Entrevista exclusiva: Mavis Tsai e Robert Kohlenberg [Parte 1]

A coluna sobre Psicoterapia Analítica Funcional (FAP) tem o intuito de trazer as nossas experiências e pontos de vista como psicoterapeutas e pesquisadores a respeito dos fundamentos e aplicação deste modelo. Porém, neste texto exclusivo, trago uma proposta um pouco diferente, apresentando uma entrevista com dois dos criadores da FAP sobre alguns tópicos atuais e algumas curiosidades relacionadas a essa terapia. Para isso, contamos com a imensa gentileza de Mavis Tsai e Robert Kohlenberg, pesquisadores ligados à Universidade de Washington e autores de diversos livros e artigos sobre a FAP. A entrevista foi realizada durante o mês de Agosto de 2017, em inglês, e será publicada em duas partes, traduzida para o português. A condução da entrevista, formulação e revisão do texto foram realizados pelos colunistas Jonatas Passos, Lucas Souza e Priscila Rolim.

Vamos à primeira parte da entrevista:

Comporte-se: Para começar nossa entrevista, você poderia nos dizer brevemente como definiria a Psicoterapia Analítica Funcional (FAP) e como ela foi criada?

Tsai & Kohlenberg*: A FAP é uma terapia analítico-comportamental intensa, íntima e emocional, na qual a relação terapêutica é o principal veículo para o crescimento do cliente porque os terapeutas respondem contingentemente com consciência, coragem e amor (definidos comportamentalmente) aos problemas da vida diária dos clientes, com a intenção de modelar os comportamentos alvo em sessão à medida que ocorrem. A FAP foi criada como resultado da observação clínica de que alguns de nossos clientes melhoraram acentuadamente através de relações terapêuticas intensas e profundas que ultrapassaram qualquer intervenção em particular. Nós criamos as cinco regras da FAP – ter consciência dos comportamentos clinicamente relevantes (CCRs), evocar CCRs, reforçar CCRs, observar o impacto do comportamento do terapeuta sobre os CCRs, gerar interpretações (descrições funcionais) visando à generalização – como uma forma de capturar em termos comportamentais o que fazíamos e que era especialmente efetivo para então poder replicar esses procedimentos e ensiná-los aos outros.

*: As perguntas foram inicialmente endereçadas a Mavis Tsai, porém ela informou que as respostas foram redigidas conjuntamente por ela e seu marido e colaborador Robert Kohlenberg.

Comporte-se: Em alguns de seus livros anteriores, a FAP é descrita como uma abordagem behaviorista radical à relação terapêutica. Agora, no último livro de Holman (Holman, Kanter, Tsai & Kohlenberg, 2017), ela é descrita como uma terapia comportamental contextual focada na relação terapêutica. Behaviorismo Radical (BR) e Ciência Comportamental Contextual (CBS) são semelhantes, mas não exatamente a mesma coisa. Pode-se falar em um distanciamento do BR à medida que a FAP passa a usar termos mais abstratos como consciência, coragem e amor? Quais são os seus pensamentos sobre como a FAP está relacionada à CBS e ao BR e quais são as implicações de usar mais termos de nível intermediário?

Tsai & Kohlenberg: Sim, as bases teóricas da FAP se baseiam no behaviorismo radical de Skinner, uma abordagem que foi mal interpretada como mecanicista. A filosofia da ciência comportamental contextual, delineada por Steven Hayes, é uma interpretação mais precisa do behaviorismo radical de Skinner. A CBS enfatiza a importância de compreender a complexidade, a riqueza e as variáveis manipuláveis dos eventos psicológicos (incluindo pensamentos, sentimentos e comportamentos) para predizer e influenciá-los com precisão, escopo e profundidade. As cinco regras são baseadas no BR, e acreditamos que, embora BR e CBS sejam termos que possam ser usados de forma intercambiável, a CBS é uma interpretação mais contemporânea do BR que reflete o zeitgeist das teorias psicológicas atuais.

Definitivamente, não nos afastamos dos princípios comportamentais; estamos usando os termos de nível intermediário “consciência, coragem e amor”, porque, apesar de perderem precisão, são importantes na criação de uma ciência mais adequada aos desafios da condição humana (Kanter, Holman & Wilson, 2014). Os termos de nível intermediário tornam as 5 regras mais acessíveis e menos pesadas (ou seja, as Regras 1, 4 estão relacionadas à consciência, a Regra 2 está relacionada à coragem, a Regra 3 está relacionada ao amor e a Regra 5 envolve consciência, coragem e amor [1]).

Comporte-se: Colocando de forma mais ampla, você estaria disposta a falar mais sobre os fundamentos filosóficos e teóricos do FAP e como ela se relaciona com a pesquisa básica?

Tsai & Kohlenberg: Os principais fundamentos teóricos da FAP, derivados da pesquisa básica, consistem em: 1) reforço natural – modelagem direta e fortalecimento de comportamentos mais adaptativos através de contingências que aumentam ou diminuem a força do comportamento. Quanto mais se aproximam temporalmente os comportamentos de suas conseqüências, maior será o efeito. É por isso que a FAP se concentra na interação do terapeuta e cliente aqui-e-agora; 2) especificação de comportamentos de interesse pela observação direta – isto é viabilizado se os problemas da vida diária do cliente ocorrerem durante a sessão e, portanto, puderem ser observados diretamente; e 3) generalização – se a terapia e os ambientes de vida diária evocam o mesmo comportamento nos clientes (por exemplo, hostilidade, desengajamento, evitação de emoções), eles são funcionalmente similares. Essa similaridade entre ambientes aumenta a probabilidade de generalização para a vida diária do cliente e das melhoras que ocorrem na sessão de terapia. Para facilitar a generalização, no entanto, os terapeutas da FAP costumam atribuir aos clientes tarefas de casa baseadas nas melhorias observadas na sessão. Nos estudos da FAP que empregam achados de pesquisa básica, as evidências sugerem que o mecanismo de mudança hipotetizado pela FAP (reforçamento natural contingente aos comportamentos clinicamente relevantes) aumenta a frequência  dos comportamentos de melhora do cliente na sessão e no cotidiano.

Comporte-se: Em seu recente TED Talk, você mostrou um belo projeto em que vem trabalhando, chamado Live with Awareness Courage and Love (Viva com Consciência, Coragem e Amor). Parece ser uma maneira de tornar a FAP mais acessível ao público em geral, expandindo-a para além do consultório de psicoterapia. Você gostaria de nos contar sobre o projeto e talvez esclarecer sobre as motivações que teve quando decidiu iniciar este projeto? O que você vê como os benefícios mais salientes que podem advir desse trabalho?

Tsai & Kohlenberg: Começamos o nosso projeto de Meetups do Live with Awareness, Courage and Love (ACL) como um estudo de desenvolvimento de tratamento para enfrentar a grande epidemia de falta de conexão social ou solidão que afeta a saúde pública global (Hafner, 2016), a qual tem implicações à saúde física e mental. Na realidade, dados de 140 estudos mostram que a solidão aumenta mais o risco de morte do que o consumo excessivo de álcool, a exposição à poluição atmosférica crônica, a obesidade, e o excesso de fumo (Holt-Lunstad, Smith & Layton, 2015). Como você disse, os Meetups Live with ACL são uma maneira de expandir a FAP além do consultório de psicoterapia e tornar acessíveis ao público geral os princípios e métodos da FAP a um custo muito baixo. Em particular, a ênfase é em acessar o poder curativo das interações autênticas no momento presente, através da prática de estar presente com o coração aberto, de auto-expressão vulnerável, escuta compassiva e focando em modos de viver vidas mais ousadas e significativas (práticas essas definidas e baseadas em princípios comportamentais).

Comporte-se: Além disso, em quais contextos esse trabalho foi aplicado e onde você mais gostaria de vê-lo aplicado no futuro próximo? Desde que iniciou o projeto, que barreiras já encontrou nesta implementação?

Tsai: Conduzo mensalmente um treinamento em grupo gratuito online, para líderes ao redor do planeta, em que eles experimentam um protocolo de reunião do grupo ACL (há um tema mensal diferente, como focar no comportamento não-verbal) antes de liderar seu grupo Meetup presencial. Houve um resultado fenomenal desde que este projeto começou em outubro de 2016 – atualmente existem mais de 5000 membros do Meetup ACL em 36 cidades, 15 países e 5 continentes: https://www.meetup.com/pro/livewithacl/. Gostaríamos de ver os Meetups da ACL em cada cidade e em todos os países, do mesmo modo como os programas de 12 passos estão amplamente disponíveis. Os obstáculos à implementação envolvem falta de recursos e funcionários.

Comporte-se: Há uma coisa que realmente chamou minha atenção para este projeto, e isso também está presente em um artigo recente em que você é coautora: é a possibilidade de esse método ser aplicado por pessoas sem treinamento prévio em saúde mental ou psicoterapia. No artigo, você mostrou alguns efeitos positivos de uma interação guiada pelo modelo ACL, que foi facilitada por pessoas leigas com um breve treinamento sobre o protocolo (Haworth et al., 2015). Isso foi notável. Agora, no projeto Live with ACL, você afirmou que qualquer pessoa que tenha habilidades interpessoais, empatia e compaixão, e que esteja disposta a aprender e se conectar, pode ser treinada para se tornar um facilitador. Isso parece mesmo capaz de aumentar a acessibilidade da intervenção, mas também podem se antecipar alguns riscos de que intervenções tão poderosas conduzidas por pessoas que não possuam treinamento específico em saúde mental venham a se revelar iatrogênicas. O que você tem experimentado até agora, e qual sua opinião em relação a essas preocupações?

Tsai & Kohlenberg: Até agora, a maioria dos líderes do ACL são profissionais com treinamento clínico. À medida que treinarmos mais e mais voluntários leigos, nossas preocupações podem aumentar. Uma maneira de abordar as preocupações quanto a resultados iatrogênicos é destacando em nossos formulários de consentimento informado que: 1) não estamos oferecendo terapia, 2) o objetivo dos grupos é dar aos membros a oportunidade de praticar uma conexão de coração aberto consigo mesmo e com os outros, e levar essa autenticidade à vida cotidiana; 3) se a necessitar de terapia, peça um encaminhamento ao facilitador do grupo. Outra maneira de trabalhar para diminuir a probabilidade de resultados negativos é enfatizar: autocuidado, adaptação das instruções de exercício experiencial da ACL à zona de conforto, evitando o compartilhamento exagerado e que todos acolham os próprios sentimentos e de outros, sem tentar “corrigi-los”. Essas diretrizes parecem criar um espaço seguro para quase todos os envolvidos, embora tenhamos ouvido que os exercícios foram demasiado intensos emocionalmente para alguns indivíduos, e que acabaram por não voltar. O que nos impulsiona, apesar da consciência constante dos riscos inerentes à auto-exploração e auto-expressão, é o feedback extremamente positivo recebido de líderes e participantes em todo o mundo em nossos formulários de avaliação que são respondidos ao final de cada sessão, e os dados que estamos começando a coletar através de questionários on-line.

Notas:
[1]: Também é possível dizer que a regra 5 envolve o quarto termo que compõe o modelo ACL da FAP – Consciência, Coragem, Amor e Behaviorismo (Tsai et al., 2008). Isso porque, conforme Maitland, Kanter, Manbeck, & Kuczynski (2017), a regra 5 consiste em formular análises funcionais do comportamento do cliente visando a incrementar a generalização dos CCR2

 

REFERÊNCIAS:

Holt-Lunstad, J., Smith, T. B., & Layton, J. B. (2010). Social relationships and mortality risk: a meta-analytic review. PLoS medicine, 7(7), e1000316.

Hafner, K. (2016, Setembro 5) Researchers Confront an Epidemic of Loneliness. The New York Times. Recuperado de [Link]

Haworth, K., Kanter, J. W., Tsai, M., Kuczynski, A. M., Rae, J. R., & Kohlenberg, R. J. (2015). Reinforcement matters: a preliminary, laboratory-based component-process analysis of functional analytic psychotherapy’s model of social connection. Journal of contextual behavioral science, 4(4), 281-291.

Holman, G., Kanter, J., Tsai, M., & Kohlenberg, R. (2017). Functional Analytic Psychotherapy Made Simple: A Practical Guide to Therapeutic Relationships. New Harbinger Publications.

Kanter, J. W., Holman, G., & Wilson, K. G. (2014). Where is the love? Contextual behavioral science and behavior analysis. Journal of Contextual Behavioral Science, 3(2), 69-73.

Maitland, D. W. M., Kanter, J. W., Manbeck, K. E., & Kuczynski, A. M. (2017). Relationship science informed clinically relevant behaviors in Functional Analytic Psychotherapy: The Awareness, Courage, and Love Model. Journal of Contextual Behavioral Science. http://doi.org/10.1016/j.jcbs.2017.07.002

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Escrito por Coluna FAP

Este perfil é destinado à autores convidados pela Coluna de Psicoterapia Analítica Funcional (FAP), que possuem conhecimento ou especialidade em FAP. O objetivo é divulgar a FAP e discutir tópicos relacionados ao modelo em uma linguagem acessível para o leigo, para o clínico, para o estudante e para o cliente. Para tanto, os autores podem contribuir com materiais variados sobre a FAP, como textos sobre conceitos e princípios, casos fictícios que possam exemplificar a aplicação, estratégias e materiais que podem ser utilizados, integração da FAP com outras psicoterapias de base analítico-comportamental, entrevistas com profissionais renomados da área, resenhas ou traduções de artigos ou capítulos importantes sobre FAP, textos voltados ao público em geral que versem sobre o modelo ACL, vídeos em português, entre outras possibilidades.

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