Débora Finkler Teles e Ramiro Figueiredo Catelan
A terapia comportamental dialética (DBT, do inglês dialectical behavior therapy) é um tratamento psicológico transdiagnóstico desenvolvido para ajudar pessoas que sofrem com desregulação emocional pervasiva a desenvolverem uma vida que vale a pena ser vivida (Linehan, 2010). Na DBT, os encontros semanais entre os terapeutas são chamados de reuniões de consultoria e compõem o modelo de tratamento. Esse recurso tem a função de viabilizar um tratamento eficaz, por meio da manutenção da motivação e de comportamentos habilidosos dos terapeutas na condução das atividades psicoterápicas.
A DBT tem cinco funções: 1) aumentar as habilidades comportamentais do indivíduo; 2) promover a generalização dessas habilidades em todos os contextos relevantes; 3) manter a motivação dos indivíduos para o tratamento; 4) ajudar o indivíduo a estruturar o ambiente para que os aprendizados da terapia sejam mantidos; e 5) aumentar as habilidades e manter a motivação de terapeutas para conduzir um tratamento eficaz (Salsman & Linehan, 2006; Linehan, 2018). As reuniões do time ou equipe de consultoria na DBT servem para atender à última função e são fundamentais para viabilizar um tratamento efetivo. Para isso, foram formulados alguns acordos ou compromissos de consultoria que norteiam os terapeutas na vivência dos princípios da DBT nas reuniões clínicas. Esses princípios fomentam o equilíbrio dialético entre mudança e aceitação, a adoção de uma postura não julgadora, mas empática e atenta (mindful). Dessa forma, aumenta-se a efetividade do tratamento, prevenindo o desgaste da equipe.
Como uma forma de serem lembrados e seguidos, os acordos costumam ser lidos no início de cada reunião de consultoria, seja em sua totalidade ou em partes. Quando ocorre a entrada de novos membros na equipe de consultoria, é recomendável que ocorra um encontro de orientação para o funcionamento da reunião, com a apresentação dos acordos de consultoria de DBT. Deve haver uma adesão voluntária desses princípios por parte tanto dos novos quanto dos antigos membros. Terapeutas que desejam trabalhar com o modelo da DBT padrão (ou modelo standard) precisam necessariamente estar em uma equipe de consultoria; afinal, trabalhar com pacientes com intenso sofrimento pode levar terapeutas ao desgaste emocional e a fadiga. Contudo, a entrada em uma equipe de DBT deve ser voluntária e irá demandar comprometimento com a equipe e a vivência dos princípios dialéticos, já que esse é um elemento fundamental para o tratamento ser eficaz. A vivência da DBT em equipe tem um papel muito importante no nosso crescimento pessoal e profissional.
A seguir, compartilharemos com vocês uma versão dos seis acordos originais de consultoria que pode ser utilizada na reunião de consultoria. Esta versão mescla as orientações do manual de DBT (Linehan, 2010, capítulo 4, na sessão sobre compromissos de supervisão de terapeutas) com a adaptação dos acordos proposta por Dykstra & Charlton (2008)*, que abordam os acordos de modo bastante fluido, empático e pragmático. Após cada item, são apresentados alguns comentários e reflexões para aprofundamento. Na sequência, apresentaremos uma versão estendida dos acordos recentemente proposta por Sayrs e Linehan (2019).
1. Compromisso com o princípio dialético. Sabemos que diferentes pontos de vista, opiniões fortes e conflitos surgem e são esperados; portanto, concordamos em buscar uma síntese nessas situações, em vez de buscar “uma verdade” (Dykstra & Charlton, 2008; Linehan, 2010). Nossos pacientes – e cada um de nós – têm sabedoria e traz uma perspectiva válida a ser acolhida. Nós nos dispomos a considerar diferentes perspectivas e a trabalhar em colaboração visando à melhora dos pacientes (Dykstra & Charlton, 2008).
Comentários: A vivência dos princípios dialéticos em equipe é fundamental, pois fomenta a nossa capacidade de sustentar uma postura dialética também nos tratamentos. Nesse acordo assumimos o compromisso de lidar com as polarizações que ocorrerem nas reuniões buscando a coexistência de diferenças e uma síntese possível, que irá se materializar em direções que terapeutas concordam em tomar para a condução da situação que deflagrou a polarização. As diferentes visões e eventuais polarizações são aceitas com naturalidade, pois, de fato, as diferenças enriquecem a equipe quando lidamos com elas de modo a trilhar o caminho do meio, validando contribuições diversas. Dessa forma, conseguimos oferecer um tratamento mais efetivo em termos de estratégias para os casos, além de favorecer a manutenção da motivação dos terapeutas.
2. Compromisso em orientar o paciente. Não temos o poder de “salvar” pacientes de crises, sofrimentos ou conflitos; não é nosso papel resolver os seus problemas. Contudo, nos comprometemos a trabalhar em conjunto para que pacientes usem mais e mais habilidades frente aos problemas e nas suas interações, incluindo nisso os contatos com profissionais da equipe ou de fora (Dykstra & Charlton, 2008). Dessa forma, não trataremos pacientes ou terapeutas como frágeis. Vamos auxiliar pacientes a estabelecerem uma relação habilidosa com a equipe e auxiliaremos terapeutas a agirem com efetividade em suas funções. Se terapeutas cometerem um erro, nos comprometemos a identificar e reconhecer o que houve, ajudando pacientes a lidar com isso – e não necessariamente a trocar de terapeuta (Linehan, 2010). Somos falíveis, assim como o ambiente com o qual pacientes interagem (Dykstra & Charlton, 2008). Fomentamos as capacidades de pacientes de lidar com a equipe e ao mesmo tempo, trabalhamos em equipe para planejar o tratamento, trocando informações e discutindo como enfrentar as dificuldades.
Comentários: No capítulo 13 do guia do terapeuta, Linehan (2010) detalha como conduzir possíveis impasses entre orientar pacientes ao lidarem com outros profissionais versuscoorientar terapeutas sobre a condução do tratamento. O ponto central é fomentar as habilidades de pacientes para gerenciar possíveis impasses em suas redes de cuidado, não intervindo diretamente junto a outras(os) profissionais em seu lugar, a não ser quando estritamente necessário. É necessário estar atento para não fragilizar o paciente e, consequentemente, deixar de fomentar a construção e reforço das suas habilidades.
3. Consistência entre terapeutas. Concordamos que é importante haver consistência entre terapeutas da equipe. Ao mesmo tempo, não se espera consistência necessariamente, pois sabemos que a vida real acontece e a coerência não será possível em 100% do tempo; isso faz parte da própria natureza dialética da realidade. Por isso, usamos essas situações em que ocorrem falhas como oportunidades para ajudar pacientes e a nós mesmas(os) a lidar com a realidade como ela é, usando e aprimorando nossas habilidades (Dykstra & Charlton, 2008). Assumimos que todas as pessoas – e isso inclui tanto terapeutas quanto pacientes – estão fazendo o melhor que podem, e ainda assim querem e devem fazer mais e melhor (Linehan, 2010).
Comentários: As condutas que tomamos com relação a pacientes são passíveis de erros. Por exemplo, discrepâncias podem acontecer na comunicação das regras do tratamento, ou nas comunicações com outras(os) profissionais da rede de cuidado. Como equipe, não temos como prever todas as situações e imprevistos que poderão ocorrer ao longo do tratamento. Porém, para pacientes com desregulação emocional pervasiva, esses imprevistos podem tomar uma proporção maior de desconforto e gerar uma mobilização maior na equipe. O trabalho da equipe não é proporcionar um ambiente perfeito. Essas falhas são bons ensejos para pacientes aprenderem a lidar com o mundo real. Tanto pacientes quanto terapeutas têm nesses imprevistos oportunidades de exercitar as habilidades de DBT.
4. Observação de limites pessoais. É preciso ser atentamente empático com as pessoas que atendemos para alcançar efetividade no tratamento (Dykstra & Charlton, 2008). E para manter uma postura empática, precisamos observar nossos próprios limites pessoais e profissionais sem julgamentos, assim como devemos ajudar cada terapeuta da equipe a observar os próprios limites com gentileza. Concordamos em observar nossos limites sem receio sobre a reação de demais membros da equipe, assim como nos comprometemos a aceitar que cada terapeuta tem limites diferentes, que podem variar com o tempo e o contexto, não caracterizando um elemento rígido e estático. Aceitamos, sem julgamentos, que os limites são flexíveis e mudam (Linehan, 2010).
Comentários: Esse ponto, a despeito de ser muito importante, pode ser facilmente negligenciado e/ou mal-entendido. A possibilidade de reconhecimento e observação dos limites pessoais depende em parte da atuação da equipe de consultoria de uma forma aberta e não defensiva. Isso, por sua vez, tem um grande peso na efetividade do tratamento e na motivação de terapeutas a médio e longo prazo. Contudo, as equipes não começam a sua atuação prontas; elas amadurecem ao longo dos anos e aprimoram sua capacidade de confiança mútua e condução da consultoria de modo aberto e mindful, sem defensividade. A equipe, e cada membro, precisa exercitar o não julgamento para reconhecer mais facilmente os limites pessoais e profissionais de cada pessoa, bem como para manejá-los de forma efetiva e validante na reunião. Embora teoricamente pareça simples, na prática reconhecer limites pode ser doloroso e desconfortável, talvez ativando sensações de impotência e vergonha. Como aponta Linehan (2010; capítulo 5), os limites pessoais variam com o terapeuta, com o tempo, com o paciente, e também variam com as mudanças na relação terapêutica e com fatores individuais na vida do terapeuta.Assim, a equipe deve ajudar cada membro a identificar e respeitar seus limites com gentileza. Uma equipe acolhedora e não defensiva ameniza e previne o burnout de terapeutas.
5. Postura empática e descritiva. Nos comprometemos a adotar um olhar empático tanto individualmente com cada terapeuta da equipe quanto com pacientes. Buscaremos entendimentos descritivos e empáticos, não julgadores ou pejorativos, tanto com pacientes quanto com a equipe (Linehan, 2010). Assumimos um compromisso de compassividade mútua, validando as experiências de cada terapeuta, seguindo o pressuposto de que pacientes e terapeuta estão fazendo o melhor que podem e querem melhorar. A relação entre membros é tão importante quanto a relação entre paciente e terapeuta (Dykstra & Charlton, 2008), e também segue princípios de confidencialidade e confiança.
Comentários: Novamente ressalta-se a necessidade da vivência dos princípios da DBT dentro da equipe, tanto na relação de terapeutas com pacientes quanto na relação entre membros da consultoria. Durante a reunião, a pessoa que assume o papel de observadora procura indicar quando expressões descritivas podem ser usadas no lugar de comunicações que sejam interpretativas ou julgadoras. Toda a equipe se compromete a ajudar a observar e apontar quando posições estanques, polarizadas e julgamentos ocorrem, guiando por caminhos mais empáticos. Diferentes pontos de vista devem ser acolhidos, sem julgá-los ou interpretá-los como ingênuos ou agressivos, por exemplo. As diferenças enriquecem o trabalho da equipe.
6. Falibilidade. Concordamos que, na condição de seres humanos, somos imperfeitos e vamos falhar, o que é permitido e esperado (Dykstra & Charlton, 2008; Linehan, 2010). Nos comprometemos a aceitar nossas falhas e a deixar de lado o ímpeto de defensividade, incorporando de modo radical a dialética elementar da DBT, que é aceitar quem se é enquanto se trilha o caminho para mudar quem se é. Contamos uns com os outros enquanto membros da equipe para apontar as polarizações (como julgamentos e/ou culpabilização não justificada ou excessiva) e elaborar sínteses sobre elas. Assumimos que usaremos os recursos da DBT para nos ajudar a vivenciar o modelo em sua filosofia e procedimentos (Dykstra & Charlton, 2008).
Comentários: O entendimento explícito de que terapeutas são falíveis alivia a pressão nos momentos mais desafiadores e dilemáticos e abre as portas para a humildade, reconhecimento dos erros e aprendizado. Evitamos hiper-responsabilizar pacientes por falhas terapêuticas ou dificuldades próprias do processo, desafiando olhares inefetivos e comuns em tradições psicológicas que rotulam pacientes como “resistentes”, “manipuladores” e que “não querem se ajudar”. No lugar disso, a tarefa da equipe diante de momentos de impasses ou de falhas no tratamento é justamente usar os recursos da DBT para gerar conhecimento e mudança. Linehan (2010) aponta que a DBT é uma grande ferramenta de solução de problemas. Nas reuniões de consultoria precisamos usar solução de problemas para corrigir direções do tratamento e, ao mesmo tempo, validar a sabedoria inerente a cada terapeuta, equilibrando mudança e aceitação. Partimos do pressuposto de que, além de terapeutas, o tratamento em si pode falhar.
Além desses acordos originais, Sayrs e Linehan (2019) descreveram doze acordos adicionais em um recente livro chamado DBT teams: Development and practice (em tradução livre, Equipes de DBT: desenvolvimento e prática). Abaixo, segue uma síntese adaptada desses acordos adicionais que complementam os seis acordos básicos de consultoria que já discutimos e explicitam posturas importantes na equipe de consultoria. Recomendamos que as equipes possam discutir essas orientações com alguma recorrência, a fim de manter essas diretrizes presentes no funcionamento da equipe.
7. Somos uma comunidade de terapeutas trabalhando com uma comunidade de pacientes. Isso significa que pacientes de cada terapeuta individual são pacientes da equipe, sendo a efetividade do tratamento uma responsabilidade coletiva.
8. Oferecemos terapia para terapeutas durante as reuniões. Essa é a principal função do time. Ajudaremos cada terapeuta da equipe a se aproximar com mais fidelidade do modelo e a abordar os obstáculos que surgirem no caminho. Reconhecemos que somos vulneráveis, compartilhamos erros, experiências e expressamos emoções em equipe; aceitaremos validação e feedback focado em mudança. Exerceremos cuidado mútuo enquanto time para podermos cuidar mais efetivamente de quem atendemos.
9. Oferecemos e aplicamos a DBT a pacientes que necessitam dela. Isso significa evitar “misturar” princípios e elementos de outras abordagens, especialmente aquelas com base epistemológica divergente, a não ser quando isso for efetivo de acordo com a avaliação funcional de cada caso. Por exemplo, pode ser pertinente aplicar protocolos de TCC para abordar alvos de qualidade de vida em pacientes com Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC). Manter o foco das reuniões nos elementos da DBT, e não de outras abordagens, garante uma linguagem comum na equipe e fidelidade aos procedimentos descritos na literatura.
10. Adotamos uma conceitualização de caso alicerçada na análise do comportamento. Lembramos que a DBT é uma terapia de base comportamental, e que mesmo as práticas de aceitação e os princípios dialéticos são observadas por uma lente comportamentalista. Evitamos fazer interpretações fora do modelo comportamental e da teoria biossocial.
11. Tratamos as reuniões de consultoria com a mesma importânciade sessões de terapia com pacientes. Isso significa um compromisso com evitar faltas, atrasos e uso do tempo reservado à consultoria como um “horário coringa” para compromissos não agendados previamente. Lembramos que cada membro que se ausenta faz falta para o time. Imprevistos acontecem, mas é importante fazer análises funcionais quando comportamentos de falta começam a ocorrer, de modo que o time ajude a identificar variáveis de controle e pensar em conjunto soluções para isso.
12. Nos comprometemos a assumir a função com a qual nos comprometemos (por exemplo, ser terapeuta individual, líder ou co-líder do treinamento de habilidades).Toda a equipe tem responsabilidade clínica. Terapeutas que tiram férias do atendimento clínico também tiram férias das reuniões.
13. Estamos disponíveis para apontar o elefante branco na sala quando ninguém mais estiver fazendo isso. Isso significa comunicar frustrações, sensações de julgamento e abordar tópicos sensíveis mesmo quando o medo se fizer presente. Basicamente, é fazer o que pedimos que pacientes façam: adotar a exposição como filosofia de vida.
14. Quando estamos em reunião, estamos em reunião de forma presente e atenta, e não fazendo duas coisas ao mesmo tempo. Adotar uma postura mindful é fundamental para auxiliar cada terapeuta da equipe a manter a efetividade no tratamento.
15. Procuramos oferecer uma avaliação cuidadosa antes de oferecer soluções durante a reunião.
16. Faremos um esforço para seguir os pressupostos sobre pacientes e sobre a terapia.
17. Seguimos a política e combinações da equipe em relação a oferecer apoio mútuo (durante ou fora da reunião), “cobrir” férias de colegas e outros acordos definidos em conjunto.
18. Continuamos nos concentrando em todos os itens acima, mesmo quando sentirmos esgotamento, frustração, desesperança, indisposição e outros estímulos aversivos.
*A porção do texto sobre os seis acordos de consultoria contou com a revisão e autorização de Dykstra & Charlton (2004).
Referências:
Dykstra, E., & Charlton, M. (2008). Dialectical behavior therapy skills training: Adapted for special populations. Unpublished manuscript, Aurora Mental Health Center.
Linehan, M. M. (2010). Terapia cognitivo-comportamental para Transtorno da Personalidade Borderline: guia do terapeuta. Artmed.
Linehan, M. M. (2018).Treinamento de Habilidades em DBT – Manual de Terapia Comportamental Dialética para o terapeuta. Porto Alegre: Artmed.
Salsman, N., & Linehan, M. M. (2006). Dialectical-behavioral therapy for borderline personality disorder. Primary Psychiatry, 13(5), 51.
Sayrs, J. H. R., & Linehan, M. M. (2019). DBT teams: Development and practice.Guilford Press.