Recentemente, conversando com uma aluna de Pedagogia cursando a disciplina de Psicologia da Educação II, que já havia cursado a disciplina de Psicologia da Educação I, a ouvimos dizer literalmente: “Mas eu pensava que Behaviorismo era aquela coisa horrível de ‘Laranja Mecânica’ que a gente estudou o ano passado”. A aluna havia sido apresentada à Análise do Comportamento como abordagem geradora de aplicações educacionais, clínicas ou outras, similares às aplicações aversivas encontradas no filme dirigido por Stanley Kubrick. O ensino da abordagem (texto didático e curso) com referência a equívocos, imprecisões e similares não é exatamente uma novidade (YOUSEF, 1992; TODD & MORRIS, 1983; MORRRIS, 1985; MIRALDO, 1985; NÓBREGA e GUIMARÃES, 2010). Linguagem e terminologia e até mesmo aspectos históricos de desenvolvimento da abordagem também tem sido mencionados como fatores produtores de equívocos sobre a abordagem como a presença de equívoco ou de elementos que facilitariam a sua ocorrência (DEITZ & ARRINGTON, 1983; HICKEY, 1994; FOXX, 1996; CARMO e BATISTA, 2003 e CRUZ, 2010).
Existem inúmeros fatores já associados pela literatura à produção e manutenção de mitos acerca da abordagem, fatores muitas vezes desconhecidos ou simplesmente desconsiderados em análises superficiais sobre o fenômeno. Analistas do comportamento (se ainda podemos assim nos denominar livremente) ou aspirantes tendem a afirmar, em análises mais intuitivas que empíricas ou teóricas, que os mitos se perpetuam por desconhecimento da abordagem (conhecimento inacurado, parcial). Mesmo a literatura tende a se referir em maior quantidade a esse fator em detrimento a outros (OTTA et aliae, 1983; WOOLFOLK, WOOLFOOLK E WILSON, 1977; MORRIS, 1985; YOUSEF, 1992; LIMA e GUIMARÃES, 2010, NÓBREGA e GUIMARÃES, 2010; NAKAMURA, 1997; FRANÇA, 1997; GUIMARÃES, 2003; JUSTI e ARAÚJO, 2004; ). Sem desmerecer tal afirmação, não podemos deixar de dizer que as coisas podem ser assim em alguns casos, mas estão longe de serem tão simples.
Muitos intelectuais em Psicologia discordam de pressupostos Behavioristas Radicais e Analítico-Comportamentais por razões que passam longe do desconhecimento. As pessoas podem conhecer e mesmo assim apresentar divergências entre pressupostos teórico-filosóficos, metodológicos da Análise do Comportamento e valores do próprio indivíduo e/ou da cultura em que nos inserimos (RODRIGUES, 2000, 2002, 2011). Concepções de homem (dualista/monista), de comportamento e de liberdade são os exemplos mais comuns.
Isso equivale a dizer que não existe desconhecimento? Obviamente não, ou a nossa aluna citada como exemplo inicialmente, não teria tido a reação mencionada: a de alguém entrando em contato com algo desconhecido, apresentado de forma possivelmente deturpada e envolto em discussão pejorativa num primeiro momento. Mas não é possível dizer que todas as discordâncias sejam motivadas por desconhecimento. Diversos autores apresentam como fatores de discordância a presença de diferenças filosófico-espistemológicas (OTTA et aliae, 1983; SILVA, 1987; HICKEY, 1987; MIGUEL e NAKAMURA, 1996; MALOTT, 1996, CRUZ, 2010), discordâncias metodológicas (MIRALDO, 1985; CARRARA, 1998/2005; CARMO e BATISTA, 2003) e outras (HICKEY, 1994; FOXX, 1996).
Mesmo existindo conhecimento poderia existir deturpação? Sim, seria possível e o mesmo exemplo pode estar relacionado a esse fator (ou não). Porém, nesse caso, seria necessária a existência de outro conjunto de fatores que não apenas os fatores relacionados a desconhecimento e a discordância: A “má fé”. Em muitos casos acreditamos que é possível sim que o ensino e a divulgação do Behaviorismo Radical/Análise do Comportamento seja feita intencionalmente de modo deturpado, por razões variadas, como manutenção de posições de poder, desonestidade intelectual, ausência de ética profissional, arrivismo desenfreado etc.
Além do fato de que o desconhecimento não é sempre o principal fator envolvido nos mitos acerca da abordagem, existe referência na literatura a estudos baseados em dados teóricos e empíricos mencionando a existência de outro conjunto de fatores relacionados à produção e manutenção de mitos acerca da abordagem: os relacionados à própria comunidade de analistas do comportamento. Realizamos um estudo sobre o tema, com dados de pesquisa obtidos com sujeitos bastante conhecedores da abordagem e mesmo assim não analistas do comportamento (RODRIGUES, 2000). Tal estudo embasou, já há 15 anos, a afirmação de que os analistas do comportamento são, em parte, e por inúmeras razões, responsáveis pelo fenômeno, tendo gerado resultados publicados também posteriormente (RODRIGUES, 2002 e 2011).
Em reedição da obra original de 2002, acrescentamos:
Os fatores ligados aos analistas do comportamento seriam (não conclusivamente) os relacionados a uma ausência de estratégias ou a estratégias inadequadas para lidar com as deturpações correntes. Em suma, a uma deficiência no gerenciamento da dificuldade de interagir com o público externo. A este respeito ressaltamos, nesta atualização, a sugestão de alguns autores como Mallot (1996) de criação de uma tecnologia de disseminação/divulgação da tecnologia da análise do comportamento (com ênfase aplicada).
Também incluímos aqui outra dificuldade, relativa ao público interno ou aos próprios pares, que se manifesta em relação a diversos aspectos, como certa intolerância à atuação aplicada ou à linguagem utilizada por outros analistas do comportamento, que se manifesta em diferentes setores como o da possibilidade de “traduzir” linguagem técnica para outros públicos que não analistas do comportamento; generalização de conhecimentos obtidos em pesquisa básica para contextos sociais, com pesquisa considerada insuficiente com humanos em ambiente complexo; críticas à possibilidade de aplicação da análise do comportamento no estado atual em que encontram os conhecimentos ao mesmo passo, contraditoriamente, em que os mesmo críticos ou outros mencionam a desconsideração de avanços (especialmente no campo verbal, na era Pós-Skinner) e o atrelamento a realizações passadas; excesso de auto reconhecimento ou auto-reforçamento em detrimento da busca de aumento do pequeno número de analistas do comportamento atuando em diferentes contextos (ao invés de alguns poucos contextos como atualmente) e sendo reconhecidos como cientistas básicos e aplicados por sua atuação em relação às mais diversas necessidades da população, pela própria comunidade, por outras comunidades acadêmicas e pelo público em geral (RODRIGUES, 2011; p. 81-82).
Não nos surpreende tanto que não se tenha efetuado mais pesquisas acerca de cada um desses fatores, quanto nos surpreende a existência de afirmações superficiais sobre o tema, agora abarcando sob forma de equívoco, a questão da “acreditação”. É mais que infeliz a associação da origem e manutenção dos “mitos” à suposta ausência de uma “certificação de analistas do comportamento”. Nenhum dos fatores associados à produção de mitos sobre a abordagem pode justificar, de forma séria, a associação dos mesmos à ausência ou presença de “certificação”.
Certificados os analistas do comportamento ou não, os alunos de Pedagogia como a nossa aluna, citada acima, continuarão sendo ensinados pelos mesmos profissionais que estão longe de serem, mesmo que em hipótese por absurdo, todos analistas do comportamento. A maior parte deles sequer tem formação em Psicologia e quando tem, geralmente optam por abordagens como a teoria histórico-cultural e a piagetiana. Ao contrário, o número de analistas do comportamento OBVIAMENTE tenderá a diminuir e não a aumentar. E já somos poucos, muito poucos.
A pós Graduação no Brasil aumentou desde sua criação e com isso aumentou também o número absoluto de analistas do comportamento formados, mas e em termos absolutos e em comparação com o universo da pós-graduação brasileira? O que representa em avanço real esse número? Muitos anos depois continuamos sofrendo dos mesmos males, como a ausência de estratégias ou estratégias inadequadas para lidar com equívocos, nos limitando a notas quando absurdos ocorrem, ou seja, “apagando ou tentando apagar incêndios” (MORSE e BRUNS, 1983; MORRIS, 1985; FOXX, 1996, MOXLEY, 199; MALLOT, 1996). Aumentam as dificuldades relativas ao público interno ou aos próprios pares, incluindo características pessoais dos analistas do comportamento relacionados a habilidades sociais. Existem divergências e críticas internas à atuação dos analistas do comportamento em diversos níveis e em relação a diversos fatores anteriormente mencionados (MORRIS, 1985; MALOTT, 1996; HAYES, 2001; CARRARA, 2005; CARMO e BATISTA, 2003; JUSTI e ARAÚJO, 2004; CRUZ, 2010; RODRIGUES, 2011).
Continua insuficiente o número de analistas do comportamento que atuam igualmente, em poucos contextos, geralmente ensino superior e pesquisa na graduação e pós-graduação, distúrbios de desenvolvimento e clínica. Existe ainda um pequeno número de posições de trabalho para analistas do comportamento, seja em consultoria, direção ou gerência, provavelmente como consequência da ausência de esforços da comunidade para aumentar tais números (MALOTT, 1996; HAYES, 2001; RODRIGUES, 2011).
Além disso, existe um baixo impacto da análise do comportamento por ausência de projeto de disseminação/divulgação, de apoio e de auxílio ao uso da análise do comportamento pós-formação e inserção em contingências que geralmente punem ou extinguem inciativas “analítico-comportamentais”. Não se analisam as variáveis que controlam os estudantes bem sucedidos, com formação de boa qualidade na expansão ou ausência de expansão da aplicação, em contextos aplicados fora da sala de aula, “extramuros” da universidade. Existe uma ausência de inserção e projetos que demonstrem que a tecnologia analítico-comportamental funciona nas mãos do usuário final (seja ele um analista do comportamento ou não).
Em outras palavras, passividade dos analistas do comportamento e ineficácia em encorajar alunos e ex-alunos, bem como população em geral a utilizar e aderir, nos mais diversos contextos ao que se denomina “tecnologia comportamental”, ou análise aplicada do comportamento (ex.: MALLOT, 1996) (RODRIGUES, 2011, p. 82-83).
Por último, mas não menos importante, podemos afirmar que existe um número insuficiente de bons textos e manuais que possam ser amplamente divulgados em análise do comportamento, inteligíveis aos mais variados públicos e voltados às mais diversas áreas de conhecimento e atuação, com termos técnicos corretos e fiéis aos princípios da abordagem (CARMO e BATISTA, 2003; RODRIGUES, 2011).
A pergunta que não quer calar no momento é: Até que ponto queremos superar os mitos, as dificuldades apresentadas e combater os fatores relacionados à sua produção e manutenção tendo, como consequência, o aumento na quantidade e no alcance dos analistas e da análise do comportamento? A nossa experiência, passados 15 anos da confecção e publicação da pesquisa original anteriormente mencionada (RODRIGUES, 2000, 2002, 2011) tende a responder que o interesse é muito reduzido e que iniciativas como a da “Acreditação”, tendem a dificultar ainda mais o alcance desse objetivo, por induzirem à simplificação da análise de fatores envolvidos na produção do fenômeno, bem como à associação de falsas causas ao mesmo. A defesa dessa iniciativa apresenta ainda incompreensíveis reações autoritárias desqualificatórias a pontos de vista diferenciados (BANACO, 2015), conforme o autor:
Ninguém (será que alguém?) não ficou sabendo (hummmmm…. espreita de novo? Devo estar ficando paranoico…)…
Usa desse processo quem quer. Contribui com esse processo quem, de fato, quer ver uma Análise do Comportamento fortalecida, ativa e reconhecida. Não gostam deste? Contribuam para o desenvolvimento dele ou façam o seu…
Pode ser que não valha nada… mas agora parece que começou a importar PARA quem não se importava … ou haveria ainda gente à espreita? Essa paranoia ainda vai acabar comigo…
Sim, talvez se trate de paranoia do autor, ou simplesmente desqualificação da discordância alheia. Discordâncias podem e devem se manifestar a qualquer tempo. Não existe data para isso e permita-nos mais uma discordância: Acreditação não é o único caminho para o reconhecimento e fortalecimento da Análise do Comportamento e talvez nem seja o melhor. Pelo conjunto de razões expostas anteriormente, embasadas em sério exame de dados de pesquisas teóricas e empíricas, nada indica que seja. Pode fortalecer determinados grupos, mas não a Análise do Comportamento. O nosso trabalho sempre esteve à disposição da comunidade, antes e depois de quaisquer assembléias, e é dela conhecido; portanto, pelo menos no que nos cabe, a hipótese da “perseguição” está descartada.
REFERÊNCIAS
BANACO, R. (2015). Sobre Acreditação, Contribuição e Paranóia. http://abpmc.org.br/arquivos/publicacoes/sobreacreditacao.pdf
CARMO, J. S. C e BATISTA, M. Q. G. (2003). Comunicação dos conhecimentos produzidos e análise do comportamento: uma competência a ser aprendida? Estudos de Psicologia, 8 (3), p. 499-503.
CARRARA, K. (1998/2005). Behaviorismo Radical: Crítica e Metacrítica. Marília: UNESP Publicações e São Paulo: FAPESP.
CRUZ, R. N. da (2010). Possíveis relações entre o contexto histórico e a recepção do Behavriorismo Radical. Psicologia: Ciência e Profissão. 30 (3), p. 478-491.
DEITZ, S. M. e ARRINGTON, R. L. (1983). Factor´s confusing language use in the analysis of behavior. Behaviorism, 11, p. 117-132.
FOXX, R. M. (1996). Translating the covenant: The behavior analyst as ambassador and translator. The Behavior Analyst, 19 (2), p. 147-161.
FRANÇA, A. C. C. (1997). A Análise Comportamental aplicada à educação: um caso de deturpação acerca do pensamento de B. F. Skinner. Psicologia da Educação, 5(2).
GUIMARÃES, R. P. (2003). Deixando o preconceito de lado e entendendo o Behaviorismo Radical. Psicologia: Ciência e Profissão, 23 (3), p. 60-67.
HAYES, S. C. (2001). The greatest dangers facing behavior analysis today. Behavior Analysis Today, Spring, (2) 2, p. 61-63.
HICKEY, Philip (1994). Resistance to Behaviorism. The Behavior Therapist, Summer, p. 150-152.
JUSTI, F. R. R e ARAÚJO, S, F. (2004). Uma avaliação das críticas de Chomsky ao Verbal Behavior à luz das réplicas Behavioristas. Psicologia Teoria e Pesquisa. Set.-Dez., 20(3), p. 267-274.
LIMA, Camila e GUIMARÃES, Rodrigo (2010). A concepção de professores do curso de Psicologia de uma universidade particular acerca do Behaviorismo Radical: Possíveis determinantes e consequências. Não publicado.
MALOTT, Richard W. (1996). Comments on the dissemination of Behavioral Techonology. Japanese Journal of Behavior Analysis, 10 (1), p.60-65.
MIGUEL, C. e NAKAMURA, M. F. (1996). A concepção do aluno de Psicologia da PUC-SP sobre o Behaviorismo Radical e seus possíveis determinantes. Programa de Iniciação Científica CNPq PUC-SP. Orientação da Dra. Maria Amália Pie Abib Andery. Não publicado.
MIRALDO, C. M. V. (1985). Conhecimento e crenças de estudantes de Psicologia acerca da Análise Experimental do Comportamento. Dissertação do Mestrado em Psicologia Experimental do IPUSP. Orientação da Dra. Carolina M. Bori.
MORRIS, E. K. (1985). Public Information, dissemination and Behavior Analysis. The Behavior Analyst, (1) 8, p. 95-110.
MORSE, L. A. e BRUNS, B. J. (1983). Nurturing Behavioral repertoires within a Nonssuportive environment. The Behavior Analyst, (1) 8, p. 95-110.
NAKAMURA, M. F. (1997). O conhecimento do aluno sobre o Behaviorismo radical e sua concepção de Psicologia. Monografia de conclusão do curso de Psicologia da PUC-SP. Orientação da Dra. Tereza M. P. Sério.
NÓBREGA, F. e GUIMARÃES, R. (2009). A Concepção de alunos do curso de Psicologia de uma Universidade particular acerca do Behaviorismo Radical: Possíveis determinantes e consequências. Não publicado.
OTTA, E.; LEME, M. A. V. S.; LIMA, M. P. P.; SAMPAIO, S. M. R. (1983). Profecias auto realizadoras em sala de aula: expectativas de estudantes de Psicologia como determinantes não intencionais de desempenho. Psicologia, 9 (2), p. 27-42.
RODRIGUES, M. E. (2000). Identificação de fatores relacionados à oposição ao Behaviorismo radical: Análise do relato verbal de ex-analistas do comportamento. Dissertação de Mestrado em Psicologia da Educação na PUC-SP. Orientação da Profa. Dra. Melania Moroz.
RODRIGUES, M. E. (2002). Behaviorismo Radical: Mitos e Discordâncias. Cascavel: EDUNIOESTE.
RODRIGUES, M. E. (2011). Mitos e Discordâncias: Análise de relatos de ex-analistas do comportamento. Santo André: ESETec.
SILVA, M. T. (1987). Aquém da liberdade: Um problema no ensino de Análise Experimental do Comportamento. Psicologia, 13 (1), p. 5-10.
TODD, J. T. e MORRIS, E. K. (1983). Misconceptions and Miseducation: Presentations of Radical Behaviorism in Psychology Textbooks. The Behavior Analyst. 6(2), p. 153-160.
WOOLFOLK, A. E.; WOOLFOOLK, R. L. e WILSON, T. (1977). A Rose by any other name (…): Labeling Bias and Attitudes Toward Behavior Modification. Consulting and Clinical Psychology, 45, p. 184-191.
YOUSEF, Jamal (1992). Arabic´s Student´s understanding of Skinner´s Radical Behaviorism. Psychological Reports, 71 (1), p. 51-56.