Por mais estranho que possa parecer, não há nada de errado com os seus pensamentos. Mesmo aqueles com conteúdo associado a sofrimento e que gostaríamos de não ter, possuem uma função – assim como qualquer comportamento manifesto também a tem. Porém, como os vivemos intensamente, aqueles pensamentos que são desagradáveis ou aversivos tendem a ser vistos por nós mesmos como inimigos. E aí parece haver apenas duas opções: entregar-se ao que eles dizem e concordar fielmente (Se penso “eu sou um fracasso” então eu sou um fracasso mesmo) ou fazer de tudo para não tê-los (tentar modifica-los, desviá-los ou não pensar neles).
A primeira, inevitavelmente, levará a mais sofrimento. Pensamentos, assim como variantes memória e imagens, estão associados a linguagem, de acordo com a Teoria das Molduras Relacionais. E a linguagem parecer ter alguns contextos, tais como o de dar razões (tentativa de encontrar razões lógicas para nossos problemas), de avalição (tendência automática de categorizar acontecimentos em termos de bom ou mal), de controle (tendência de se afastar de eventos privados aversivos) e de literalidade (tendência de pensamentos tornarem-se fonte de regulação emocional e comportamental. Pensamentos são fatos) – ler mais em https://contextualscience.org/act_em_portugu_s.
E é na compreensão desses contextos da linguagem que podemos entender porque concordar fielmente com o pensamento leva a mais sofrimento: ao considerar pensamentos fatos literais (se penso, então é), tendemos a classifica-los como bons ou ruins, justificar a existência deles e, assim como fazemos com o mundo fora de nós mesmos, tentamos controla-los. O problema é que, diferente de eventos externos a nós que podemos simplesmente nos afastar e, assim, nosso comportamento pode não ocorrer, pensamentos podem ser desencadeados por outros eventos privados (pensamentos, emoções) e esses eventos estão com a gente onde a gente for (diferente de eventos externos que, se nos afastarmos, realmente nos afastamos). Então, literalmente concordar com o pensamento “sou um fracasso” pode imobilizá-lo(a) a fazer algo diferente do que o próprio pensamento diz.
Aí entra a segunda opção: tentar controla-los, modifica-los, não tê-los. Faz muito sentido querer isso. Afinal, é o que fazemos – e muito bem – com o mundo externo a nós: controlamos e modificamos o ambiente e somos controlados e modificados pela consequência apresentada. Por que, então, não aplicar isso ao nosso pensamento? O primeiro problema aqui é querer mudar a frequência ou intensidade de uma resposta (no caso o pensamento) através da modificação da própria resposta. A análise experimental do comportamento já nos mostrou que a modificação de uma resposta é possível pela manipulação do que a antecede ou de sua consequência. E como fazer isso com o pensamento? Parece um pouco difícil, não? É possível questionar o pensamento e enfraquecer o contexto de literalidade dele, o que pode nos trazer alívio no sofrimento, mas os demais permanecem (dar razão, avaliação e controle). Seguindo esse caminho (controlar pensamentos), sejamos todos bem-vindos ao ciclo do controle aversivo! Funciona muito bem, mas terás que fazer isso sempre para que continue funcionando. E mais do que isso, tentar controlar, modificar ou não ter pensamentos significa que parte do que acontece contigo não é válido. Mas vamos analisar um pouco sob a ótica da análise funcional: se pensamentos existem, eles têm uma função adaptativa para nós. Decidir que pensamentos avaliados como negativos devem ser trocados é tão arbitrário quanto decidir que pensamentos avaliados como positivos devam permanecer como são.
Lembra-se: o problema não é o pensamento, mas a função dele na nossa vida. Metaforicamente, considere a seguinte situação: suponha que você é o motorista de um carro, está dirigindo próximo das 10h em uma avenida movimentada da sua cidade e você vê um semáforo logo mais adiante em que a luz acesa é a vermelha. Se você é motorista, você já aprendeu que a luz vermelha acesa no semáforo indica que você deve parar o carro, que se seguir você poderá ter consequências ruins. Então, com a luz vermelha, o carro parou. Pergunto: quem parou o carro? A luz vermelha do semáforo com o seu significado ou você que é o(a) motorista? Nessa metáfora parece claro que quem para é o(a) motorista. Agora, e se você passasse por essa mesma avenida, mas às 3h da madrugada, estando ela deserta e escura, e você vê o semáforo com a luz vermelha acesa novamente. Você pararia o carro? A luz vermelha teria mudado o seu significado? Provavelmente você não pararia o carro, mesmo com a luz vermelha indicando que, se você seguisse, poderia ter consequências ruins. E por que isso? Porque um semáforo é apenas um semáforo. Ele indica “algo” a ser feito (parar o carro ou seguir andando, de acordo com a luz que está acesa), mas quem faz esse “algo” é o(a) motorista. Não é o semáforo que, literalmente, para ou faz o carro andar. É o motorista. O mesmo pode acontecer na relação entre nós e nossos pensamentos. Pensamentos são como semáforos no nosso caminho. Tem suas cores e suas funções, mas quem decide sobre o andar do carro é o(a) motorista.
E é aí que entra um terceiro caminho de lidar com pensamentos: notar os pensamentos (linguagem, na verdade) como eles realmente são: pensamentos em curso. Considerar que não há nada de errado com o pensamento em si, não precisando modifica-lo ou controla-lo, apenas deixando-o ir, muda a função dele nas nossas vidas. Notar que pensamentos são apenas palavras com significado, não é algo fácil. Mas isso trabalha diretamente com os contextos da linguagem, apresentados anteriormente, de uma forma diferente: a literalidade é enfraquecida e as necessidades de controle, de dar razão e de avaliação (mesmo dos pensamentos aversivos) tornam-se desnecessárias. O sofrimento gerado pela tentativa de mudar os contextos da linguagem fica sem fundamento ao, gentilmente, aceitarmos que linguagem e pensamentos são assim mesmos. E isso nos abre espaço na nossa vida para dirigirmos ações, não para confrontar ou aniquilar esses eventos privados, mas para aquilo que é importante na nossa vida, para os nossos valores. Isso é o que chamamos de controle apetitivo (ou atrativo).
São três caminhos possíveis de convivermos (ou não) com nossos pensamentos. A ACT apresenta o terceiro como uma possibilidade para desenvolver a flexibilidade psicológica. Você estaria interessado em saber mais sobre isso? Então nos vemos no próximo artigo, em que falaremos sobre desfusão cognitiva. Até lá.