O suicídio é um problema de saúde pública, com mais de 720 mil mortes anuais1. Diante disso, é essencial identificar quais fatores são responsáveis por influenciar o desenvolvimento do comportamento suicida para ser possível de estudar e realizar manejos eficazes. No texto de hoje, falaremos sobre o perfeccionismo.
Há várias definições sobre o perfeccionismo2,3,4, auxiliando na compreensão dele. Entretanto, para um manejo clínico, elas são insuficientes, o que resulta em uma demanda por uma explicação mais pragmática e funcional para a prática clínica. Diante disso, Shafran, Coorper e Fairbun5 elaboraram esta definição para o perfeccionismo clinicamente relevante: “A dependência excessiva da autoavaliação na busca por padrões pessoalmente exigentes e autoimpostos, em pelo menos um domínio altamente relevante, mesmo diante de consequências aversivas” (p. 778, tradução livre).
Na página 780 do artigo, os autores realizam uma análise do padrão de manutenção do perfeccionismo clinicamente relevante:

Este fluxograma descreve um padrão típico do perfeccionismo, no qual a autoavaliação da pessoa depende excessivamente do esforço para atingir padrões pessoais. Isso a leva a (re)estabelecer tais padrões, o que desencadeia uma avaliação dicotômica do desempenho, marcada por atenção seletiva às falhas e monitoramento hipervigilante. Ela também pode esquivar de realizar a tarefa. Se não conseguir atingir aos critérios estipulados, resulta em autocrítica. Se conseguir atingi-los temporariamente, tende a reavaliá-los como insuficientemente exigentes, reiniciando o ciclo.
Existe relação entre perfeccionismo e comportamento suicida?
Na metanálise feita por Smith e colaboradores6, foram analisados mais de 45 estudos envolvendo 11.747 participantes, revelando que tanto os esforços perfeccionistas – voltados à busca por padrões elevados de desempenho – quanto as preocupações perfeccionistas – centradas no medo de cometer erros e na percepção de exigências externas – estão associados à ideação suicida. Contudo, as preocupações perfeccionistas, especialmente o perfeccionismo socialmente prescrito, caracterizado pela crença de que os outros exigem perfeição e irão desaprovar qualquer falha, mostraram-se mais fortemente associadas também às tentativas de suicídio. Esses achados indicam que certos aspectos do perfeccionismo, longe de serem características socialmente desejáveis, podem representar fatores de risco relevantes para o comportamento suicida.
Hipóteses da interação entre perfeccionismo e comportamento suicida
Para a realização de hipóteses, olharemos para o The Integrated Motivational-Volitional Model of Suicidal Behaviour7, 8. Pessoas com perfeccionismo socialmente prescrito podem sofrer mais diante de estressores relacionadas à percepção de expectativas de desempenho. Deste modo, a pessoa pode sentir fracasso (defeat, no modelo) em conflitos interpessoais. A literatura científica também identificou relação entre elevados níveis de perfeccionismo com maior sensibilidade à dor emocional9.
Outra hipótese consiste na associação entre perfeccionismo socialmente prescrito e sensação de fracasso, que leva a comparações sociais negativas. Deste modo, a pessoa tende a se avaliar de maneira inferior, resultando em uma sensação de aprisionamento (entrapment, no modelo)7.
Uma especulação possível consiste na pessoa com elevado nível de perfeccionismo ter dificuldade no estabelecimento de objetivos factíveis e na realização deles, pelos fatores descritos na Figura 1. Quando alguém com esse perfil tem dificuldade na conquista de objetivos estipulados, pode surgir a sensação de fracasso.
Conclusão
O comportamento suicida é complexo e multifatorial. O perfeccionismo é um processo psicológico que contribui para o desenvolvimento de ideações suicidas e, mais especificamente o perfeccionismo socialmente prescrito, contribui também para a ocorrência de tentativas de tirar a própria vida. Há algumas hipóteses possíveis para a explicação dessa relação. Deste modo, ressalta-se a importância de se incluir uma investigação detalhada sobre perfeccionismo em casos clínicos que apresentam o comportamento suicida, a fim de se estabelecer hipóteses funcionais na formulação de caso e no manejo clínico.
Este é um tema sensível. Se você sentir que precisa de ajuda, entre em contato com o Centro de Valorização da Vida, através do número 188. A ligação é gratuita e pode ser feita 24h por dia.
Referências e notas:
1 https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/suicide, acesso em 09 de Maio de 2025.
2 Hollender, M. H. (1965). Perfectionism. Comprehensive Psychiatry, 6, 94–103.
3 Burns, D. (1980). The perfectionist’s script for self-defeat. Psychology Today, November, 34–52.
4 Frost, R. O., Marten, P., Lahart, C. M., & Rosenblate, R. (1990). The dimensions of perfectionism. Cognitive Therapy and Research, 74, 449–468.
5 Shafran, R., Cooper, Z., & Fairburn, C. G. (2002). Clinical perfectionism: A cognitive–behavioural analysis. Behaviour research and therapy, 40(7), 773-791.
6 Smith, M. M., Sherry, S. B., Chen, S., Saklofske, D. H., Mushquash, C., Flett, G. L., & Hewitt, P. L. (2018). The perniciousness of perfectionism: A meta‐analytic review of the perfectionism–suicide relationship. Journal of personality, 86(3), 522-542.
7 O’Connor, R. C., & Kirtley, O. J. (2018). The integrated motivational–volitional model of suicidal behaviour. Philosophical Transactions of the Royal Society B: Biological Sciences, 373(1754), 20170268.
8 Para uma explicação em português sobre o IMV model, sugere-se a leitura do texto escrito pelo Tiago Zortea para o Comporte-se, disponível em: https://comportese.com/2015/09/11/suicidio-observacoes-sobre-a-tragedia-de-nao-mais-querer-viver/#google_vignette
9 Kirtley, O. J., O’Connor, R. C., & O’Carroll, R. E. (2015). Hurting inside and out? Emotional and physical pain in self-harm ideation and enactment. International Journal of Cognitive Therapy, 8(2), 156-171.