Queridos leitores do portal Comporte-se, em especial àqueles que leem essa coluna sobre Terapia Comportamental Dialética (DBT). Este texto marca o início de um importante projeto do portal Comporte-se: o lançamento da seção específica de artigos de DBT. A partir de agora, queridos leitores, textos sobre DBT, escritos por notórias autoridades da abordagem no Brasil, serão disponibilizados em uma frequência semanal. Estes profissionais, além de terem um aprofundamento teórico e técnico da DBT, são profundamente dedicados ao desenvolvimento e ao ensino de uma prática séria e comprometida da DBT. Fico particularmente emocionado em ver este projeto iniciar, pois todas as vezes que me lembro como foi o início da DBT no Brasil, percebo o quanto ela está se difundindo nos diferentes estados do nosso Brasil. Lembro do quanto eu e minha equipe tivemos que lutar para conseguirmos fazer com que a abordagem finalmente entrasse dentro do terreno e prática psicoterápica brasileira; o que não poderia ter acontecido sem o primeiro Treinamento Intensivo em DBT que fomos capazes de trazer ao Brasil junto ao Behavioral Tech e The Linehan Institute. A consequência mais gratificante de todo esse processo de expansão é saber que milhares de vidas poderão ser salvas, e mais importante do que isso, serem transformadas de vidas miseráveis para vidas que valham a pena serem vividas.
Nesse sentido, poder desenvolver uma seção específica de DBT dentro de um portal do tamanho do Comporte-se é algo mais do que espetacular para o desenvolvimento da DBT, e desde já agradeço muito ao portal por essa oportunidade, em especial ao querido Esequias Caetano que sempre apoiou a ideia da construção desse projeto. Por fim, antes de entrar de fato no texto sobre os ambientes invalidantes – e finalmente sair da primeira pessoa do singular -, quero apresentar para vocês a nossa querida equipe de colunistas de DBT: 1) Vinicius Guimarães Dornelles, 2) Cristina Würdig Sayago, 3) Igor da Rosa Finger, 4) Patrícia Guedes, 5) Julia Schäfer, 6) Diego Alano, 7) Tamires Pimentel, 8) Esequias Caetano e 9) Débora Finkler (nossa correspondente internacional).
Este terceiro artigo da trilogia de textos dedicados a explicar o que é desregulação emocional e como ela se desenvolve irá explorar as variáveis ambientais do modelo biossocial as quais são denominadas de “Ambientes Invalidantes”. Contudo, antes de explorar-se diretamente o objetivo central desse artigo, cabe fazer um breve resumo dos temas trabalhados nos dois artigos anteriores dessa trilogia. Até aqui se pode ter uma definição do que é desregulação emocional. Além disso, foi visto que para o desenvolvimento da desregulação emocional é necessário que ocorra uma complexa transação entre um conjunto de variáveis biológicas e ambientais que podemos denominar, vulnerabilidade emocional e ambientes invalidantes. Por fim, foi demonstrado de forma bem detalhada todos os fatores que compõe o conceito de vulnerabilidade emocional (para um maior aprofundamento desses tópicos é recomendada a leitura dos artigos do Portal Comporte-se: 1) “O que é desregulação emocional?” e 2) “O que é desregulação emocional 2? O modelo biossocial – vulnerabilidade emocional”).
Assim sendo, este terceiro artigo irá abarcar o que são os ambientes invalidantes, as diferentes formas nas quais um ambiente pode ser invalidante e os principais efeitos que podem ser acarretados ao longo do desenvolvimento pela exposição a esses ambientes. Fornecendo assim, uma visão holística dessas variáveis ambientais em transação com as biológicas e provendo uma compreensão global do modelo biossocial.
Um ambiente invalidante pode ser definido como aquele que, sistematicamente, negligencia respostas e/ou responde de forma inapropriada e errática a comunicação de comportamentos privados de uma criança ao longo do seu desenvolvimento (Dornelles & Sayago, 2015; Linehan, 2010; Miller, Rathus & Linehan, 2007). Ou seja, estamos falando da comunicação de experiências privadas que acabam tendo consequências públicas que não proporcionam, para a criança, uma conexão entre a comunicação de comportamentos privados com a estimulação ambiental que a precede, assim como, com as consequências dela.
É, em grande parte, aqui que reside o ponto chave do papel dos ambientes invalidantes dentro da complexa transação que compõe o modelo biossocial e que resulta na desregulação emocional. Isso fica melhor explicitado quando analisamos a função dos ambientes validantes.
Os ambientes invalidantes acabam por fortalecer o desenvolvimento da organização, naturalidade, adaptabilidade e comunicação das funções das emoções, promovendo, assim, orientação para essas crianças sobre quais respostas são efetivas e adequadas (Koerner, 2012). Em outras palavras, pode-se dizer que os ambientes validantes acabam funcionando como formas de controle não coercitivos por parte dos cuidadores. De forma contrária, os ambientes invalidantes acabam comunicando que as expressões das respostas privadas das crianças são erradas em relação ao ambiente. Isso naturalmente acaba alimentando um ciclo de fuga e esquiva dessas próprias respostas privadas, o que pode acabar funcionando como uma operação abolidora do aprendizado das mais diferentes formas efetivas de comunicação dos eventos privados (Linehan, 2015; Dornelles & Sayago, 2015; Dornelles & Alano, 2016).
Observados os pontos supracitados, é fundamental ter-se clareza de que ao falar de ambientes invalidantes, está se falando de uma série de possibilidades de interações ambientais que podem resultar em uma “função invalidante”. Nessa linha de raciocínio, Linehan, 2015 coloca que a “função invalidante” dos ambientes sociais, particularmente das famílias, inclui três aspectos fundamentais: 1) uma propensão a invalidação das emoções e a inabilidade de modelar expressões emocionais efetivas em seus mais diferentes contextos; 2) uma interação recíproca entre estilos pessoais (da criança e do cuidador) que reforçam a ativação emocional; e 3) um ajuste pobre entre o temperamento da criança e o estilo parental dos cuidadores.
Todos esses 3 componentes podem acabar se traduzindo em ações específicas dos cuidadores, como: reagir de maneira extremada a expressão dos comportamentos privados da criança (como, por exemplo, nas situações de abuso emocional), criticar e/ou menosprezar a comunicação desses mesmos comportamentos, minimizar os problemas ou as estratégias de solução de problemas que essa criança possa ter, negligência, abuso físico e abuso sexual (Dornelles & Alano, 2016). Assim sendo, a intensidade na qual um ambiente invalidante pode se manifestar também é muito variável podendo ser desde aspectos de “superproteção”, o que dificulta com que essa criança desenvolva diferentes repertórios de habilidades, até abuso físico e sexual (Linehan, 2010).
Contudo, é crucial se ter clareza de que a constituição de ambientes invalidantes não se dá, necessariamente, porque os pais são “maus” ou porque querem fazer mal aos seus filhos. Muitas vezes essa configuração ocorre por uma relação funcional entre os estilos parentais dos cuidadores e o temperamento das crianças que acabam reforçando seletivamente a desregulação emocional. Uma forma muito comum de observar isso é quando a criança tem um temperamento distinto do estilo parental de seus cuidadores (Miller, Rathus & Linehan, 2007). Um exemplo disso seria imaginar crianças com temperamento mais extrovertido que procuram ativamente mais contato social e que têm pais introvertidos e que evitam essa mesma busca. É esperado que nesse contexto essas crianças acabem gerando, normalmente, uma série de situações disparadoras de tensão entre elas e os seus pais. Alguns desses pais podem acabar utilizando, corriqueiramente, estratégias coercitivas, de forma funcional e não necessariamente intencional, para lidar com a comunicação dos comportamentos privados dessas crianças frente a busca de maior contato social.
Essa relação funcional entre como os comportamentos dessas crianças influenciam os seus pais, e vice-versa, pode acabar se traduzindo em um ambiente invalidante quando se têm, prioritariamente, estratégias de controle coercitivas sendo utilizadas pelos cuidadores para lidar com as necessidades e os estilos pessoais das crianças que são discrepantes dos seus. Fazendo assim, com que essas crianças respondam ou inibindo a expressão dos seus comportamentos privados, ou aumentando a intensidade desses ou, ainda, oscilando entre esses dois padrões de respostas para assim lidar com o seu ambiente, em especial com as respostas apresentadas pelos seus cuidadores frente as suas expressões de comportamentos privados. Assim, essa interação recíproca entre as estratégias utilizadas tanto pelos cuidadores como pelas crianças acabam se configurando como uma relação funcional de controle e contra controle. Em outras palavras pode-se colocar que a constituição de um ambiente que tenha o potencial de perpetuar a invalidação ocorre quando as demandas da criança excedem a habilidade do ambiente em lidar com essas demandas (Linehan, 2015).
A grande questão que se impõe, após o entendimento do que são os ambientes invalidantes, é quais são as consequências da exposição, ao longo do desenvolvimento, a esses ambientes? Um primeiro ponto para o entendimento adequado dessa questão é relembrar que as consequências que envolvem a desregulação emocional não estão atreladas apenas aos ambientes invalidantes, mas sim a complexa transação entre esses ambientes e a vulnerabilidade emocional (Linehan, 2010; Dornelles & Alano, 2016). Mas, analisando as consequências em si, primeiramente pode-se observar que pessoas que passaram por ambientes invalidantes ao longo do seu desenvolvimento possuem déficits importantíssimos no aprendizado da nomeação e da regulação da ativação emocional. Ou seja, frente a ativação de uma resposta emocional essas pessoas possuem muita dificuldade em saber ao certo o que elas estão sentindo, assim como de regular a sua emoção para que a resposta comportamental pública seja efetiva para os seus objetivos de longo prazo, levando em conta, também, os de curto prazo. Um exemplo disso é quando uma pessoa com desregulação emocional tem uma briga com algum familiar importante e começa a sentir uma sensação de vazio intenso no peito e não consegue reconhecer bem o que está acontecendo e o que está sentindo e começa a ter uma necessidade desesperada de acabar com aquela sensação, e de súbito, lhe invade a mente uma série de pensamentos de cometer condutas auto lesivas sem intencionalidade suicida (CASIS) e de imediato acaba se cortando nas pernas. Outra consequência envolve o não aprendizado de como tolerar o mal-estar. Imaginando o exemplo anterior, frente ao impulso de cometer CASIS, essa mesma pessoa não tem estratégias aprendidas ao longo da história de vida dela que a orientem em como sobreviver a essa emoção dolorosa sem tornar as coisas ainda piores. Além disso, ter se desenvolvido em um ambiente invalidante pode fazer com que a pessoa não saiba quando pode ou não confiar nas suas próprias respostas emocionais como um reflexo de interpretações válidas dos eventos ambientais. Em outras palavras, poderíamos colocar que seria não ter as habilidades necessárias para conseguir reconhecer quando as próprias emoções, ou a intensidade delas, estão de acordo com os fatos ou não. Um bom exemplo disso seria o de uma pessoa com desregulação emocional que quando convida uma amiga para ir em uma festa e essa diz que não poderá, pois precisa terminar uma série de relatórios para entregar na faculdade, fica com muito medo de que essa amiga, na verdade, não queira sair com ela, o que faz com que ela desenvolva uma resposta de muita raiva xingando a amiga e dizendo que amigos de verdade dão um jeito e arranjam tempo para sair uma com as outras. Mais um tipo de consequência atrelada aos ambientes invalidantes envolve o aprendizado de uma desconfiança constante das próprias respostas privadas. Isso acaba levando essas pessoas a sondarem ativamente o ambiente por pistas de como devem se sentir, agir e/ou pensar nas mais diferentes situações. Enfim, essas variedades de consequências acabam justamente resultando na falha da construção de um senso de identidade, uma das principais características de pessoas com desregulação emocional (Miller, Rathus & Linehan, 2007; Linehan, 2010; Linehan, 2015).
Por fim, todo esse padrão apresentado sobre o que é invalidação e as suas consequências, nos esclarecem o porquê pacientes que possuam desregulação emocional oscilam entre a inibição e a supressão emocional e a expressão de comportamentos extremados, os quais acabam funcionando tanto como estratégias para regular a intensidade da emoção, como uma estratégia que pode ser efetiva em eliciar, a partir de relações funcionais, suporte ambiental (Miller, Rathus & Linehan, 2007). Contudo, é crucial que se tenha em conta que processos de invalidação são normais na nossa cultura e que é impossível que um ambiente não contenha em si nenhum tipo de resposta invalidante (Linehan, 2015). Inclusive a ideia de que toda a invalidação é um processo que deve ser evitado não é verdadeira. A DBT preconiza que temos que validar aquilo que é válido e invalidar aquilo que é inválido (Koerner, 2012). Ou seja, validar comportamentos privados ou públicos que tenham como função a aproximação de objetivos de longo prazo e/ou com valores importantes para a pessoa, e invalidar estratégias que impeçam que a pessoa construa uma vida que valha a pena ser vivida. Nesse sentido quando está se falando de ambientes invalidantes justamente está se descrevendo os processos de invalidação daquilo que é válido (Linehan, 2010; Dornelles & Sayago, 2015). Processo esse que quando ocorre sistematicamente de forma transacional com a vulnerabilidade emocional acaba por desenvolver um padrão de respostas caracterizado por: 1) dificuldade ou inabilidade em inibir um comportamento inadequado frente a uma ativação emocional, 2) déficits em alternar o foco atencional diante de uma ativação emocional, 3) déficits em sustentar ações direcionadas a objetivos de longo prazo quando se está em uma ativação emocional, e, 4) dificuldades ou inabilidade em reduzir a ativação fisiológica diante de uma emoção realmente intensa (Linehan, 2015). Finalizando, assim, essa trilogia de artigos e provendo uma explicação mais aprofundada de como a desregulação emocional se desenvolve a luz do modelo biossocial, temos, justamente, a expressão da desregulação emocional.
Referências:
Dornelles, V. G., & Alano, D. (2016). Terapia Comportamental Dialética. In: Federação Brasileira de Terapias Cognitivas, Neufeld, C. B., Falcone, E. M. O., & Rangé, B. (Orgs). PROCOGNITIVA Programa de Atualização em Terapia Cognitivo Comportamental: Ciclo 3. (pp 9-51). Porto Alegre: Artmed Panamericana (Sistema de Educação Continuada a Distância), v.1.
Dornelles, V. G., & Sayago, C. W. (2015). Terapia Comportamental Dialética: Princípios e Bases do Tratamento. In: Lucena-Santo, P., Pinto-Gouveia, J., & Oliveira, M. S. (Orgs.). Terapias Comportamentais de Terceira Geração: Guia Para Profissionais. Novo Hamburgo: Sinopsys.
Linehan, M. M. (2010). Terapia Cognitivo-Comportamental Para o Transtorno da Personalidade Borderline. Porto Alegre: Artmed.
Linehan, M. M. (2015). DBT Skills Training Manual (2 Ed.). New York: The Guilford Press.
Miller, A. L., Rathus, J. H., & Linehan, M. M. (2007). Dialectical Behavio Therapy With Suicidal Adolescents. New York: The Guilford Press.
Sidman, M. (2009). Coerção e Suas Implicações. Campinas: Livro Pleno.