Nature X Nurture: um debate que tende a chegar a seu fim

Prof. Dr. Paula Moiana da Costa 

Professora Adjunta de Genética da Universidade Positivo

Coordenadora do curso de Biomedicina

É comum encontrarmos pessoas defendendo origens diferentes para dadas características humanas, principalmente àquelas subjetivas e/ou que se referem ao comportamento. Chamamos de “Nature” aquilo que é inato, determinado biologicamente. Seu oposto, o “Nurture”, está relacionado com o ambiente, com o que é determinado cultural ou contingencialmente.

Nature

Podemos considerar que o debate Nature X Nurture tenha sido originado entre os séculos XVI e XVII, com Rene Descartes e John Locke, dentro do que chamamos de “Empirismo X Racionalismo”.

Descartes, defensor do Racionalismo, postulava existirem 3 tipos de idéias: as adventícias, factícias, e as inatas. As idéias adventícias seriam as coletadas diretamente do meio através de nosso sentido. As factícias seriam uma derivação das adventícias, coincidindo com a própria imaginação, proveniente de uma interação entre o que foi captado pelos sentidos e o escrutínio de nossa memória. Já as idéias inatas, as verdadeiramente polêmicas, tratam-se de essências verdadeiras, imutáveis e eternas. Seriam idéias produzidas pela nossa compreensão, mas sem relação com a experiência. [1]

Rene Descartes. 

John Locke recusava-se a aceitar a proposta cartesiana de idéias inatas. Então, dentro do empirismo, criou o termo “Tábula Rasa”, para explicar que o homem é uma página em branco, preenchida progressivamente pela experiência através da sensação e da reflexão. [2]

John Locke
John Locke

Tem-se, aqui, o início de uma polêmica que perdurará por vários séculos. De fato, ainda hoje, o debate Nature X Nurture suscita paixões e convicções radicais de ambas as partes na defesa de seus pontos de vista. Mesmo entre as publicações na área, ambos os lados da moeda são geralmente tratados como mutuamente excludentes. Entretanto, a ciência vem progressivamente mostrando que é possível, sim, existir um ponto de equilíbrio entre as duas partes.

Desde a descoberta do DNA, sua estrutura e correlação com a expressão de proteínas, a tábula rasa de Locke passou a ser questionada.  Com o progresso da teoria da evolução neo-darwinista e da biologia molecular, percebemos que o homem não pode ser um papel em branco.

O próprio Skinner [3] já considerava que o termo “ambiente” poderia ser pensado como um evento no universo que de alguma forma afetasse o indivíduo, mas levando-se em conta que “parte do universo está encerrada dentro da própria pele de cada um “. Ou seja, existe algo de único na interação de cada pessoa com o ambiente que o rodeia.

Apesar de características subjetivas como as ideias inatas de Descartes não entrarem neste pacote, o fato é que quando nascemos, nascemos algo. E este algo é que vai interagir com o que quer que seja.

Tomando-se isto como denominador comum, como pode ocorrer esta interação? Se não é possível tomarmos como verdadeira a ideia de reducionismo cultural, será que o reducionismo biológico pode ser a resposta?

1 – Norma de reação   

A norma de reação é um conceito dentro da genética que significa o conjunto de diferentes formas de expressão de determinado gene ou conjunto de genes quando expostos ao ambiente. Este conceito vem da seguinte fórmula qualitativa:

F = G + A

Ou seja, o fenótipo (conjunto de características de um indivíduo) depende da interação entre o seu genótipo (conjunto de genes do indivíduo) com o ambiente.

O conceito de norma de reação é conhecido e descrito há décadas e é muito utilizado por quem trabalha com melhoramento genético de plantas e animais. De uma forma simples, podemos exemplificar este processo com hortênsias.

Se você gosta de plantas, já deve ter plantado hortênsias. Bonitinhas, resistentes, simples e fáceis de cuidar. Pegue uma muda da sua hortênsia e peça para um amigo plantar no quintal dele em outra cidade. Muito provavelmente, a cor e o tamanho das flores serão diferentes da sua!

Porque isso acontece? A expressão dos genes da hortênsia relacionados à cor e ao tamanho das flores depende do pH do solo. Assim, solos diferentes geralmente geram hortênsias diferentes, mesmo que sejam geneticamente irmãs gêmeas.

Da mesma forma que a cor e o tamanho, quase todos os outros fenótipos (ou características) da planta são gerados desta forma, assim como os nossos e de qualquer ser vivo.

Isso significa que, ao menos nas características chamadas quantitativas, a interação do ambiente com o que temos de inato é que vai gerar nosso fenótipo.

2 – O Projeto Genoma Humano

O Projeto Genoma Humano (PGH) trouxe mais dúvidas do que respostas. Mas precisamos de dúvidas para balançar nossos dogmas e nos levar a repensar paradigmas – e neste sentido, o PGH conseguiu virar de ponta cabeça a ciência atual.

genoma

Isso aconteceu por vários motivos, mas um deles foi o essencial para o início da polêmica: o número de genes encontrados. Estima-se que o ser humano tenha cerca de 25 mil genes, e em torno de 100 mil proteínas. [4] E este número de genes vem baixando, assim como o número de proteínas aumentando, à medida que os estudos no campo avançam.

Até então, o conceito clássico de gene envolvia a máxima de 1 gene = 1 proteína. Ou seja, cada gene seria responsável pela expressão de uma única proteína. Esta disparidade nos levou a perceber que a história é muito mais complexa. Junto a isso, a comparação do número de genes em relação ao tamanho do genoma entre as espécies nos fez perceber que não há uma correlação direta entre este número e a complexidade da espécie (o chamado “Paradoxo do Valor C”).

Segundo o NCBI (National Center for Biotechnology Information), que hospeda todos os dados do PGH e outros genomas, a espécie humana tem 32.595.200 pares de bases, enquanto que o Agrião tem 206.668.000, com 32.549 genes.  Podemos concluir com isso que o agrião é mais complexo que o ser humano, ou nosso conceito de complexidade está errado, ou então que não compreendemos estes resultados. Apostando na última opção, chegamos à possibilidade de que estávamos subestimando o processo de regulação da expressão gênica.

3 – Regulação da Expressão Gênica

A maior possibilidade de explicação da complexidade da espécie humana está na própria regulação da expressão de seus genes.

Imagine que a sala em que você está agora tenha um sistema de 4 lâmpadas. Se houver um único interruptor, você só pode ter duas formas de iluminação: uma sala clara ou escura. Se houverem 2 interruptores, além do tudo ou nada você ainda pode ter uma sala metade clara e metade escura, alternadamente.

Mas imagine que você tem 4 interruptores, que além de acender e apagar ainda têm a função de dimers! Você poderia ter cada uma das lâmpadas acesas independentemente, de duas em duas, de três em três, todas ao mesmo tempo, e a intensidade da luz ainda poderia ter diversos nuances em cada uma das combinações possíveis.

Perceba que o sistema de 4 lâmpadas em si não significa a complexidade da iluminação. O que garante esta complexidade é a forma de regular as 4 lâmpadas.

Da mesma forma, ocorre com os genes humanos. Se metade do nosso genoma é composto por genes, a outra metade quase inteira é composta por elementos regulatórios.

Estes elementos regulatórios são responsáveis pela interação entre genes e ambiente. É claro que parte deste ambiente trata-se do próprio metabolismo celular, mas parte desta interação é direta ou indiretamente com fatores externos. Como um exemplo simples, o ladrão que tentou me assaltar não foi pessoalmente ativar e silenciar genes nas minhas células, mas o estímulo que ele deflagrou na forma de neurotransmissores o fizeram.

Além da regulação gênica clássica, temos descrito algo que nos aproxima ainda mais do ambiente: a epigenética.

4 – Epigenética

De uma forma simples, podemos considerar que a epigenética seja modificações químicas no DNA, que podem ou não serem persistentes, ocasionadas pela interação com o ambiente. Veja que a estrutura em si dos genes não é modificada. A modificação epigenética mais comum é a metilação, ou seja, a inserção de um grupo metil (CH3) ao DNA ou a proteínas intrinsecamente ligadas ao DNA (histonas). A metilação está associada com a inativação deste gene.

Em alguns mecanismos epigenéticos, esta marcação desaparece durante o desenvolvimento embrionário. No caso da metilação, existem várias estratégias moleculares que fazem com que ela permaneça durante este período, o que significa que se trata de algo herdável.

A maior parte das pesquisas neste campo foram realizadas com roedores, mas ainda assim elas nos dão uma boa ideia do que podemos esperar. Um excelente exemplo é o trabalho que relaciona o cuidado da mamãe rata com a metilação de genes relacionados ao estresse nos filhos [5]. Filhotes de mães que os lambiam menos tinham um comportamento de menor resistência ao estresse na vida adulta – e metilação nos genes relacionados à expressão de receptores de glicocorticoides no hipocampo, aumentando a sensibilidade ao cortisol, o chamado “hormônio do estresse”. Isso ocorreu mesmo nos casos de filhotes cuidados por “mães adotivas”.

A história é ainda mais interessante quando estudamos as gerações posteriores, provenientes dessas “mães desnaturadas”. A metilação em seus filhotes passaram para seus netos, e no caso das fêmeas, geraram novas mães más lambedoras.

Talvez pareça, à primeira vista, que a idéia de epigenética traz para a expressão gênica toda a responsabilidade pelos comportamentos adquiridos e herdados. Mas se pensarmos bem, é justamente o contrário: as ciências do comportamento sabem há muito que estes podem ser adquiridos e herdados a partir do ambiente – a epigenética mostra que eles estavam completamente corretos, demonstrando de forma concreta alterações a nível molecular decorrentes de experiências com algum grau de subjetividade.

Assim, tudo aponta no sentido de que qualquer reducionismo não passa de fato de uma redução superficial da realidade. A perspectiva é que, em pouco tempo, não haverá mais distinções entre Nature e Nurture. A ciência enfim está chegando no ponto em que tudo se interliga, e se constitui variáveis complexas e, principalmente, interdependentes, que culminam no ser humano.

Referências Bibliográficas

(1)    DESCARTES, René. Meditações metafísicas. Tradução de Homero Santiago. São Paulo, Editora Martins Fontes, 2000.

(2)    LOCKE, John.  Ensaio acerca do Entendimento Humano (Série – Os Pensadores). Editora Nova Cultural, São Paulo, 1999.

(3)    Skinner, B. F. Ciência e comportamento humano. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1953/1967.

(4)    Borges-Osório, Maria R; Robinson, Wanyce M. Genética Humana, 3ed, Artmed Editora, 2013.

(5)    FRANCIS, Richard C. Epigenética: Como a ciência está revolucionando o que sabemos sobre hereditariedade. Ed. Zahar, 2015.

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Escrito por Portal Comporte-se

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