Interessado por temas como a morte, o escritor Edgar Allan Poe expressa através do poema “O Corvo” nosso desespero implacável diante de visitas que não desejamos receber. Trata-se da história de um jovem sozinho em casa que, repentinamente, começa a ouvir batidas em sua janela. Apavorado, ele busca explicações para o fenômeno que está acontecendo:
“Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
‘Uma visita’, eu me disse, ‘está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais.’”
[…]”
Ao abrir a janela, subitamente um corvo adentra sua casa. A partir daí, um diálogo é travado entre o corvo e o eu-lírico:
“[…]
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
‘Tens o aspecto tosquiado’, disse eu, ‘mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.’
Disse o corvo, ‘Nunca mais’.
[…]”
O luto é um dos muitos processos inerentes à COVID-19 e suas implicações. Estamos vivenciando múltiplas perdas (mortes de entes queridos, perda de intimidade, de companhia, de liberdade, rotina, trabalho etc) e expostos a prejuízos à saúde mental e física, o que nos coloca em risco de sobrecarga de luto.
Tendo em vista tal complexidade, o presente texto abarcará apenas o luto primário – ou seja, aquele referente a perdas por morte. Tal questão tem se tornado cada vez mais relevante, à medida em que acompanhamos um aumento exorbitante de cadáveres que se acumulam em necrotérios improvisados.
A perda súbita da vida de alguém sem a possibilidade de realização dos rituais de sepultamento devido à disseminação do vírus, bem como a transformação do corpo sem vida em um problema logístico, trazem consigo o desespero e o peso provocados por visitas indesejadas e que reafirmam o nunca mais explicitado pela morte. Nesse sentido, o que podemos aprender com a Terapia Comportamental Dialética (DBT) a respeito do enlutamento causado pelas mortes em massa no curso de uma pandemia?
A DBT foi originalmente desenvolvida para tratar indivíduos cronicamente suicidas diagnosticados com transtorno de personalidade borderline (TPB), e agora é reconhecida como o tratamento psicológico padrão ouro para essa população. Pesquisas recentes apontam que a DBT também tem se mostrado eficaz no tratamento de diversos outros quadros de desregulação emocional.
Primeiramente, terapeutas DBT não buscam resolver o luto ou acabar com a dor da perda, e sim permitir que as pessoas tenham o apoio e o acesso a ferramentas que possibilitem a reconstrução de suas vidas, o que envolve uma compreensão dialética de que os processos de mudança são caóticos e ao mesmo tempo impermanentes. Transmitir aceitação e conforto no enfrentamento de realidades tão dolorosas e incontroláveis envolve aceitar o caos provocado por tais situações.
Além disso, faz-se necessária uma avaliação prévia e cuidadosa a respeito do repertório de enfrentamento que o paciente possui e de quais habilidades serão necessárias para que ele consiga passar por esse processo experienciando menos sofrimento.
Ajudar alguém a se preparar para a possível morte de um ente querido é uma parte crítica do manejo do luto antecipatório. A tarefa do terapeuta, em alguns casos, se torna auxiliar o paciente a observar, descrever e “permitir”, de maneira acrítica, a presença de suas emoções. Envolve, também contribuir para que essa pessoa consiga manter um senso de conexão com seus valores (quem elas desejam ser) durante o período de adoecimento do ente querido, clarificando metas e objetivos de curto e longo prazo como estratégia de aproximação daquilo à vida que se quer viver.
O luto sem os devidos cuidados e assistência pode se tornar bastante complexo com o passar do tempo. Em um contexto de pandemia, essa questão se torna ainda mais relevante, tendo em vista a ausência de rituais de despedida, como o funeral, o que geralmente resulta em uma noção de sofrimento desprovido de reconhecimento, prejudicando os recursos de apoio que comumente auxiliam o processo de luto.
O aprimoramento do domínio das habilidades de enfrentamento tem sido um preditor de melhor ajuste psicológico após processos de luto. O nosso foco atencional, diante de situações de incontrolabilidade, tende a produzir comportamentos de esquiva (tanto a nível privado quanto público), que acabam desembocando em uma briga pouco efetiva com a realidade. Aceitar radicalmente a existência e as limitações impostas pelo contexto atual de pandemia envolve um processo de observação e redirecionamento constante da nossa atenção para aquilo que precisamos aceitar. Faz-se, então, necessário criar contextos terapêuticos para que os pacientes possam compreender quais pensamentos, sensações, memórias que remetem a uma não aceitação são eliciados a partir de contingências de incontrolabilidade relacionadas à morte do ente querido.
O sentimento de tristeza pode ser experienciado muitas vezes como esmagador ou até mesmo intolerável e é normal sentir vontade de escapar ou evitá-lo. Ou seja, atividades de distração, uso de álcool e outras drogas, e comportamentos com a função interina de evitar o mal estar emocional são comuns em pessoas enlutadas. A supressão de pensamentos e sentimentos a respeito do ocorrido (evitar falar sobre o assunto) também funciona como estratégia de esquiva que, utilizada de maneira ativa, apresenta pouca efetividade. Em longo prazo, esse estilo de enfrentamento (quando utilizado de maneira excessiva e desassistida) tende a desembocar em um processo que na DBT é conhecido como “luto inibido”, podendo se tornar bastante complexo com o passar do tempo.
Revisitar a história envolvendo a perda, bem como o que mudou após esse episódio, são pontos importantes no tratamento de pessoas enlutadas. Ao mesmo tempo, ao lançar mão de estratégias de exposição é importante também que o terapeuta esteja preparado para realizar o manejo de respostas emocionais intensas durante e após as sessões.
Referências
McKay, M., Wood, J. C., & Brantley, J. (2019). The dialectical behavior therapy skills workbook: Practical DBT exercises for learning mindfulness, interpersonal effectiveness, emotion regulation, and distress tolerance. New Harbinger Publications.
Selman, L. E., Chao, D., Sowden, R., Marshall, S., Chamberlain, C., & Koffman, J. (2020). Bereavement support on the frontline of COVID-19: Recommendations for hospital clinicians. Journal of Pain and Symptom Management.
Shear, M. K. (2015). Complicated grief treatment: Instruction manual used in NIMH grants. Zhai, Y., & Du, X. (2020). Loss and grief amidst COVID-19: A path to adaptation and resilience. Brain, Behavior, and Immunity.