Estresse e Autocompaixão em pais de crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA): um diálogo com as pesquisas

Durante o processo evolutivo da nossa espécie, nossos ancestrais passaram por diversos níveis de ameaça. Decorrente dessas experiências eles desenvolveram estratégias para perceber, bem como, para lidar com tais situações, a fim de que pudessem sobreviver, assim como, garantir a sobrevivência de sua/s prole/s (Faro & Pereira, 2013, Lazarus & Folkman, 1984).

A partir da percepção de tais ameaças era gerado no organismo de nossos ancestrais sinais e mudanças fisiológicas que poderiam ou não ser abruptas e repentinas para eles, que sinalizavam e os impulsionavam a ação, com a premissa de garantir sua proteção e sobrevivência. Decorrente dessas mudanças fisiológicas, nossos ancestrais aprenderam alguns repertórios que possibilitaram a sua sobrevivência, bem como, o prolongamento da espécie, esses incluem: comportamentos de luta, fuga e freezing (congelar/paralisar) (Amaral, 2013; Faro et al. 2019, Faro & Pereira, 2013, Lazarus & Folkman, 1984).

É provável que você esteja se questionando do porquê iniciei o texto com essa discussão. O que seriam essas mudanças fisiológicas desencadeadas pela percepção de uma ameaça? A resposta é o estresse. O estresse tem sido definido como a resposta do organismo, seja de maneira pública (ex.: ações) ou privada (ex.: reações fisiológicas, pensamentos, emoções, etc.) a estímulos que sinalizem ameaça (concreta ou percebida) a esse. Ainda, tais respostas interferem na homeostase do organismo, podendo gerar sensações de desconforto e exaustão, quando situações estressantes e de desgaste emocional ocorrem com muita frequência (Amaral, 2013; Faro et al. 2019, Faro & Pereira, 2013, Lazarus & Folkman, 1984).

O estresse pode ser experienciado em situações de conflito, de ameaça à integridade física e ou emocional da pessoa e/ou daqueles que lhe são importantes e, em especial, durante o relacionamento dos pais/cuidadores de referência com sua/s criança/s (Amaral, 2013; Faro et al. 2019).

Já existem vários estudos que apontam a relação de níveis de estresse com o processo de parentalidade em crianças sem transtorno de neurodesenvolvimento (típicas). De igual maneira, existem, também, muitas pesquisas que discutem e estudam os níveis de estresse em pais/cuidadores de referência de crianças com transtornos do neurodesenvolvimento (atípicas), em especial, em pais/cuidadores de referência de crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Não obstante, é importante pontuar que estudos já apontam que o nível de estresse e desgaste emocional vivenciado por pais/cuidadores de referência de crianças com TEA é superior se comparado a pais/cuidadores de referência de crianças típicas.

A título de exemplo, um estudo realizado por Amaral (2013) com uma amostra de 30 mães de crianças com TEA encontrou-se que 70% das participantes apresentavam níveis consideráveis de estresse e que 80% exibiam nível de sobrecarga emocional. Já em uma pesquisa realizada por Faro, et al. (2019) com uma amostra de 21 mães de crianças com TEA identificou-se que 76% (n=16) apresentavam estresse em nível de resistência e 24% (n=5) exaustão. Ainda, 76% (n=16) dessa amostra apresentava, também, predomínio em sintomas psicológicos.

Comumente o estresse dos pais de crianças com TEA é associado com duas únicas variáveis: os comportamentos problemas apresentados pela criança e o nível de funcionamento. Contudo, as pesquisas desenvolvidas por Amaral (2013) e Faro et al. (2019) encontraram que essa variável contribui para o nível de estresse dos pais, todavia não é a única. Ainda, os estudiosos identificaram que os comportamentos problemas das crianças era a variável que menos afetava o nível de estressa das mães que participaram da pesquisa. Outras variáveis identificadas incluem: marginalização e exclusão da criança e/ou família de ambientes comunitários; diminuição da rede de suporte social; uma rede de suporte social precária e/ou crítica e invalidante; pormenorização do diagnóstico e/ou nível de funcionamento da criança; dentre outros fatores (Amaral, 2013; Davis & Carter, 2008, Faro et al. 2019).

Pesquisas tem apontado que quanto maior o nível de estressa parental e tensão emocional, menores são os índices de autocompaixão e qualidade de vida (Bohadana, Morrissey, & Paynter, 2019. Neff & Faso, 2014, Neff, 2017). Infelizmente esse marcador não é diferente em pais e mães de crianças com TEA. Dado os níveis acentuados de estresse e desgaste emocional vivenciados por pais de crianças autistas, é frequente observar níveis elevados e repertórios comportamentais complexos de autocrítica e autojulgamento. Consequentemente, são constatados níveis restritos de autocompaixão nesses pais vida (Bohadana, Morrissey, & Paynter, 2019. Neff & Faso, 2014, Neff, 2017).

Autocompaixão envolve uma série de comportamentos públicos e privados que expressem gentileza, cuidado e bondade dirigida a si mesmo. Tal definição pode ser estranha, inicialmente, pois desde muito pequenos somos ensinados/as a ter compaixão para com as demais pessoas e o sofrimento dessas. No entanto, alguns questionamentos são pertinentes aqui e que estão relacionadas com essa temática: “Eu não posso ter compaixão para comigo mesmo/a?”; “Será que eu não sou digno/a de me amar e/ou ter bondade para comigo mesmo/a?”, caso a resposta para essa segunda pergunta seja “Não sou digno/a?” podemos perguntar: “Quem e quando isso foi definido?”, se a resposta for “Sim, eu mereço e devo ter autocompaixão?” surge o questionamento: “O que impede que isso ocorra na integra, isto é, sai do mundo das ideias e seja implementado no mundo real?”.

Kristin Neff (2017) descreve que a habilidade/competência de Autocompaixão é composta por 3 processos: 1) Autobondade/Autogentileza, sendo descrito como um processo de direcionar gentileza e bondade a si mesmo, não só direcionar, mas agir com base nesses princípios; 2) Humanidade Compartilhada, todo ser humano possui histórico e momentos de sofrimento, isso não torna a pessoa pior, fraca e/ou mais frágil, pelo contrário sinaliza que isso é um componente que abarca todo indivíduo; e 3) Mindfulness (Atenção Plena), conectar-se com o momento presente e ser flexível com as mudanças que ocorrem nesse espaço tempo.

Somado a isso, Neef (2003 apud Neff & Faso, 2014) descreve que 3 processos comportamentais se opõem a habilidade de autocompaixão, esses podem ser exemplificados por: 1) Autojulgamento em detrimento de uma visão mais gentil e bondosa de si mesmo/a; 2) Isolar-se decorrente da percepção de que é a única pessoa que está sofrendo em oposição a noção de humanidade compartilhada; e 3) Superidentificação, isto é, identificar-se e fundir-se com sofrimentos decorrentes de memórias, bem como, planejamentos no lugar de praticar e vivenciar a Mindfulness (Atenção Plena).

Posto isso, trabalhar o repertório de autocompaixão é essencial para melhorar a prática parental, bem como, a relação que os pais têm consigo mesmos. Junto a isso, o desenvolvimento de repertórios comportamentais menos críticos e mais autocompassivos possibilitam a diminuição dos níveis de estresse e sofrimento emocional que são comumente vivenciados por esses pais.

Além disso, a autocompaixão possibilita o desenvolvimento de uma série de habilidades, assim como, melhorias em várias áreas na vida dos pais (Bohadana, Morrissey, & Paynter, 2019. Neff & Faso, 2014, Neff, 2017), essas incluem:

  • Autocompaixão ajuda a lidar melhor com as frustrações, dificuldades e desafios da paternidade (Tolerância ao mal-estar);
  • Aceitar que todo mundo erra;
  • Transmitir, de maneira verbal e não verbal para sua/s criança/s e parceiro/a, que não tem problemas cometer erros;
  • Autocompaixão auxilia que os pais foquem no que de fato importa no momento de problemas comportamentais com sua criança: focar no comportamento real e na análise e tomada de decisão e não no caráter de modo geral da criança e/ou da sua efetividade enquanto pai;
  • Índices maiores e/ou maior qualidade de/em:
    • Resiliência emocional;
    • Satisfação com a vida;
    • Gentileza/Autobondade, conexão e presença;
    • Melhor esperança sobre o futuro;
    • Perspectiva mais otimista;
    • Diminuição da ruminação e fusão com emoções e pensamentos negativos;
    • Conexão/Ações voltadas para objetivos e valores;
    • Relacionamentos mais funcionais e significativos com a criança, com o/a cônjuge/parceiro(a).

Por fim, nota-se que as pesquisas já tem demostrado o quão relevante é o ensino e desenvolvimento de comportamentos autocompassivos em pais de crianças com autismo, assim como, as possíveis contribuições que tal competência tem para os próprios pais e no relacionamento desses com sua/s criança/s e com as demais pessoas que compõem sua rede de suporte social. Contudo, nota-se que as pesquisas realizadas, até então, ocorreram em contexto norte-amaericano, carecendo, assim, de estudos realizados com e na comunidade de pais e mães de crianças autistas brasileiras.

Sendo assim, finalizo esse texto com essas informações, no que se refere a relevância e contribuições da autocompaixão para a promoção de qualidade de vida em pais de crianças com TEA, e com um convite para que possamos desenvolver pesquisas no nosso cenário, com a premissa de avaliar e identificar se esses dados e informações, também, se aplicam ao nosso contexto, bem como, se outras variáveis podem ser identificadas e/ou correlacionadas com Estresse e Autocompaixão em pais de crianças autistas.

Referências

Amaral, K. C. (2013). Estresse e percepção de suporte familiar em mães de crianças com autismo. [Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Pará]. https://ppgtpc.propesp.ufpa.br/ARQUIVOS/dissertacoes/K%C3%A1tia%20Carvalho%202013.pdf

Bohadana, G., Morrissey, S., & Paynter, J. (2019). Self-compassion: A novel predictor of stress and quality of life in parents of children with autism spectrum disorder. Journal of autism and developmental disorders. http://doi:10.1007/s10803-019-04121-x

Davis, N. O., & Carter, A. S. (2008). Parenting stress in mothers and fathers of toddlers with autism spectrum disorders: associations with child characteristics. Journal of autism and developmental disorders, 38(7), 1278–1291. http://doi:10.1007/s10803-007-0512-z

Faro, A. & Pereira, M. E. (2013). Estresse: Revisão narrativa da evolução conceitual, perspectivas teóricas e metodológicas. Psicologia, Saúde & Doenças, 14(1), 78-100. https://doi.org/10.15309/13psd140106

Faro, K. C. A., Santos, R. B., Bosa, C. A., et al. (2019). Autismo e mães com e sem estresse: análise da sobrecarga materna e do suporte familiar. Psico, 50(2), e30080. https://doi.org/10.15448/1980-8623.2019.2.30080

Lazarus, R. S., & Folkman, S. (1984). Stress, appraisal, and coping. New York: Springer;

Neff, K. D., & Faso, D. J. (2014). Self-Compassion and Well-Being in Parents of Children with Autism. Mindfulness 6, p. 938–947. https://doi.org/10.1007/s12671-014-0359-2

Neff, K. (2017). Autocompaixão: pare de se torturar e deixe a insegurança para trás. Lucida Letra.

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Escrito por Lucas Polezi do Couto

- Psicólogo CRP 16/6198 e CRP 08/IS-715;
- Supervisor de intervenções baseadas em ABA para pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e quadros associados;
- Mestrando em Psicologia (PPGP UFES);
- Especialista em Psicoterapias Comportamentais de Terceira Geração (IPOG);
- Teacher in Training do Programa Mindfulness e Autocompaixão Mindful Self-Compassion (MSC) (Center for Mindful Self-Compassion & Conectta Mindfulness e Compaixão);
- Pós-graduando em Intervenção ABA para Autismo de DI (CBI of Miami);
- Cursando o preparatório para o QASP-S (The Behavior Web).

Trabalho com Psicoterapia (ACT e DBT), Avaliação Psicológica, Treinamento e Orientação Parental. Apaixonado por ACT, Autocompaixão, ABA, TFC e DBT.

Contato: psicologo.lucaspolezi@gmail.com.

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