Reflexões sobre Autismo e Negritude

O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é um transtorno do desenvolvimento “que envolve atrasos e comprometimentos nas áreas de interação social e linguagem…” [1], está relacionado a aspectos emocionais, motores, cognitivos, sensoriais. Segundo o Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais [2] os critérios diagnósticos do TEA são “Déficits persistentes na comunicação social e na interação social”, além de “Padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades”, sendo que os padrões comportamentais não podem ser melhor explicados por deficiência intelectual. A depender do quadro, podem ser apresentadas ecolalias, estereotipia motora, restrição de interesses, hiper ou hipossensibilidade, baixa tolerância à frustração, comprometimento intelectual ou superdotação, pouca habilidade social, entre outras características.

Pessoas autistas muitas vezes requerem um acompanhamento multiprofissional, a depender do seu desenvolvimento e grau de severidade do quadro. A equipe pode incluir: Psicóloga, Psiquiatra, Terapeuta Ocupacional, Educador Físico, Fisioterapeuta, Nutricionista.

Desta maneira, podemos falar no primeiro aspecto da nossa reflexão, o acesso. Entendendo que no nosso país raça e classe se intercruzam devido ao nosso histórico escravagista, de racismo e encarceramento, que se estendeu pós abolição [3], sendo as pessoas negras as que se encontram em maior vulnerabilidade social e econômica [4], são cuidadores de crianças negras àqueles que terão menor condição de possibilitar uma avaliação neuropsicológica, intervenções precoces ou o acompanhamento de diferentes áreas do conhecimento, tendo em vista o grande custo de um tratamento com tantos profissionais.

Se atendo à nossa abordagem, que vem demonstrando grande eficácia no atendimento desse público [1], o valor mensal do acompanhamento em Análise do Comportamento Aplicada (ABA) pode chegar à R$ 13.200,00 [5], valor muito alto comparado à realidade de boa parte da população negra brasileira. Desta forma, serão poucas as crianças negras que terão a possibilidade de terem o tratamento psicológico que possui melhores resultados atualmente.

Nosso segundo ponto para consideração é a idade de início do atendimento. Em uma pesquisa feita nos Estados Unidos, foi constatado que em média, crianças negras demoram cerca de um ano e meio a mais para receberem o diagnóstico, em comparação com crianças brancas [6], o que atrasa o acompanhamento dessas crianças, sendo que o ideal é que este seja realizado o mais cedo possível para garantir um melhor desenvolvimento para a criança. Não existem pesquisas semelhantes no contexto brasileiro, o que reflete o descaso com as crianças negras brasileiras e nos impede de ter um parâmetro da desigualdade racial presente no nosso país, para que medidas necessárias sejam tomadas e que contemplem a realidade da nossa população.

O terceiro e último tópico de reflexão é o estereótipo e suas consequências. Crianças negras, principalmente quando possuem transtornos de aprendizagem ou de desenvolvimento, carregam consigo o estereótipo de maus alunos [7]. Uma visão essencialista tendo a raça como parâmetro, logo racista.

Pessoas negras, em especial homens, são vistas socialmente como agressivas, violentas e até criminosas [8], são as maiores vítimas de homicídio e brutalidade policial [9, 10]. É sabido também, que duas características que podem ser apresentadas por pessoas autistas são crises de birra ou agressividade [1], consequentes de uma agressão, desorganização, falta de uma comunicação mais adequada. Tendo estes dois cenários estabelecidos, podemos supor que adultos autistas, suscetíveis às crises, estarão em uma grande vulnerabilidade, um risco de serem vistas como corpos a serem neutralizados, mortos.

Vale destacar a escassez de estudos que trazem o fator racial como relevante para a discussão do autismo. Racializar tal assunto se faz necessário para que possam ser investigadas de forma aprofundada possíveis distinções entre grupos raciais diversos, logo, trazer a pauta racial consiste em aprofundar-se nos temas propostos e, neste caso, viabilizar uma maior atenção às pessoas negras e autistas, reduzindo iniquidades.

O presente artigo não tem por objetivo trazer respostas prontas para os problemas que foram trazidos, existem mudanças econômicas e institucionais necessárias, que fogem da alçada da Psicologia. Nos cabe, portanto, a produção de um conhecimento que não se proponha a ser neutro, precisamos de uma produção socialmente engajada, que busque compreender as desigualdades raciais, de gênero, regionais, entre tantas outras, e atue de maneira responsável, levando em conta as particularidades dos sujeitos e o contexto sócio-histórico brasileiro.

Por fim, desejamos recomendar o vídeo “ciclo de Palestras – Autismo e Racismo” [11] do canal ‘Projeto TEA-TDIC’ com a participação da Táhcita Mizael, além de outras palestrantes que também trouxeram contribuições excelentes para esta discussão.

Autores:

Alan Ribeiro – Psicólogo formado na UNEB (CRP-03/26957). Coordenador do GT de Questões Raciais e AC.

Rafaela Sousa – Graduanda em Psicologia na UNEB, membro da Liga Acadêmica de Relações Raciais Psicologia e Sociedade (LARRPS).  

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] Sella, A. C., & Ribeiro, D. M. (2018). Análise do comportamento aplicada ao transtorno do espectro autista. Appris Editora e Livraria Eireli-ME.

[2] American Psychiatric Association. (2014). DSM-5: Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Artmed Editora.

[3] Almeida, S. (2019). Racismo estrutural. Pólen Produção Editorial LTDA.

[4] Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2018). Somos todos iguais? O que dizem as estatísticas. Retratos a Revista do IBGE, 1(11), 1-15. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/17eac9b7a875c68c1b2d1a98c80414c9.pdf>. Acesso em: 04 de jul. de 2021.

[5] Plano de saúde terá de custear tratamento multidisciplinar de criança com autismo. JURISTAS, 16/02/2020. Disponível em: < https://juristas.com.br/2020/02/16/plano-de-saude-autismo/ >. Acesso em: 10 de mai. de 2021.

[6] Zanon, R. B., Backes, B., & Bosa, C. A. (2014). Identificação dos primeiros sintomas do autismo pelos pais. Psicologia: teoria e pesquisa30, 25-33.

[7] Alves, I. N. C (2019). DIFICULDADES E TRANSTORNOS DE APRENDIZAGEM: MASCULINIDADES E RELAÇÕES RACIAIS.

[8] de Souza, R. M. (2013). Falomaquia: homens negros e brancos e a luta pelo prestígio da masculinidade em uma sociedade do Ocidente. Antropolítica-Revista Contemporânea de Antropologia, (34).

[9] da Violência, I. A. (2021). Disponível em: https://www.ipea.gov. br/atlasviolencia/arquivos/artigos/1375-atlasdaviolencia2021completo.pdf. Acesso em junho de 2022.

[10] Mizael, T. M., & Sampaio, A. A. (2019). Racismo institucional: Aspectos comportamentais e culturais da abordagem policial. Acta Comportamentalia: Revista Latina de Análisis de Comportamiento27(2), 215-231. [11] Projeto TEA-TDIC (2020). ciclo de Palestras – Autismo e Racismo. Youtube. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=t6yKpE-RESU>. Acesso em: set. de 2022.

[11] Projeto TEA-TDIC (2020). ciclo de Palestras – Autismo e Racismo. Youtube. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=t6yKpE-RESU>. Acesso em: set. de 2022.

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Escrito por Alan Ribeiro

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