Ano-Novo e artigos novos chegando à Coluna de Terapia Comportamental Dialética (DBT) do Comporte-se. Em 2017, nossa equipe segue trabalhando para que, cada vez mais, estudantes, terapeutas e clientes tenham acesso ao mais efetivo tratamento disponível para a desregulação emocional. E com o objetivo de aprofundar o conhecimento sobre uma das principais ferramentas utilizadas em DBT, o artigo desta semana abordará o uso de metáforas e recursos criativos no contexto de trabalho clínico. Diversas são as possibilidades de tratar de assuntos por meio de analogias, seja por metáforas, anedotas, contos e outras alternativas que serão trazidas ao longo do texto.
Embora o uso de metáforas não seja exclusivo desta abordagem, visto que muitas outras modalidades psicoterápicas as utilizam, Linehan (2010) salienta a extrema importância que a ferramenta assume no trabalho em DBT. Trata-se de uma estratégia Dialética Específica, e a sua utilização se mostra um meio alternativo de ensinar e treinar o raciocínio dialético com os clientes (Koerner, 2011; Linehan, 2010; Van Dijk, 2013).
Qual a função da metáfora ou comunicação metafórica?
A comunicação por metáforas demonstra mais gentileza do que uma abordagem com orientações e sugestões diretas, além de ser mais efetiva, pois utiliza conceitos que o cliente entende transferindo-os para algo que ele ainda não entende. Isto evita que o paciente se sinta controlado na discussão de questões difíceis, por exemplo. Além disso, analogias e recursos criativos mantém o cliente interessado e presente no assunto em pauta, sendo menos provável que disperse sua atenção, e mais provável que lembre-se em situações futuras (Koerner, 2011; Linehan, 2010; Van Dijk, 2013).
Tratando-se de clientes em DBT, não podemos esquecer que, possivelmente, lidaremos com acentuada falta de flexibilidade psicológica e déficits importantes de habilidades. É realmente difícil para estes clientes aceitarem suas experiências e modificarem comportamentos problemáticos. Aceitação versus mudança é a principal tensão dialética a permear nossas intervenções e o uso de metáforas auxilia fortemente a enfrentar muitos destes desafios, uma vez que, fazendo sentido ao cliente, este se sentirá mais aberto e, consequentemente, mais efetivo em uma série de situações.
Trabalhar utilizando a linguagem do paciente tem diversas funções importantes, como facilitar o acesso e o reconhecimento das emoções, flexibilizar crenças e pensamentos, além de ajudar a modelar comportamentos habilidosos (Koerner, 2011; Van Dijk, 2013). Por serem parte de um processo criativo, as metáforas podem assumir múltiplos significados e formas de aplicação, sendo de grande utilidade quando trabalhamos comportamentos suicidas, comportamentos que interferem na terapia, evitação emocional, além de servirem para representar a própria terapia e vida deste cliente.
Koerner (2011) salienta de forma muito clara que as metáforas são usadas para a manutenção do movimento no processo terapêutico, isto é, para auxiliar quando o cliente ou o terapeuta encontram-se “presos” a um dos polos de alguma conflitiva dialética. A autora segue seu raciocínio analisando que, quando sentimos que estamos travados no tratamento podemos nos sentir frustrados e desesperados, o que nos deixa vulneráveis ao uso problemático de estratégias dialéticas. E eis uma situação que precisamos estar atentos e diante da qual a equipe de consultoria é de grande importância, indicando essa estagnação e ajudando a construir alternativas para liberar o fluxo do tratamento. A seguir, transcrevo a síntese desta estratégia dialética (tradução própria) pelas palavras da autora, parafraseando Linehan:
“(…) estratégias dialéticas podem ser facilmente confundidas com artifícios de manipulação e jogo. Portanto, o terapeuta precisa mostrar o máximo de cuidado, honestidade e compromisso com o que é realmente dito e feito, de modo que as estratégias dialéticas sejam utilizadas com humildade e não em uma posição superior de ‘Eu sei e estou persuadindo você para que veja do meu jeito.’”(KOERNER, 2011, p.154).
As estratégias dialéticas, incluindo o uso de metáforas, portanto, destinam-se a promover um tratamento que flua, especialmente diante de impasses, por meio de uma relação colaborativa entre terapeuta e cliente.
Outras possibilidades: analogias simples, pequenas histórias, músicas, literatura, cinema e memes
Conforme citado anteriormente, as metáforas podem ser usadas de diferentes formas, dependendo do que fizer mais sentido na situação e para o paciente. Vejamos a seguir alguns recursos e exemplos clássicos na DBT e outros adaptados e desenvolvidos a partir das ferramentas tradicionais.
Analogias e Pequenas histórias
As analogias e pequenas histórias são instrumentos frequentes e de grande versatilidade no campo terapêutico. A literatura de DBT dispõe de muitos exemplos e contextos de aplicação relevantes para aumentar o repertório do terapeuta.
Uma das metáforas mais utilizadas e trazida por Linehan (2010) em seu manual é a do terapeuta como guia. A ideia de que se pode mostrar o caminho, mas não trilhá-lo pelo cliente exemplifica o funcionamento da terapia, bem como o papel do terapeuta em não reforçar comportamentos de passividade ativa.
No trabalho de comportamentos que interferem na terapia (como não cooperação ou evitação emocional, por exemplo), Linehan (2010) utiliza metáforas que demonstram empatia com o sofrimento, ao mesmo tempo que salienta que o comportamento utilizado para manejar esse sofrimento é inefetivo. Uma delas refere o trabalho do terapeuta como o de alguém que tenta ajudar uma pessoa perdida em uma nevasca, que está com hipotermia e só quer deitar e dormir. A ajuda neste caso será fazer o necessário para manter a pessoa com hipotermia em movimento, se mexendo. Este é o papel do terapeuta em muitas situações.
O processo de terapia pode ser realmente dolorido. É compreensível, por exemplo, que as pessoas com desregulação emocional passem por muitos terapeutas durante toda sua vida, pois embora busquem ajuda para lidar com o sofrimento, ao lidar com ele inevitavelmente serão evocadas emoções dolorosas e, quando algo se torna muito aversivo, é natural termos o impulso de nos afastar. Linehan (2010) utiliza uma metáfora descritiva desta dor ao comparar que a terapia, para o cliente, é como fugir do inferno por escadas de alumínio incandescente, sem usar luvas ou sapatos. Isso dói muito, é claro. Só que o grande problema é que o inferno é ainda mais quente que a escada e isso faz com que de tempos em tempos o cliente levante e volte, retomando sua subida.
Outra analogia referente à evitação emocional é a de uma pessoa encolhida no canto de uma sala em chamas quando a única saída é atravessar o fogo e sair pela porta. Tal qual é necessário enrolar-se em lençóis molhados e correr para a porta da sala incendiada, o cliente deverá usar suas habilidades aprendidas para tolerar o mal-estar e sair da crise.
Também demonstrando a analogia do uso de habilidades, Van Dijk (2013) exemplifica como podemos incorporar a linguagem metafórica do cliente a fim de trabalhar a ideação suicida. A seguir, será transcrito o exemplo traduzido:
Cliente: Eu não estou certo de quanto tempo posso lidar com tudo que está acontecendo. Eu me sinto como se estivesse na beira de um penhasco e não tenho tanta certeza de que não quero pular.
Terapeuta: Pular não é a única opção. Você também pode pegar o instrumento de escalada, ir segurando e descendo lentamente por este penhasco. É para isso que são as habilidades de DBT.
(VAN DIJK, 2013, p. 60)
Uma das analogias que, pessoalmente, considero mais tocantes referencia o contexto de invalidação vivido pelo cliente: trata-se da metáfora da tulipa no jardim de rosas. É triste imaginar uma tulipa tentando ser uma rosa, simplesmente porque foi plantada ali. É comum vermos tulipas querendo ser rosa e jardins de rosas querendo transformar a solitária tulipa. Falamos aqui de não-aceitação, de ambientes invalidantes. Trabalhar aceitação e validação é se permitir ser tulipa seja em qual jardim estiver.
E falando em aceitação, não poderia deixar de citar o cobertor estendido no chão e aberto ao tempo. Uma das metáforas mais utilizadas em DBT para treinarmos mindfulness e tolerância ao estresse é essa: aprender a ser este cobertor estendido em um dia de outono, aceitando as folhas que caem, a chuva ou sol, seja o que vier.
Música, literatura e cinema
No contexto das artes, infinitas são as possibilidades de encontrar exemplos e linguagens que acessem o cliente. Aqui, é ainda mais importante que o “idioma” faça sentido à pessoa, ou seja, vale muito explorar o estilo e preferências de cada um. Em minha prática pessoal, o interesse em conhecer estas características do meu cliente (gostos musicais, filmes e livros preferidos, etc.) auxilia não só para este tipo de intervenção, como para a melhora significativa do vínculo.
Koerner (2011) menciona a utilização de livros, TV e filmes como meios para o desenvolvimento/treino de habilidades através de modelos do ambiente do cliente. Esta interação reforça o senso de cooperação, sendo a dupla terapêutica ativa durante todo o processo. O cliente pode trazer letras de músicas para a sessão, treinar as habilidades de observação e descrição em cenas de filmes, reconhecimento de julgamentos, etc. E todo o conteúdo trabalhado por estes meios será referência em sessões futuras, auxiliando em forma de metáfora ao que estiver sendo trabalhado.
A literatura traz desde o conto do Patinho Feio (utilizado de forma semelhante à metáfora da tulipa no jardim de rosas), tirinhas do Peanuts, até obras mais complexas. A analogia das Crônicas de Gelo e Fogo (na televisão: Game of Thrones) trazida pelo Diego Alano em seu artigo https://comportese.com/2016/09/alvos-secundarios-como-consequencia-dos-ambientes-invalidantes-luto-inibido-x-crises-implacaveis é fantástica para abordarmos as Crises Inexoráveis x Luto Inibido nos dilemas dialéticos vivenciados pelo cliente.
A mesma lógica se aplica ao cinema e nas artes visuais de uma forma geral. Filmes como Dumbo e Divertidamente, e tantos outros emprestam seus enredos para fomentar grandes discussões em tratamento e treinos de regulação emocional. Os clientes realmente se empenham nas metáforas e fixam as informações de forma muito mais natural a partir da representação. O sorriso da Mona Lisa (Leonardo da Vinci), por exemplo, se tornou quase um sinônimo à prática do “meio-sorriso”, técnica de aceitação radical treinada nas habilidades de tolerância ao mal-estar.
Pela música, além do clássico trabalho com mindfulness na identificação de diferentes sons e instrumentos, também trabalhamos o conteúdo das letras e suas referências ao que aborda a sessão. As músicas “Piloto Automático” e “Amianto” (ambas da banda Supercombo) são exemplos que foram trazidos por clientes e que se mostraram excelentes meios de trabalharmos a ideação suicida, identificação de valores e validação de sofrimento. A música “Dia Branco” (Geraldo Azevedo) é a minha preferida para falar sobre aceitação do momento presente. E assim como estas, tantas outras se mostram ótimas ferramentas que beneficiam fortemente o trabalho em terapia.
Uma de minhas analogias preferidas e que considero ser uma das melhores representações do pensamento dialético é o filme “Malévola”. A história da personagem em si já é um prato cheio para analisarmos a invalidação pelo trauma e tudo que acarreta seu estilo de enfrentamento. Mas a grande cereja do bolo realmente é o final – SPOILER ALERT – em que vilã e heroína se mostram possíveis em uma mesma pessoa. Não se trata de um raciocínio “ou isso, ou aquilo”, mas “isso e aquilo”. Malévola é a representação da síntese dialética em pessoa e sempre é comovente usá-la durantes as sessões.
Memes e cultura popular
Partindo do tradicionalmente usado, passamos às nem tão novas formas de utilização da linguagem metafórica, e enfim, chegamos ao que há de mais atual em termos de representação como recurso terapêutico: os memes. O “meme” é um conceito de imagens ou vídeos geralmente relacionados ao humor, e que se espalham pela internet tornando-se populares. A cultura popular da internet faz cada vez mais parte da vida das pessoas, independentemente de gênero, classe social ou idade. Em tempos de redes sociais, não precisamos necessariamente consumir determinados conteúdos, eles simplesmente aparecem em nossa “timeline” via compartilhamentos e logo tornam-se familiares.
Um dos memes que retrata muitos dos temas de sessões é o personagem “Chapolin Sincero”. Trata-se do popular super-herói mexicano expressando como se sente e se comporta em diversas situações do dia-a-dia. Pelo humor e sem ser invalidante, estes memes abrem as portas para muitos dilemas vividos pelos clientes, como surtos de ciúmes, comer impulsivo, evitação social, entre tantos outros. Em sessão, vale se utilizar dos recursos em suas diferentes formas, seja falando sobre, utilizando as imagens pela tela do celular/computador, ou até mesmo imprimindo cards com os memes para o cliente manusear.
Existem também as postagens com conteúdo psicoeducativo que se popularizam por tirinhas e ilustrações. Com frequência os clientes fazem referência a estes materiais, demonstrando interesse em debater em sessão sua identificação com tal publicação ou compartilhamento. A cultura popular é o ambiente comum a nós e nossos clientes. Portanto, ao fazermos o uso saudável das ferramentas que ela dispõe, nos aproximamos mais e somos muito mais efetivos.
Como foi possível apresentar aqui, recursos criativos são muito bem-vindos na DBT. Mais do que isso, são um elemento fundamental do tratamento. Devido aos grandes desafios a serem encarados por paciente e terapeuta, recursos que facilitem a compreensão dos obstáculos e das vias para transpô-los compõe uma parte importante do tratamento, razão pela qual integram um conjunto particular de intervenções, as Estratégias Dialéticas. Costuma-se dizer que o terapeuta comportamental dialético conduz as sessões como um pintor que produz sua obra com uma paleta de cores em mãos. É preciso flexibilidade para criar e criatividade para transmitir a essência de seu objetivo. Espero ter aumentado as possibilidades de cores, combinações e composições na paleta de cada leitor, que juntos com seus clientes possam pintar bonitas obras que tornem valioso viver.
Referências:
Koerner, K. (2011). Doing Dialectical Behavior Therapy: A Practical Guide (Guides to Individualized Evidence-Based Treatment). New York: The Guilford Press.
Linehan, M . M. (2010). Terapia cognitivo-comportamental para o transtorno da personalidade borderline. Porto Alegre: Artmed.
Van Dijk, Sheri. (2013). DBT Made Simple: A Step-by-Step Guide to Dialectical Behavior Therapy. Oakland: New Harbinger Publications.