Repetir padrões que parecem autodestrutivos, escolhas de relacionamentos com o mesmo padrão passível de gerar sofrimento e outras ações recorrentes que parecem nunca serem efetivas; estes são alguns dos comportamentos que geralmente ganham na fala do dia-a-dia o rótulo de “autoboicote”. Na prática clínica, volta e meio ouço alguém trazer como um problema de vida o “autoboicote” ou a “autossabotagem”. De forma geral, a queixa é de realizar ações que tendem a voltar contra si, ou ações que, de acordo com o cliente, buscam o sofrimento, assim como comportamentos cujo único objetivo é punir-se até mesmo por não merecer ter sucesso em alguma área da vida. Geralmente o boicote em jogo é em relação a algo importante para a pessoa, mas que muitas vezes está aparentemente inatingível. Enquanto outros modelos teóricos já discutiram o assunto, qual poderia ser a contribuição da análise do comportamento a respeito? Quais são as funções destes padrões de ação? É possível interromper o ciclo de repetições que leva à sensação de estar causando mal a si próprio? Como as terapias comportamentais podem ajudar a lidar com o “autoboicote”?
Fortemente arraigado no senso comum, o “autoboicote” é um fenômeno que já foi discutido por outros modelos terapêuticos, como um “vício” por sofrimento, uma “compulsão pela repetição”, sendo tema recorrente na literatura de autoajuda (Hermes & Rosner, 2014). Enquanto para estes outros modelos, em especial o psicanalítico, o “autoboicote” é um resultado de dilemas inconscientes fortemente ligados à infância, a análise clínica do comportamento se preocupa com as variáveis que são função dos padrões-problema repetitivos que acabam por gerar um sofrimento mais ou menos constante, e então possibilitar uma mudança para um padrão que seja mais efetivo para os objetivos da vida. No entanto, de acordo com o modelo de seleção por consequências um paradoxo se apresenta: nosso comportamento é selecionado pelo ambiente principalmente pelas suas funções de sobrevivência; logo um padrão de “autoboicote” deve apresentar funções que são adaptativas, sendo “autoboicote” um rótulo de uma classe funcional que engloba muitos comportamentos, e não um ou outro comportamento específico. No livro Beyond Freedom and Dignity (traduzido como “Mito da Liberdade”) Skinner afirma que “quase todos os seres vivos agem para livrar-se de contatos prejudiciais (1971, p. 31), de forma que parece pouco lógico que um determinado organismo aja buscando destruir-se. Obviamente, isto não significa que o próprio sujeito não acabe tomando ações que o prejudicam, como veremos abaixo, mas que em algum ponto da cadeia os comportamentos estão sendo governados por alguma função de sobrevivência.
O resultado comum deste padrão de “autossabotagem” é uma vida com pouco acesso a reforçadores de grande magnitude (pode ser um trabalho melhor, um relacionamento mais reforçador e menos tóxico, uma boa nota na faculdade, etc.), ou um padrão de esquiva destes contextos potencialmente reforçadores, que provavelmente estão acompanhados alguma estimulação aversiva a curto prazo (um risco de levar um fora, de ser demitido ou rechaçado, reprovar de ano, ou até mesmo a intimidade). Outro desfecho possível é a manutenção de contextos aversivos (por exemplo, relações abusivas com cônjuge, família, no trabalho e amigos, ou estresse pela procrastinação) e uma dificuldade em conseguir livrar-se efetivamente destes, o que pode ser por falta de repertório ou pela falta de consciência dos efeitos de longo prazo da manutenção destes contextos, por “familiaridade” em um contexto aversivo, podendo acompanhar desamparo aprendido (para uma revisão, Ferreira & Tourinho, 2013). Também há a possibilidade de existir alguma possível função reforçadora não muito clara (por exemplo, uma relação abusiva é a única fonte de afeto ou reconhecimento social ao permanecer em um trabalho estressante).
Então que variáveis poderiam estar mantendo este padrão?
Embora as funções do que fazemos (ou seja, o porquê do que fazemos) sejam radicalmente individuais e idiossincráticas (Carrara, 2005; de-Farias & cols., 2010), é possível levantar algumas hipóteses sobre o que o senso comum chama de “autoboicote”. Primeiramente, é importante lembrar que, de acordo com os princípios comportamentais, nossas ações estão sob influência de variáveis ambientais que as reforçam, e que nossas intenções não necessariamente estão governando o que fazemos. Por exemplo, muitas vezes podemos ter a intenção de flertar com uma pessoa, mas não o fazemos, pois em algum momento o comportamento de exposição ao risco pode ter sido punido em nossa história, ou talvez discriminamos que a possibilidade de êxito é reduzida. Sendo assim, podemos desconstruir a ideia de que os sujeitos estão se “boicotando” por que “gostam” de sofrer ou por que estão viciados em sofrimento. É mais provável que estas condutas estejam a serviço da “sobrevivência” do indivíduo, por meio de reforçamento negativo.
Conforme apresentado em outro texto do portal (Passos, 2015), o efeito da consequência (seja ela reforço ou punição) está intimamente vinculado com o tempo de atraso de sua apresentação. Então, a primeira coisa que devemos buscar compreender é: o que aconteceu logo antes e logo depois que alguma ação foi tomada? Por mais que saibamos que algumas de nossas ações vão gerar algum sofrimento no futuro, é muito mais reforçador realizar uma ação que possa nos aliviar de algo no momento presente (Sidman, 2011). Desta forma, tomar um porre pode ser mais poderoso para aliviar imediatamente os efeitos de uma briga do que ter que lidar com o(a) cônjuge brigando ainda mais em função de ter bebido ao final da noite. Talvez não tenhamos a consciência do impacto de tomar ações pelos seus efeitos de curto prazo, o que faz com que não consigamos tolerar determinados contextos associados a uma estimulação aversiva mesmo que isso nos traga reforçadores de grande magnitude no futuro. Por exemplo não toleramos comer comida saudável, mas não tão apetitiva no curto prazo, mesmo sabendo que isto nos traria saúde e reforçadores pela questão estética. Então optamos pelo junk food, mesmo crendo na autorregra que “é só desta vez, na segunda eu volto aos eixos”. A fuga de relacionamentos íntimos também pode ocorrer em função dos reforçadores negativos de curto prazo: menor exposição significa menor risco de sofrer, então é preferível iniciar e manter relacionamentos superficiais ou com pouca chance de intimidade, geralmente associada a reforçadores de grande magnitude no longo prazo (Tsai et al., 2008).
Outro ponto a salientar é que geralmente estas ações associadas ao “autoboicote” estão relacionadas a uma esquiva experiencial (Luoma, Hayes, & Walser, 2007). Parte de nosso aprendizado verbal nos ajuda a lidar com determinados contextos que poderiam nos gerar sofrimento. No entanto, muitas vezes acabamos deixando de nos expor a determinadas contingências potencialmente reforçadoras, pois em algum momento elas podem ter sido condicionadas a alguma experiência aversiva, ou em função de alguma autorregra como por exemplo “não tenho capacidade de fazer isto”, “se eu me abrir, vou sofrer” e “vou ficar no que é conhecido, pois se eu mudar, vai ser pior”. Desta forma, acabamos deixando de lado alguns reforços de grande magnitude, ou ainda vivendo em uma constante estimulação aversiva de longo prazo que talvez nem tenhamos dado conta que está vinculada a nosso próprio padrão de ação.
Por fim, outra característica geralmente aventada na literatura do “autoboicote” é a “compulsão à repetição” (Hermes & Rosner, 2014). Um repertório restrito a fugir da experiência possivelmente aversiva faz com que o sujeito passe a repetir seu padrão comportamental sem conseguir mudar, mesmo que ele perceba que seu padrão é potencialmente destrutivo. Neste caso pode ser indicada uma intervenção voltada para a clarificação de contingências e ampliação de repertório, ou até mesmo por meio do processo de aceitação dos contextos aversivos de difícil mudança, enquanto se treina ações comprometidas com as coisas importantes do sujeito.
Existe saída?
Um dos grandes focos das intervenções comportamentais, como a Terapia de Aceitação e Compromisso, a Psicoterapia Analítica Funcional ou a Terapia Comportamental Dialética é poder ajudar o cliente a construir uma vida plena de reforçadores, de acordo com seus valores (aspectos importantes em suas vidas) (Lucena-Santos, Pinto-Gouveia, & Oliveira, 2015). Desta forma, deve-se buscar primeiramente a caracterização do que “autoboicote” significa para o cliente, ou seja, que comportamentos e contextos se relacionam à sua queixa. Em função do termo “autoboicote” ser pouco específico, é de suma importância compreender da forma mais descritiva possível que comportamentos ocorrem e em que contextos. Inicialmente, é necessário ajudar o cliente a tornar-se consciente das variáveis associadas ao seu padrão de ação, ligando o seu atual repertório às suas consequências.
Elencar toda a cadeia de eventos associadas ao comportamento pode ajudar o cliente a dar-se conta de que o “autoboicote” pode estar a serviço da esquiva do sofrimento, mesmo que acabe gerando um sofrimento maior e constante ao longo prazo. Este processo clínico é chamado de desesperança criativa e visa ajudar o cliente a perceber que seus esforços para lidar com o sofrimento são inefetivos, pois além de gerar mais sofrimento, estes acabam afastando possíveis reforçadores (Luoma et al., 2007). Um dos focos das intervenções comportamentais é poder promover a mudança de contextos pouco reforçadores a contextos mais ricos em reforço por meio da ativação de comportamentos governados pelos reforços de grande magnitude e da aceitação de contextos aversivos cuja eficácia de longo prazo da esquiva é bastante limitada.
Estipular metas reforçadoras de curto prazo, inicialmente, é uma estratégia efetiva. Para modelar novos comportamentos deve-se partir de ações mais simples, até que se consiga construir um repertório com maior efetividade para acessar reforçadores positivos de maior magnitude. Em outras palavras, não é aconselhável “dar um passo maior que as pernas”, sob risco de enorme frustração do cliente e do terapeuta. É necessário saber do que se está esquivando para entender o que é o “autoboicote”. A própria percepção de que não se está “viciado” em sofrer, mas que o repertório está vinculado de alguma forma ao histórico de aprendizado pode ser validante e incentivar a mudança.
Referências
Carrara, K. (2005). Behaviorismo Radical: Crítica e Metacrítica (2a). São Paulo / SP: Editora UNESP.
de-Farias, A. K. C. R., & cols. (2010). Análise comportamental clínica – Aspectos teóricos e estudos de caso. Porto Alegre: Artmed.
Ferreira, D. C., & Tourinho, E. Z. (2013). Learned helplessness and uncontrollability: relevance of a behavior analytic approach to depression. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 29(2), 211–219. http://doi.org/10.1590/S0102-37722013000200010
Hermes, P., & Rosner, S. (2014). O Ciclo da auto-sabotagem. (E. Rieche, Trad.). Rio de Janeiro, RJ: Best Seller.
Lucena-Santos, P., Pinto-Gouveia, J., & Oliveira, M. da S. (Orgs.). (2015). Terapias Comportamentais de Terceira Geração: Guia para profissionais. Novo Hamburgo / RS: Sinopsys.
Luoma, J., Hayes, S. C., & Walser, R. D. (2007). Learning ACT. Oakland, CA, USA: New Harbinger Publications.
Passos, J. A. F. (2015). Somos todos um pouco imediatistas [Blog]. Recuperado de https://comportese.com/2015/05/somos-todos-um-pouco-imediatistas/
Sidman, M. (2011). Coerção e suas Implicações. São Paulo: Livro Pleno.
Skinner, B. F. (1971). Beyond Freedom & Dignity. Middlesex, England: Penguin Books Ltd.
Tsai, M., Kohlenberg, R. J., Kanter, J. W., Kohlenberg, B., Follette, W. C., & Callaghan, G. M. (2008). A Guide to Functional Analytic Psychotherapy: Awareness, Courage, Love, and Behaviorism. Springer Science & Business Media.