Concordemos: ser pai ou mãe nos dias de hoje não é uma tarefa fácil. Para além de todos os desafios que já existiam no passado, a geração atual também lida com tecnologia, redes sociais, smartphones e internet. Nunca na história uma geração foi tão impactada pela mediação de aparelhos eletrônicos nas relações interpessoais. Na palma das mãos, os celulares são de fácil acesso e conectados a diferentes aplicativos com diversas funções. Com a democratização do conhecimento, o acesso à informação é quase ilimitado — o que, por um lado, facilita o aprendizado, mas por outro, pode ser angustiante e paralisado.
É comum ver vídeos hoje em dia dizendo: “coma isso, não coma aquilo”, “faça exercício, mas não desse jeito”, “esse alimento não serve para isso, tem que preparar de outro modo”. No campo da parentalidade, isso acontece de maneira muito semelhante. Não é à toa que cada vez mais pais e mães têm buscado terapia, buscando ser a melhor versão de si para seus filhos, tentando evitar repetir o que viveram com seus próprios pais, e por aí vai. Mais do que nunca, pais e mães têm se preocupado com o bem-estar emocional dos filhos. Em meio a esse cenário de preocupações e tecnologia, proponho uma breve análise com reflexões sobre o segundo episódio da quarta temporada de Black Mirror, ArkAngel.
Alerta! Contém spoilers. O episódio está disponível no streaming Netflix. Caso não tenha assistido ainda, recomendo que o veja antes de continuar a leitura — e, depois, compartilhe comigo seus pensamentos!
Black Mirror é uma série antológica criada em 2011, atualmente com sete temporadas. Ela aborda o impacto da tecnologia no comportamento humano e nas relações interpessoais. O episódio em questão, lançado em 2017, conta a história de uma mãe solo, Marie, sua filha, Sara, e um dispositivo tecnológico de controle parental.
Nos primeiros minutos do episódio, vemos Marie dando à luz. Ela aparenta estar ansiosa, o que é esperado, já que o parto costuma ser um momento muito importante e ansiogênico para muitas mulheres, independentemente da via de parto escolhida. A ansiedade no período perinatal pode ser considerada saudável quando leve, indicando que a mãe está ciente das mudanças físicas, emocionais, sociais, cerebrais e hormonais que está atravessando. No entanto, se não identificada e cuidada, pode prejudicar sua saúde mental e a vinculação com o bebê¹. Ao nascer, a bebê não chora, e os médicos cochicham em volta enquanto Marie, preocupada, pergunta se está tudo bem. Embora essa cena pareça simples, ela serve de base para toda a narrativa que se desenrolará sobre preocupação e controle parental.
Duas cenas seguintes nos conduzem ao motivo que leva Marie à empresa “ArkAngel”. Na primeira, mãe e filha estão caminhando pela calçada e se deparam com um cachorro bravo, que late intensamente. A câmera foca no desconforto de Sara, mas também no de sua mãe. A segunda cena continua essa sequência: no parquinho, enquanto Marie se distrai cumprimentando outra mãe, Sara segue um gatinho e se afasta. Quando percebe o sumiço da filha, Marie se desespera. Felizmente, reencontra a menina em segurança — e, logo depois, procuram a empresa ArkAngel.
A empresa e laboratório ArkAngel parece desenvolver tecnologias voltadas à infância e à parentalidade. O produto em destaque é um implante — que leva o mesmo nome da empresa — inserido na têmpora da criança, pareado com um tablet. Por meio dele, Marie passa a monitorar sua filha em tempo real: temperatura, níveis de ferro, triglicerídeos, glicose, batimentos cardíacos, localização e até a visão da filha (acessando diretamente o que ela vê). A médica explica que há também um modo de “controle parental” — por exemplo, ativando um filtro visual que distorce ou borra imagens que causam estresse, com base nos níveis de cortisol. Com isso, Sara passa a não ver filmes violentos, nem o cachorro bravo latindo no quintal.

O que parecia maravilhoso — evitar desconfortos e controlar o que a filha consome visualmente — não as preparou para momentos difíceis. Quando o avô de Sara sofre um infarto, ela não consegue reagir ou pedir ajuda: o filtro visual está ativado. Embora ele sobreviva, anos depois falece. No enterro, Sara permanece distante da mãe, tanto fisicamente quanto emocionalmente. O rosto de Marie, borrado pelo filtro, não pode ser reconhecido.
Sabemos que pais e cuidadores, como comunidade verbal, são referências na nomeação e expressão de sentimentos.² Quando Sara vê o rosto da mãe como um borrão, isso reflete diretamente em sua forma de perceber e compreender suas próprias emoções. Ela é impedida de vivenciar, nomear e lidar com sentimentos difíceis — inerentes à experiência humana desde a infância. É importante lembrar que a maioria dos pais busca oferecer o melhor para seus filhos. Marie pode ter agido com as melhores intenções — mas as consequências não acompanham essa intenção.
Na escola, Sara sofre para interagir com colegas, especialmente quando eles falam sobre assuntos que ela não compreende por causa do implante. Um colega tenta descrever para ela o que viu, mesmo assim, ela não consegue entender. Frustrada, tenta burlar o sistema, desenhando cenas na esperança de que, assim, consiga ver algo sem o filtro. Sem sucesso, começa a se ferir com a ponta do lápis. Marie, ao receber uma notificação de alerta, corre até ela — e, pela primeira vez, Sara demonstra uma emoção: raiva, ao dar um tapa no rosto da mãe.
O que poderia ser uma oportunidade para conversar e fortalecer o vínculo entre as duas, acaba se tornando o motivo para Marie levar a filha ao psicólogo. Durante a avaliação, Sara demonstra dificuldade em reconhecer e expressar habilidades socioemocionais. Marie, do lado de fora, acompanha tudo pelo tablet — invadindo a privacidade da filha, mesmo num espaço que deveria ser seguro e confidencial. Ainda que não tenhamos muitas informações sobre a história de vida de Marie, é possível afirmar que o comportamento parental é influenciado por sua própria experiência de vida. Ela oferece aquilo que ela tem. Nesse caso, será que Marie aprendeu a falar sobre suas próprias emoções? Será que seus pais lhe deram privacidade? O que ela aprendeu sobre ser mãe?
O psicólogo informa que o ArkAngel foi proibido na Europa e será removido também dos EUA. Marie não demonstra surpresa; apenas culpa. O terapeuta orienta que ela jogue a tela fora, já que o implante é permanente. Ela desativa o tablet, mas o guarda — sem descartá-lo. Curiosamente, apesar de sua preocupação constante, Marie não sabia — ou fingia não saber — da proibição do aparelho. Até onde vai o cuidado de Marie?
Alguns anos se passaram. Sara cresce se tornando uma adolescente e parece ter se libertado do medo do cachorro, passando por ele e até oferecendo comida. No início do episódio, o avô de Sara questiona a inserção da tecnologia:
— “Lembro quando deixávamos as crianças serem crianças.”
— “Lembro de quebrar o braço porque você não comprou uma grade”, responde Marie
— “E como está o braço agora?
— “Acho que está bem,” brinca Marie, levantando o dedo do meio.
Este diálogo, assim como a cena de Sara superando o medo do cachorro, mostra que situações desafiadoras são passíveis de enfrentamento e superação. Em níveis baixos ou medianos – desde que temporários e com suporte parental (ou de outras figuras importantes) – o estresse pode ser benéfico para a criança/adolescente, uma vez que permite desenvolver e fortalecer repertório de habilidades sociais, emocionais, resolução de problemas, tomada de decisão e autoestima³.
Como qualquer adolescente que está desbravando essa frase repleta de mudanças, Sara mente para sair com os amigos e seu interesse amoroso. Quando demora a voltar para casa, Marie, preocupada, retoma o uso do tablet e vê que a filha estava fazendo sexo. Ela não a confronta, e ignora a situação. Aparentemente, Marie estava suportando a situação até receber novamente uma notificação de alerta e vê a filha usando cocaína. Com raiva, vai até o rapaz e o impede de ver sua filha. Sara busca contato por mensagens, sem retorno. Logo em seguida, Marie recebe outra notificação: sua filha está grávida. Sem conversar com ela, mistura um abortivo na vitamina da filha. No colégio, Sara passa mal, e ao ser informada pela enfermeira de que “deu tudo certo”, percebe o que ocorreu.
Essas situações são profundamente graves. Uma adolescente de 15 anos não deveria passar por isso — e todas elas têm um ponto em comum: as notificações do aparelho, que evocam respostas invasivas de Marie. Parecia que este implante e tablet são responsáveis em deixar Marie ciente o que está se passando com sua filha, diminuindo o custo de resposta do cuidado.
Como abordei no início do texto, ser pai ou mãe é extremamente difícil, pois envolve se empenhar, se esforçar, dedicar incontáveis horas em manter a criança/adolescente viva e a relação preservada. E embora elas pudessem parecer próximas elas não desenvolveram uma relação de intimidade. Para que perguntar se eu posso ter acesso a tudo que minha filha vê e faz?
Quando Sara encontra o tablet e percebe tudo o que a mãe via se desespera. Ela a confronta e a agride com o próprio aparelho, quebrando-o completamente antes de fugir de casa. Marie, ferida e chorando, fica sem notícias da filha. A decisão que parecia simples, prática e inofensiva resultou no rompimento do vínculo entre as duas.
Ao trazer o ArkAngel para suas vidas, Marie acreditou que estava fazendo o melhor para sua filha e cuidando dela. No entanto, talvez estivesse atendendo apenas a uma necessidade sua — controle, talvez? Mais do que nunca, é preciso olhar para dentro, cuidar da própria experiência e observar como nossas ações impactam o mundo ao redor. Marie percebeu isso tarde demais.
Na minha prática clínica, é comum ouvir pais e mães afirmarem o que seria melhor para seus filhos sem sequer perguntar a eles. Assim como muitos outros, Marie acreditou que tinha as respostas sem precisar ouvir. E, ao fazer isso, negligenciou aquilo que é essencial para a nossa sobrevivência: o contato humano. Embora a cada dia, uma tecnologia nova apareça, prometendo rapidez e praticidade e tantas outras coisas, acredito que ela ainda não conseguiu (e espero que nunca) substituir aquilo que mais importa: o olho no olho, o toque pele na pele e palavras sinceras que são ditas somente por alguém que vive e sente.
Por fim, se ser pai ou mãe já era difícil, na era digital exige ainda mais presença, escuta e responsabilidade — balanceando entre o limite e o cuidado. Seja como profissionais da saúde mental, pais, mães ou cuidadores, precisamos refletir: Até onde a tecnologia deve entrar em nossas vidas? Como queremos usá-la? Estamos ciente das possíveis consequências de seu uso?
REFERÊNCIAS
1 Cordás, Táki Athanássios & Fernandes, César Eduardo. Como lidar com a depressão pós-parto para pacientes e profissionais da saúde. 1.ed. – São Paulo: Hogrefe, 2023
2 Skinner, B. F. Sobre o Behaviorismo; tradução de Maria da Penha Villalobos. 10.ed – São Paulo: Cultrix, 2006
3 Valle, Tânia Martins do; Maia, Ana Cláudia Bortolozzi. Psicologia do Desenvolvimento humano e aprendizagem. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011