Por que eu me sinto tão perdida(o) nesse relacionamento?: O papel da regulação emocional e aceitação radical na DBT

Para a Terapia Comportamental Dialética (DBT), uma das principais maneiras de conceber a desregulação emocional é por meio da teoria biossocial. Segundo essa teoria, a desregulação emocional generalizada pode ser compreendida com base no efeito a longo prazo de transações entre vulnerabilidade biológica (organismo mais sensível biologicamente) e ambientes invalidantes (que não reconhecem, ignoram ou punem essas expressões emocionais).

Algumas pessoas são biologicamente predispostas a serem mais vulneráveis às suas emoções. Elas são altamente sensíveis a pistas emocionais e suas reações costumam ser consideradas extremas e muitas vezes duradouras. Um evento que pode parecer insignificante para outra pessoa pode levar a reações de grande intensidade para quem apresenta a vulnerabilidade. Além disso, essa alta reatividade, somada ao lento retorno ao estado emotivo inicial, pode dificultar o processamento emocional desses indivíduos, ocasionando respostas escalonadas.

Dito isso, gostaria de desenrolar esse raciocínio a partir da seguinte história:

Milena é uma mulher de 35 anos, com uma história de vida marcada por relacionamentos intensos e tóxicos (com a presença de abusos físicos e psicológicos).

Quando adolescente, Milena era descrita por pessoas próximas a ela como sendo uma menina muito educada, estudiosa e dedicada em tudo que se propunha a fazer. Seu bom desempenho sempre foi alvo de muitos elogios.

Milena também sempre foi muito sensível. Ficava muito nervosa diante de situações de cobrança ou responsabilidade. Seu coração acelerava, seu estômago logo embrulhava e ela sentia muito enjoo, sudorese e tremor pelo corpo, chegando a passar vários dias com esses sintomas. Para ela, era muito assustador lidar com a ideia de falhar em algo, afinal a sua compreensão de amor perpassava pela crença de que ela precisava ser sempre aquela menina educada e dedicada para ter o amor e a validação dos outros.

Milena cresceu em um ambiente familiar muito crítico e marcado por uma supervalorização do alto desempenho. Falhas não eram bem recebidas. O mesmo ocorria em seu ambiente escolar (grande valorização de notas altas e alto nível de competição entre alunos).

E, assim, Milena foi construindo sua percepção a respeito de seu lugar no mundo.

Aos 20 anos de idade, após um desentendimento com sua melhor amiga, Milena tentou suicídio pela primeira vez.  

Essa tentativa de suicídio fora apenas o estopim de anos de desespero emocional e crises de ansiedade, que Milena não havia ainda aprendido a compreender e nem tampouco se autorregular. O que ela havia aprendido até então era que suas reações emocionais eram um problema que precisava ser escondido. Assim, após uma briga na qual  proferiu severas agressões verbais dirigidas à sua melhor amiga, a intensidade da expressão emocional da culpa sentida após o evento foi tão intensa que, buscando acabar com aquele sofrimento emocional e acreditando que todos se beneficiariam com sua morte (pois assim ela não machucaria mais ninguém), Milena tentou suicídio.

Para os familiares e pessoas próximas a ela, as dúvidas, confusão mental e os questionamentos pairavam no ar: “ela tem tudo na vida, qual o motivo de uma atitude como essa?”, “ela queria chamar atenção e se vingar da amiga”, “é tão imatura que não sabe lidar com as frustrações advindas dos relacionamentos interpessoais”, etc.

O que tais comentários invalidantes deixam de levar em consideração é o fato de que são falas como essas que reforçam em pessoas como Milena a compreensão de que existe algo muito errado com suas experiências emocionais. Parte das habilidades que faltam para essas pessoas são aquelas necessárias para regular efetivamente suas emoções, bem como tolerar o mal-estar causado por algumas delas. Ou seja, invalidações, punições e desqualificações são partes do problema e não da solução.  

A desregulação emocional é uma incapacidade de modular ou regular suas experiências, ações e demais respostas emocionais, a despeito de todos os esforços de quem vivencia uma severa vulnerabilidade biológica. Para essas pessoas, pode ser extremamente difícil sentir emoções em níveis elevados de intensidade e, muitas vezes, para evitar punições ou invalidações (nem sempre oriundas apenas de terceiros, mas também de si mesmas), elas tentam exercer um controle emocional que acaba gerando uma exacerbação ou perpetuação dos problemas e do mal-estar. Comportamentos como o uso abusivo de substâncias, autolesões, compulsão por sexo/pornografia, auto ou hétero-agressividade podem representar tentativas de regulação de emoções intensas como a tristeza, medo, raiva, vergonha.

Se você convive com alguém que apresenta um quadro de desregulação emocional generalizada, um possível passo inicial seria validar e acolher a experiência emocional dessa pessoa (lembrando que toda experiência emocional sempre será válida, embora a forma como agimos diante de uma emoção aguda pode não ser válida) e ajudá-la a identificar e entender o que ocasionou aquela emoção e qual a eficácia de agir com base neste impulso de ação (se a emoção em questão fosse a raiva, seria efetivo agredir alguém por conta disso? O que seria mais efetivo? O que essa raiva pode estar sinalizando e que no calor da crise emocional não se está conseguindo acessar?).

Em resumo, considerando a raiva como exemplo, a experiência vivenciada quando a sentimos em grande intensidade sempre será válida e digna de respeito e acolhimento. Todavia, agir de maneira agressiva ou violenta após sentir essa emoção é um comportamento a ser modificado através de habilidades de regulação emocional ou tolerância ao mal-estar. Tudo que precisamos fazer, em uma situação de crise, é ajudar o nosso ente querido a passar pela crise (sobreviver a ela), sem piorar ainda mais a situação.  

A habilidade de aceitação radical também representa uma parte das habilidades necessárias para um convívio familiar menos invalidante. Radical deriva da palavra latina radix e significa “ir a raiz ou origem” e diz respeito a aceitar nossas experiências internas, sensoriais e pensamentos julgadores como parte do fluxo da vida. A vida é o que é, bem como as nossas experiências. Aceitação nada mais é do que desejar algo profundamente e ter flexibilidade suficiente para sobreviver sem a existência disso. É desejar que alguém que amamos mude ou se assemelhe a como gostaríamos que fosse e encontrar paz no fato de que nem sempre isso será possível. É abrir mão do controle.

Ao final de tudo, em uma abordagem baseada nos princípios da DBT, a síntese dialética que buscaremos para familiares de pessoas com desregulação emocional generalizada é a construção de uma possível resposta para as perguntas: “o que eu considero importante e significativo neste relacionamento? Como eu posso caminhar nessa direção aceitando essa pessoa como ela é/está e não como eu gostaria que fosse?”.             

É tão difícil ser uma pessoa emocionalmente vulnerável nesse mundo em que vivemos e, ao mesmo tempo, pode ser muito difícil ser mãe/pai/irmão/cônjuge de uma pessoa tão vulnerável às emoções.

Referências

Brach, T. (2020). Radical compassion: learning to love yourself and your world with the practice of RAIN. Penguin Life.

Brach, T. (2005). Radical self-acceptance: A Buddhist guide to freeing yourself from Shame. Sounds True.

Linehan, M. M. (2018). Treinamento de habilidades em DBT: manual de terapia comportamental dialética para o terapeuta. Artmed Editora.

Skinner, B. F. (2003). Ciência e comportamento humano (Vol. 10). São Paulo: Martins Fontes.

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Escrito por Clara Carvalho

Psicóloga Clínica.
Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Saúde Mental (uniruy). Certificação em Terapia Comportamental Dialética (DBT) pelo The Linehan Institute/Behavioral Tech e em Terapia Comportamental Dialética Radicalmente Aberta (Radically Open) e Treinamento de Habilidades da DBT (Vincular).

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