Suicídio, bets e apostas de quotas fixas no Brasil: o que sabemos e por que ocorrem?

Em 2018, a Lei 13.756/2018 estabeleceu a legalização de apostas de quotas fixas de eventos esportivos. Cinco anos depois, a Lei 14.790/2023 foi sancionada, os chamados jogos online de apostas de quota fixa, como bets, passaram a ser regulamentados¹. Após isso, houve um investimento maciço por cassinos e empresas de apostas esportivas na mídia, com estas chegando a se tornar as principais patrocinadoras de esportes como o futebol. No texto de hoje, exploraremos as implicações das apostas esportivas de quota fixa legalizadas no Brasil para muitos(as) apostadores(as).

No mês de Agosto de 2024, o Banco Central divulgou um relatório identificando que mais de 5 milhões de beneficiários do Bolsa Família destinaram 3 bilhões de reais para casas de apostas virtuais2. No documento, constatou-se que o perfil etário consistia entre 20 e 30 anos majoritariamente. O órgão também disse que é “(…) razoável supor que o apelo comercial do enriquecimento por meio de apostas seja mais atraente para quem está em situação de vulnerabilidade financeira”, trazendo à tona um problema socioeconômico que é explorado por casas de apostas para aumentar sua receita.

Como a legalização de apostas de quotas fixas é relativamente recente no Brasil, recorreremos a experiências internacionais para compreender os efeitos da presença dela na sociedade de maneira permitida. Em países com maior diversidade de jogos legalizados, como a Suécia e a França, os custos decorrentes de problemas com apostas superam o imposto e contribuição arrecadados pelas empresas do segmento3, 4. No país escandinavo, observou-se um aumento de 1,8 vezes em risco de mortalidade e de 15 vezes no risco de morte por suicídio por pessoas que possuem comportamento problemático de jogo, quando comparados com a população geral5. O risco acentuado de alguém com uso compulsivo de plataformas de apostas tirar a própria vida foi identificado em outros países como Itália (93,7 vezes maior, quando comparado com a população geral)6 e no Reino Unido com jovens entre 16 e 24 anos (9 vezes maior em homens e 4,9 vezes maior em mulheres)7. Embora tais dados mostrem forte associação entre o jogo patológico e o risco de tirar a própria vida, não explicam o como nem o(s) porquê(s) disso ocorrer.

Por que apostas podem levar ao suicídio?

Buscando responder a essa pergunta, em 2022, Marionneau e Nikkinen conduziram uma revisão sistemática de estudos qualitativos sobre suicídio relacionados a comportamento problemático de jogo e processos psicológicos que levam alguém a tirar a própria vida – chamado de suicidalidade pelos autores8. Na revisão, o critério de inclusão consistiu em estudos com evidência qualitativa empírica sobre suicídio relacionado a jogos de apostas feitos de maneira compulsiva e problemática. Foram analisados 20 estudos.

Notou-se a presença de dois fatores centrais que explicam a associação entre apostas e suicídio: endividamento e vergonha. Quando pessoas com problemas relacionados a jogos criam dívidas insustentáveis de serem quitadas, a probabilidade de surgirem pensamentos de tirar a própria vida aumentam significativamente. Utilizando o Integrated Motivational-Volitional Model of Suicidal Behaviour9  como instrumento para subsidiar a análise, podemos fazer uma hipótese funcional de que, nesse tipo de contexto, pode surgir a sensação de aprisionamento (entrapment, no modelo). Como é comum encontrarmos relatos de pessoas com comportamento problemático de jogo que pedem empréstimos sucessivos a familiares e pessoas próximas como pontos iniciais dessa construção de dívida até chegar no ponto dela não ser gerenciável, a sensação de ser um fardo também pode emergir (burdensomeness, no modelo). Também podemos especular que a rede de apoio da pessoa em questão pode esvanecer conforme ela continua perdendo dinheiro em apostas, resultando em perda de suporte social (social support, no modelo). Sobre a vergonha, encontramos associações na literatura entre ela e pensamentos suicidas, como identificado em Ecological Momentary Assessment10, que consiste em capturar a ocorrência de dados psicológicos ou comportamentais assim que eles ocorrem, sem recorrer à memória retrospectiva, como geralmente é falado em uma sessão de psicoterapia ou em entrevistas clínicas.

O que a Psicologia pode fazer?

A psicologia precisa se capacitar para lidar com esse problema de saúde pública que tem apresentado trajetória de crescimento acelerado nos últimos anos. Para tal, medidas importantes consistem em:

  • Integração de tratamentos empiricamente sustentados para transtorno do jogo na grade curricular em graduações de Psicologia;
  • Inserção de tratamentos empiricamente sustentados para avaliação e manejo do comportamento suicida na grade curricular em graduações de Psicologia.
  • Ações de psicoeducação com caráter preventivo em escolas, universidades e mídias sociais, buscando combater estigmas e auxiliando jogadores(as) a procurar ajuda;
  • Pressão enquanto classe para mobilização política para que estruturalmente não tenhamos uma cultura e legislação voltada para leniência frente à divulgação e à existência de casas de apostas, isentando-as dos malefícios causados à população;

Referências

1 https://www.gov.br/secom/pt-br/fatos/brasil-contra-fake/noticias/2024/09/regulamentacao-da-legislacao-de-bets-torna-atividade-mais-segura-no-brasil, acesso em 07 de Junho de 2025.

2 https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2024/11/27/roubos-suicidios-e-assassinatos-casos-extremos-do-vicio-em-apostas.htm, acesso em 08 de Junho de 2025.

3 Hofmarcher T, Romild U, Spångberg J, Persson U, Håkansson A. The societal costs of problem gambling in Sweden. BMC Publ Health 2020;20(1):1e14.

4 Miera M, Massin S, Eroukmanoff V. The social value of gambling: surplus es timates by gambling types for France. Eur J Health Econ 2023:1e13.

5 Karlsson A, Håkansson A. Gambling disorder, increased mortality, suicidality, and associated comorbidity: a longitudinal nationwide register study. J Behav Addict. (2018) 7:1091–9. doi: 10.1556/2006.7.2018.112

6 Pavarin R, Fabbri C, Fioritti A, Marani S, De Ronchi D. Gambling disorder in an Italian population: risk of suicide attempts and associated demographic-clinical factors using electronic health records. J Gambl Stud. (2021):1–14.

7 Wardle H, McManus S. Suicidality and gambling among young adults in Great Britain: results from a cross-sectional online survey. Lancet Public Health. (2021) 6:e39–49.

8 Marionneau, V., & Nikkinen, J. (2022). Gambling-related suicides and suicidality: a systematic review of qualitative evidence. Frontiers in psychiatry13, 980303.

9 O’Connor, R. C., & Kirtley, O. J. (2018). The integrated motivational–volitional model of suicidal behaviour. Philosophical Transactions of the Royal Society B: Biological Sciences373(1754), 20170268.

10 Winstone, L., Heron, J., John, A., Kirtley, O. J., Moran, P., Muehlenkamp, J., … & Mars, B. (2024). Ecological Momentary Assessment of Self-Harm Thoughts and Behaviors: Systematic Review of Constructs From the Integrated Motivational-Volitional Model. JMIR Mental Health11, e63132.

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Escrito por Murilo Vasques Buso

Graduação em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Qualificação Avançada em Terapia Analítico-Comportamental pelo Paradigma - Centro de Ciências e Tecnologia do Comportamento. Atuou como terapeuta no Laboratório de Terapia Comportamental Dialética (DBT-LAB).

A busca por uma atividade clínica comportamental estritamente funcional