Psicologia relatando a utilização da técnica em sua prática profissional. Daí, temos algumas questões a pensar.

A Psicologia supõe-se uma ciência, e não apenas uma forma de conhecimento do senso-comum. Conhecimentos do senso-comum são úteis e importantes, para várias coisas, só que o senso-comum não necessita do método científico. E não faz sentido abandonar o método científico; caso contrário, da próxima vez que bactérias atacarem o seu organismo, jogue fora seus antibióticos. Ou então, quebre agora o seu computador. Não faz sentido. O método científico veio para somar, não é mesmo?

Assim, a Psicologia, supondo-se ciência, deve responder aos escrutínios do método científico, assim como a toda verificação que outras ciências são submetidas. Deste modo, a Psicologia não é simplesmente um senso comum acerca de questões psicológicas e sociais. Ela é uma ciência rigorosa.

Laboratório de Psicologia em Harvard-USA,1893. Sim! Somos uma ciência empírica e rigorosa! Ao menos, deveríamos ser!

Por isso, nem toda a forma de “conhecimento sobre o psiquismo humano” pode ser considerada exercício da Psicologia enquanto ciência. Um exemplo são os “mapas astrais” ou “leituras de aura”. São conhecimentos psicológicos do senso-comum, que não estão verificados por evidências empíricas robustas. Por isso, nenhum profissional de Psicologia pode, no exercício da profissão, fazer mapas astrais, leituras de mãos ou de auras, realinhamento de chacras, terapia de vidas passadas, ou outros conhecimentos “mentais” que não estão verificados – de maneira contundente – pelo método científico. De qualquer modo, são conhecimentos que podem (e que deveriam) ser mais investigados, já que muitas pessoas recorrem a estas técnicas. A Ciência, por sua vez, não pode ser preconceituosa. Não é esse seu papel. Mas sabemos, também, que acontece.

Chacras, signos, glândulas e o Ser Humano. Não! Este não é um conhecimento da Ciência Psicológica. Mas talvez possa ser investigado.

Sabemos hoje, por exemplo, que há muita investigação científica de qualidade acerca de temas como “espiritualidade” e “meditação”, que outrora eram assuntos apenas do senso-comum. Claro que continua existindo muita pseudo-ciência sendo feita com estes temas, mas também existem pesquisas de excelente qualidade. Portanto, precisamos manter a mente aberta enquanto cientistas, da Psicologia e de qualquer área.

Mas com que tipo de técnica ou conhecimento o(a) Psicólogo(a) deveria se envolver?

Particularmente as pessoas podem se envolver com o que quiserem, mas todo profissional de Psicologia responde a um Código de Ética regido por um Conselho Federal. No artigo primeiro deste código está expresso que é dever do Psicólogo(a): “prestar serviços psicológicos de qualidade, em condições de trabalho dignas e apropriadas à natureza desses serviços, utilizando princípios, conhecimentos e técnicas reconhecidamente fundamentados na ciência psicológica, na ética e na legislação profissional;“.

Portanto, cabe ao profissional de Psicologia utilizar técnicas fundamentadas na ciência psicológica. No caso das chamadas Constelações Familiares, até o presente momento, não existe um corpo de pesquisas empíricas que sustentem sua eficácia, efetividade e segurança. Igualmente, suas bases teóricas incluem campos frágeis cientificamente, como a altamente especulativa teoria dos “campos mórficos”, de Rupert Sheldrake.

Campos morfogenéticos de Sheldrake. Infelizmente, um modelo conceitual à serviço mais da Nova-Era do que do avanço científico.

Isso não quer dizer que a Constelação Familiar não “funcione”. Parece que muitas pessoas relatam benefício ao participarem de sessões de Constelação Familiar. Muitas e muitas. Conheço algumas, aliás. Mas, vale notar que o fórum alemão – Kritische Psychologie – relata o caso de quatro pessoas que disseram desenvolver obsessões como resultado de participação em workshops de Constelações Familiares. Isso tudo quer dizer que a técnica deveria ser melhor investigada pela ciência. Somente após verificar suas hipóteses, passando pelo rigor do método científico, ou seja, acumulando um bom número de evidências empíricas acerca de sua efetividade e segurança, é que poderemos dizer que estará fundamentada cientificamente. Este é um caminho que outras técnicas já percorreram e ainda percorrem.

Assim, o Conselho Federal de Psicologia poderá se posicionar – em definitivo – em relação à utilização da Constelação Familiar por Psicólogos(as). Até o momento, tudo indica que a técnica não está fundamentada na ciência. Há estudos escassos, e nenhuma investigação rigorosa, como um ensaio clínico, por exemplo. Outras técnicas de psicoterapia em grupo, como o Psicodrama e a Terapia Cognitivo-Comportamental em Grupo, acumulam evidências suficientes para o reconhecimento do Conselho de Psicologia. Pode ser que aconteça com as Constelações Familiares, se conseguirmos pesquisar melhor.

Mas os principais estudos sobre Constelações Familiares datam das décadas de 80,90, situados em geral em pesquisas qualitativas de baixa qualidade. Os estudos mais recentes sobre o tema não estão associados a grandes universidades e apresentam, igualmente, pouca evidência de qualidade. Nenhum destes estudos apresenta o rigor de construção metodológica e nível de replicação suficiente para dizer que as Constelações Familiares estão fundamentas na ciência psicológica. Segue, por enquanto, como conhecimento do senso-comum baseado em diferentes teorias: da Psicanálise, passando pela Gestalt e a “Física Quântica”, até a teoria de comunidades e famílias dos Zulus.

Novamente, isso não quer dizer que estas técnicas não tenham alguma efetividade, mas sim que não receberam a investigação adequada através do método científico (ou foram investigadas e não receberam respaldo empírico acerca de sua eficácia e/ou segurança). São necessárias mais pesquisas.

Mas o(a) Psicólogo(a) pode utilizar a técnica?

Importante citar que no artigo segundo do Código de Ética da Psicologia está dito que é: “VEDADO AO(A) PSICÓLOGO(A) prestar serviços ou vincular o título de psicólogo a serviços de atendimento psicológico cujos procedimentos, técnicas e meios não estejam regulamentados ou reconhecidos pela profissão;”

Mas se um advogado, um juiz, um dentista, um engenheiro ou um vendedor de panelas desejar oferecer mapas astrais, jogo de cartas de tarô ou fazer constelações familiares, ele deve responder ao Código de Ética de sua profissão (caso exista), e não da Psicologia. A esta ciência e seus conselhos cabe responder às competências, deveres e direitos do(a) psicólogo(a), e verificar qualquer violação ao seu código de ética. Mas se um psicólogo(a) quiser atuar com Constelação Familiar fora de seu âmbito profissional, ou seja, sem utilizar sua inscrição no Conselho, e sem utilizar o título de psicoterapeuta, o que poderia o Conselho fazer? Não temos como impedir que pessoas ofereçam à população serviços sem o respaldo da ciência, tais como: leitura de mapas astrais, jogo de búzios, terapia de vidas-passadas, etc. Quem não pode oferecer esses serviços é o profissional de Psicologia. Alguém que se diz “terapeuta holístico”, por exemplo, não responde ao Conselho de Psicologia. Vemos aqui um problema. Mas o Conselho, se assim desejar, pode se posicionar publicamente à favor ou contra determinada técnica.

Uma sugestão seria que as pessoas envolvidas com estas técnicas, incluindo as Constelações Familiares, procurem universidades e grupos de pesquisa para desenvolverem pesquisas rigorosas, dentro da comunidade científica, verificando questões como a eficácia, efetividade, possíveis benefícios e riscos associados. Com o tempo, e o acúmulo de evidências, pode ser que a técnica seja reconhecida e autorizada pelo Conselho. Todos ganham com isso. Mas, para isso, tanto a ciência bem feita quanto os proponentes das Constelações precisam entrar em contato e trocar figurinhas.

Alguns problemas – a priori – se apresentam, por exemplo: como sustentar uma prática que depende de modelos teóricos problemáticos, como a já falada teoria dos “campos mórficos (morfogenéticos)”? Não há como investigar isso empiricamente, assim como não há como pesquisar empiricamente a existência de Deus. Ficamos num campo onde só resta teorização e levantamento de hipóteses inverificáveis. Não há como avançar em termos de construção de evidências. Karl Popper nos lembraria também da importância da falseabilidade. Como falsear as afirmações feitas pela sopa teórica agrupada sob o nome de Constelação Familiar? Assim começa a pesquisa.

Apesar do tom provocativo, este texto não se propõe como um ataque às Constelações Familiares, mas sim um convite saudável de reflexão e diálogo entre profissionais de Psicologia, Conselhos e proponentes da Constelações. E, quanto às Constelações Familiares, realmente desejo que possa encontrar o respaldo do método científico, seja na pesquisa quantitativa ou qualitativa, tornando-se uma ferramenta consolidada de promoção de qualidade de vida e bem-estar ao alcance de todos. Se isto vai acontecer, só a pesquisa dirá.

LEIA A PARTE 2 deste raciocínio aqui: https://comportese.com/2017/05/ainda-sobre-constelacoes-familiares-metodo-cientifico-e-pratica-da-psicologia

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Escrito por Tiago Tatton

piadista inveterado, torcedor do Flamengo e pai da Clara Luz. Nas horas vagas é psicólogo, especialista e mestre em Ciência da Religião (UFJF/MG), doutor em Psicologia (UFRGS/RS e King´s College Londres), pós-doutor em Psiquiatria e Ciências do Comportamento (UFRGS/RS). Diretor Geral da Iniciativa Mindfulness. Em 2016 completou o Mindfulness Advanced Teacher Intensive pela Universidade da California em San Diego (USA).

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