O ano era 1943 e o dia era 20 de abril quando Edie Sedgwick, uma das conhecidas It Girls de Andy Warhol e protagonista do longa Factory Girl (2006), nasceu. Edie cresceu no berço de uma família rica e excêntrica da alta sociedade Californiana, mas marcada por segredos e problemas de saúde mental. Bonita e uma entusiasta das vanguardas artísticas do seu tempo, Edie era espontânea e aparentemente frágil. Durante sua infância e adolescência sofreu algumas internações psiquiátricas; lutou contra a bulimia e foi vítima de abuso pelo pai e um dos seus irmãos. Em 1965 foi descoberta por Andy Warhol, tornando-se rapidamente uma de suas musas e principal protagonista de alguns dos seus filmes, expondo sua personalidade em frente às câmeras. Conquistou fãs e se tornou uma das queridinhas entre o círculo do movimento pop art Nova Yorkino. Esse período da vida de Edie, que parecia ser o melhor de sua vida, acabou tomado rumos imprevistos e em pouco tempo, da jovem admirada e exaltada por algumas multidões, passou a ser a “drogadita falida”, desamparada por Andy, pela mídia e pela própria família. Entre altos e diversos baixos, Edie morreu aos 28 anos, em 1971, de uma intoxicação por barbitúricos.
A história de Edie é pública e talvez tenha alguma semelhança, em alguns aspectos, com outras que conhecemos ou acompanhamos. Hoje usarei sua história e alguns relatos públicos de Edie para explicar e ajuda-los a entender o que chamamos de alvos secundários, ou dilemas dialéticos, na Terapia Comportamental Dialética (DBT) e como esses problemas se desenvolvem a partir da Teoria Biossocial. Este será o primeiro de três artigos em que eu e os colegas, Débora Finkler e Diego Alano, explicaremos à vocês o tema proposto. Mas antes de continuarem, se vocês ainda não leram os últimos artigos da sessão de DBT aqui do Comporte-se, eu sugiro que se vocês tiverem um tempinho, tirem alguns minutos para ler. Neles, os colegas Vinícius Dornelles e Tamires Pimentel fizeram um excelente trabalho ao esclarecer e ilustrar o que é desregulação emocional, os aspectos fundamentais do seu desenvolvimento e como ela se apresenta. Eu garanto que a leitura vai valer à pena e vai ajudar a entender, ainda melhor, o que vamos começar a discutir com os próximos artigos! Boa leitura!
O que são dos Dilemas Dialéticos?
Qual terapeuta nunca teve a sensação de que, a cada sessão, o mesmo paciente em sua frente se apresenta de maneira diferente e com problemas diferentes? Qual terapeuta nunca esteve em dúvida sobre em qual aspecto, dentre a miríade de problemas do paciente, intervir primeiro? Eu já, e imagino que a maioria de vocês também. Essa confusão é bastante comum quando trabalhamos com pacientes com grandes níveis de desregulação emocional e problemas comportamentais intensos. Às vezes não sabemos por onde começar e temos a sensação de que não há tempo suficiente para ajudarmos esses pacientes em uma sessão. Tendemos a cair na tentação de tentarmos resolver tudo e, ao fim, corremos o risco de sentirmos que não fomos efetivos. Foi em cenários como esse e pensando em como resolver esse problema que a DBT foi desenvolvida e baseada em princípios e hierarquias de alvos de intervenção (Linehan, 2010).
Esses alvos de intervenção na DBT são comportamentos que devem ser modificados, ora diminuídos quando são presentes em excesso, ora aumentados quando são ausentes e necessários. Para tanto, os alvos de intervenção são divididos em primários e secundários. Enquanto os primeiros são específicos e mais facilmente identificados e monitorados pelo paciente, os alvos secundários são sutis e complexos, frequentemente interferindo no progresso terapêutico (McMain, Korman, & Dimeff, 2001). Mas o que os diferencia? Vamos imaginar como se tivéssemos Edie como nossa paciente. Após o término do seu relacionamento com o músico Bobby Neuwirth, Edie disse:
“Foi muito triste – Bobby e meu relacionamento. A única cena de amor verdadeiro, apaixonado e duradouro, e eu praticamente acabei em uma ala psiquiátrica. Eu tinha realmente aprendido sobre sexo com ele; fazendo amor, amando e doando. Isso me enlouqueceu – me deixou louca. Eu era quase uma escrava do sexo daquele homem. Eu podia fazer amor com ele por 48 horas, 48 horas, 48 horas sem cansar. Mas no minuto em que ele me deixou só, eu me senti tão vazia e perdida que eu comecei a tomar muitos remédios.”
Neste contexto, o alvo primário de tratamento de Edie seria a cessação do seu uso abusivo de medicações, pois os alvos primários de intervenção são aqueles comportamentos que 1) ameaçam a vida do paciente, 2) interferem no processo terapêutico, e 3) interferem na qualidade de vida do paciente. O uso abusivo de medicações é um comportamento característico entre aqueles que ameaça a vida, pois a sua ocorrência pode levar desde a danos a saúde, até a mortes acidentais. Seria necessário que conduzíssemos uma análise em cadeia comportamental para entender a função deste comportamento de Edie que estaríamos tentando diminuir. Ou seja, precisaríamos entender com qual finalidade (e não intencionalidade) Edie se engajou em um comportamento que poderia ameaçar a sua vida. É plausível pensar que tal análise revelaria que o uso de medicação é reforçado negativamente pelo alívio da dor emocional da perda do seu amado, significando que ao vivenciar a sensações de estar “vazia e perdida”, Edie tomava remédios para diminuir ou anestesiar seu sofrimento.
Certo, matamos a xarada da função do comportamento. E agora? O próximo passo seria Edie não abusar mais de medicações, mas será que ela conseguiria simplesmente parar se continuasse sentindo uma dor emocional tão intensa? Provavelmente não. Neste caso, não estaríamos sendo terapeutas efetivos se apenas trabalhássemos para auxiliar Edie a desenvolver estratégias alternativas ao uso de medicação se, ao mesmo tempo, não a ajudássemos a lidar com sua resposta emocional, pois a vulnerabilidade emocional de Edie possivelmente interferiria diretamente em qualquer tentativa de diminuição ou cessação do uso abusivo de medicações. Reduzir a vulnerabilidade emocional é um claro exemplo de um alvo secundário de tratamento, pois embora ela não seja o comportamento problema de fato, ela está funcionalmente relacionada a ele. Ou seja, alvos secundários são aqueles padrões de respostas que não fazem parte, necessariamente, dos alvos primários, mas que interferem no alcance desses objetivos pela existência de uma relação funcional entre eles (Linehan, 2010).
Este exemplo ilustra a forma na qual identificamos a importância dos alvos secundários. Na proposta da DBT, esses alvos são compostos por três dimensões que são baseadas na noção de oposição entre polos de dilemas dialéticos (Linehan, 2010). As três dimensões dos dilemas dialéticos são 1) vulnerabilidade emocional X auto-invalidação; 2) passividade ativa X competência aparente; e 3) crises implacáveis X luto inibido. Cada uma dessas dimensões refletem características que são influenciadas durante o desenvolvimento, principalmente, pelo substrato biológico da regulação emocional (vulnerabilidade emocional, passividade ativa e crises implacáveis) e pelas consequências sociais da expressão emocional (auto-invalidação, competência aparente e luto inibido) (Linehan, 2010; Swales, Heard, & Williams, 2000). Como mencionei anteriormente, este é o primeiro de três artigos nos quais falaremos sobres os dilemas dialéticos. Portanto, aqui, falarei sobre a dimensão da vulnerabilidade emocional X auto-invalidação.
O que é Vulnerabilidade Emocional e Auto-invalidação?
A vulnerabilidade emocional se refere a experiência de extrema vulnerabilidade e reatividade ao ambiente, e é composta por três características principais. Essas são 1) alta sensibilidade as emoções, 2) padrão de respostas emocionais intensas e 3) lento retorno ao estado de calma após a ativação emocional (Linehan, 2010; McMain, Korman, & Dimeff, 2001). Essa vulnerabilidade biológica faz parte da gênese das dificuldades de regular as respostas emocionais em todos os seus níveis – comportamental, experiencial e fisiológico – podendo levar indivíduos a reagirem de forma inexplicavelmente desadaptativa pela dificuldade de se engajarem em comportamentos de enfrentamento planejados e adaptativos diante da experiência de uma emoção desagradável intensa. A alta intensidade e a inabilidade de regular suas respostas emocionais, levam esses indivíduos a se sentirem fora de controle e serem imprevisíveis (Linehan, 2010). Edie nos ajuda a entender a experiência da vulnerabilidade emocional ao falar de uma briga que teve com Bobby Newirth:
“Eu estava fora de controle. Eu fui ficando mais e mais brava conforme andávamos no carro e quando ele estava passando pelo Chelsea Hotel, eu fiz algo. Eu nunca tinha feito nada para machucar ninguém, mas eu estava tão furiosa que eu apertei o botão e baixei o vidro do carro – o vidro entre os lugares da frente e de trás do carro – e falei para o motorista que aquele homem estava me molestando, que ele era um drogado! Eu fiquei tão horrorizada pelo que falei que eu enlouqueci e pulei do carro em direção ao trânsito certa de que eu seria esmagada […].”
Neste trecho Edie sugere que a força da sua raiva era tão grande (“… fui ficando mais e mais brava…”) que sua sensação era de estar fora de controle, levando-a a agir de uma maneira na qual não havia considerado as consequências. Ao dar-se conta do que havia feito, Edie novamente sentiu-se tomada pela emoção, dessa vez de horror (“…eu fiquei tão horrorizada…”), levando-a a agir impulsivamente novamente, mas desta vez contra si mesma. O que nos leva a falar de auto-invalidação.
Auto-invalidação se refere a tendência de 1) invalidar as próprias experiências afetivas, 2) buscar no ambiente pistas de como agir, pensar e sentir por não considerar as próprias experiências como reflexos válidos da realidade, e 3) simplificar a facilidade de resolução de problemas, complexos, ou não. Cada uma dessas características da auto-invalidação leva os indivíduos a se engajarem em tentativas de inibir experiências ou expressões emocionais, a não confiar nas suas próprias respostas e percepções da realidade, e ao ódio direcionado a si mesmo devido a percepção de incapacidade de lidar com os problemas (Linehan, 2010). Na citação anterior, Edie exemplifica esse último aspecto quando diz que ficou “tão horrorizada” que enlouqueceu e pulou “em direção ao trânsito certa de que seria esmagada”. Mas além disso, a auto-invalidação se identifica na auto-percepção do indivíduo como sendo defeituoso, o que acaba por fortalecer sentimentos de vergonha, auto-culpabilizacão e desmerecimento (Mc Main, Korman, & Dimeff, 2001). Novamente, Edie pode nos ajudar a entender um pouco disto:
“Eu sou apaixonada por todas as pessoas que eu já conheci, de um jeito ou de outro. Eu sou um desastre de ser humano louco e desequilibrado.”
Não por acaso, Edie utiliza as palavras “desastre”, “louco” e “desequilibrado” para se descrever. Ora, por amar todas as pessoas do mundo ela parece pensar que é um “desastre de ser humano”. Com estas palavras e expressões, Edie invalida sua experiência de ser “apaixonada por todas as pessoas”, se desmerecendo e qualificando como alguém com características que carregam conotações negativas. Mas como o desenvolvimento da vulnerabilidade emocional e da auto-invalidação é explicado pela Teoria Biossocial? E de que forma ambos são dois polos dialéticos opostos? Vamos ao desafio de tentar responder à essas perguntas.
Vulnerabilidade Emocional, Auto-invalidação e Ambientes Invalidantes
Nem todo mundo que é biologicamente vulnerável às emoções vai desenvolver desregulação emocional e características de auto-invalidação. Para que isso aconteça um ambiente é necessário, e tal ambiente é chamado de “invalidante” na Teoria Biossocial. Um ambiente invalidante é definido pela tendência de negar, ou responder de maneira inapropriada às experiências privadas de um indivíduo, que são frequentemente punidas, trivializadas e descartadas, ou consideradas como inaceitáveis. Imaginem uma criança com medo de escuro. Um ambiente invalidante poderia responder ao medo da criança com risadas, punições e verbalizações como “não precisa ter medo, não tem nada aqui”, “ele é um mariquinha, medroso, cagão”, “olha que bonitinho, ele tem medo do escuro”, “você não tem idade para ter medo do escuro”, entre outras. Todas essas reações banalizam e desconsideram a experiência de medo da criança, passando a mensagem de que ela é inadequada e não deveria estar ocorrendo. Mas aí eu lhes pergunto: conseguimos decidir o que sentimos e quando sentimos? Felizmente, ou infelizmente, não. Quando aprendemos que o que sentimos não é válido e o sentimos mesmo assim, a confusão sobre como compreender o ambiente e a resposta emocional a ele se instaura. Além disso, essa invalidação estimula o controle da expressão emocional (não manifestar o medo em situações futuras), a ideia de que a resolução de problemas é simples (pois é “só” não ter medo) e a intolerância de expressões de afeto negativo.
As consequências de crescer em um ambiente como esse envolvem diversos problemas relacionados às emoções. Em tal ambiente, a criança não aprende a reconhecer e rotular as próprias reações emocionais, assim como não desenvolve a capacidade de comunica-las clara e verbalmente, exacerbando seus comportamentos desadaptativos e intensificando sua vulnerabilidade emocional. Além da ausência dessas capacidades aumentar a invalidação do ambiente, o próprio indivíduo é incapaz de validar sua experiência emocional por não conseguir compreende-la. Quando emoções básicas de raiva, medo e tristeza são invalidadas e punidas, o indivíduo não aprende a confiar nas suas respostas emocionais como reflexos válidos dos eventos e situações, levando-o a procurar no ambiente pistas de como deve se sentir, pensar e agir e a sentir vergonha logo após a experiência emocional invalidada, reforçando auto-crítica e punição. Em um contexto como esse, não é surpreendente que comportamentos de compaixão direcionados a si mesmo não se desenvolvam. (Linehan, 2000).
O Dilema Dialético da Vulnerabilidade Emocional e da Auto-invalidação
Diante de tudo isso, o dilema que surge para os indivíduos quando falamos de vulnerabilidade emocional e auto-invalidação é quem culpar por todo seu sofrimento. Ele é incapaz de controlar seu comportamento como sente que não consegue (vulnerabilidade emocional), ou ele é capaz de controlar, mas não quer, como lhe diz seu ambiente (auto-invalidação)? É difícil para o indivíduo aceitar ambas ideias ao mesmo tempo, levando-o a oscilar entre os dois polos. Ora eles se invalidam e acreditam veementemente que todas as coisas ruins que lhes acontecem são consequências da sua maldade, ora eles validam sua própria vulnerabilidade ao mesmo tempo em que invalidam o destino, acreditando que todas as coisas negativas que lhes acontecem são injustas e não deveriam acontecer. Edie pareceu oscilar entre estes dilemas como os exemplos a seguir demonstram:
“Eu fiz uma máscara do meu rosto porque eu não percebi que eu era bonita. Deus me abençoou. Eu praticamente destruí isso. Eu tive que usar cílios pesados como asas de morcego, e linhas escuras abaixo dos meus olhos, e cortar meu cabelo, meu longo cabelo castanho. Cortá-lo e pintá-lo de prata e loiro. Todas aquelas manobras que eu fiz a partir de coisas que estavam acontecendo na minha vida que me chateavam.”
“Eu não tinha dinheiro. Meus pais cortaram todo meu crédito. Eu não conseguia dinheiro, e eles estavam tentando me internar de novo porque eu tinha tomado ácido e contei para o meu psiquiatra. Eu só contei para ele como foi a experiência e ele se espantou, e ao mesmo tempo ele tinha lido sobre os filmes “pornográficos” do Andy Warhol na Times. Eu estava bastante tempo no estúdio, então meu psiquiatra ficou muito chateado, chamou meus pais e ia me internar, então eu fugi para a Europa com o Andy e o Chuck.”
No primeiro trecho, Edie fala de como ela mesma destruiu algo que lhe foi dado, sua aparência, para lidar com coisas que estava acontecendo na sua vida. Edie parece não concordar com o que fez, sugerindo uma responsabilização pela destruição da sua beleza, o que parece característica da auto-invalidação. Já no segundo trecho, Edie fala da intervenção da sua rede, psiquiatra e família, como algo indesejado. Ela não parece invalidar seu uso de drogas, pelo contrário, sugere responsabilizar seu psiquiatra e família por planejarem algo contra ela, apenas por ter dividido uma de suas experiências.
Chegando ao fim do nosso artigo, gostaria de dizer do imenso prazer que senti ao escrevê-lo e agradecer a oportunidade de fazer parte desta linda equipe da DBT do Comporte-se. Espero que vocês tenham gostado, que vários pontos tenham sido esclarecidos e que muitas dúvidas ainda surjam. Também espero que vocês, assim como eu, tenham sentido compaixão por Edie e por suas dificuldades. Que vocês tenham validado-a. Viver na gangorra entre esses dilemas dialéticos é difícil, porém com paciência, aceitação, compaixão, tentativas graduais de mudança e cuidado, podemos ajudar na busca pela síntese que leva a uma vida que vale a pena. Até a próxima!
Referências:
http://www.revistadehistoria.com.br/secao/cine-historia/uma-garota-irresistivel
Linehan, M. (2000). Commentary on Innovations in Dialectical Behavior Therapy. Cognitive and Behavioral Practice, 7, 478-481.
McMain, S., Korman, L. M., & Dimeff, L. (2001). Dialectical Behavior Therapy and the Treatment of Emotion Dysregulation. Psychotherapy in Practive, 57(2), 183-196.
Miller, A. L., Rathus, J. H., & Linehan, M. M. (2007). Dialectical Behavio Therapy With Suicidal Adolescents. New York: The Guilford Press.
Swales, M., Heard, H. L., & Williams, M. G. (2000). Linehan’s Dialectical Behaviour Therapy (DBT) for borderline personality disorder: Overview and adaptation. Journal of Mental Health, 9(1), 7-23.