O Canadian Network for Mood and Anxiety Treatments (CANMAT) é uma rede de especialistas acadêmicos e clínicos que trabalham com saúde mental. O principal objetivo da inciativa é fornecer informações científicas atualizadas, diretrizes para tratamento e atividades educativas para profissionais da saúde mental, em especial aqueles que trabalhem com pacientes com transtornos de humor e ansiedade. Além de informações para os profissionais, a organização também elabora e fornece materiais gratuitos com informações claras e úteis sobre sintomas e tratamentos para pacientes e suas famílias. Como se trata de uma instituição canadense, as informações estão em inglês e francês, mas fica a sugestão de acesso: https://www.canmat.org/
Uma equipe de psiquiatras e psicólogos do CANMAT recentemente, em maio de 2024, publicou uma atualização das diretrizes clínicas, um material amplamente consultado e utilizado por profissionais do mundo todo. Essa atualização é crucial, uma vez que incorpora as evidências mais recentes e fornece novas recomendações para a avaliação e tratamento dos transtornos.
As guidelines ou diretrizes CANMAT são amplamente reconhecidas por fornecerem recomendações baseadas em evidências que ajudam a padronizar e melhorar o cuidado clínico de pacientes com transtornos psiquiátricos. Desde a última publicação em 2016, houve avanços significativos na pesquisa sobre transtornos do humor, justificando a necessidade de uma atualização, que incorpora dados coletados entre 2015 e 2023. As diretrizes recém-publicadas enfatizam uma abordagem de cuidado personalizada, que considera as necessidades, preferências e histórico de tratamento de cada paciente.
No presente artigo, destacaremos especificamente as recomendações relacionadas à prevenção do suicídio, um tema de suma importância para os profissionais da saúde mental.
Mas, antes de entrarmos nas especificidades do manejo do suicídio, vale ressaltar alguns aspectos metodológicos e estruturais das diretrizes, bem como analisar alterações realizadas desde a última publicação. O formato de perguntas se mantém e os autores destacam que isso se dá porque os clínicos, usuários do material, relatam se beneficiar desse formato prático e direto. Para exemplificar a estrutura e ilustrar quais questões principais são respondidas a partir da leitura das diretrizes, aqui estão as oito principais perguntas norteadoras presentes no material:
· Pergunta 1. Quais são as questões importantes para a avaliação e diagnóstico?
· Pergunta 2. Quais são os princípios para o manejo da depressão?
· Pergunta 3. Como os tratamentos são selecionados?
· Pergunta 4. Qual é o papel das intervenções digitais de saúde (DHIs)?
· Pergunta 5. Como o tratamento é monitorado?
· Pergunta 6. O que deve ser feito quando um paciente melhora?
· Pergunta 7. O que deve ser feito quando um paciente não melhora?
· Pergunta 8. Quando os tratamentos de neuromodulação devem ser usados?
Conforme dito anteriormente, a principal mudança é a ênfase dada pelos autores em um modelo de cuidado clínico centrado nas necessidades do paciente, o que eles chamam de personalized care, ou cuidado personalizado. E além disso, uma orientação destacada ao longo do material é a relevância da tomada de decisão em parceria com o cliente e não de maneira unilateral, em que o psicólogo ou psiquiatra excluiria a perspectiva do paciente nas decisões sobre seu tratamento.
Outra mudança que os próprios autores destacam, em comparação à publicação anterior, é que foram incorporadas intervenções de estilo de vida, como exercícios, dieta e higiene do sono como componentes dos planos de tratamento de pacientes com quadros de transtorno do humor e ansiedade.
Em termos de metodologia, o processo de revisão de evidências focou em meta-revisões de revisões sistemáticas e meta-análises publicadas desde 2015 (data final da pesquisa de literatura para as diretrizes CANMAT 2016), mas, reconhecendo as limitações desse formato, também foram consultados Ensaios Clínicos Randomizados, quando os especialistas julgavam necessário.
Ao escrutinar as evidências, portanto, o que eles encontraram que pode ajudar os psicólogos nos casos em que há risco de suicídio?
Vale ressaltar que eles não abordam a suicidalidade com um olhar transdiagnóstico. Para entender mais, leia: Artigo sobre a suicidalidade como um fenômeno transdiagnóstico
Na verdade, eles enfatizam a relação do suicídio com transtornos de humor, justificando com o argumento a seguir: “O risco de tentativas de suicídio em indivíduos com transtorno depressivo maior (TDM) é cinco vezes maior do que na população em geral. No Canadá, há cerca de 15 mortes por suicídio para cada 100.000 homens, em comparação com cerca de 5 mortes para cada 100.000 mulheres, representando mais de 4.000 mortes por suicídio por ano. Dentre aqueles que morrem por suicídio, cerca de metade sofre de TDM, a doença mental mais prevalente nesses indivíduos. Portanto, avaliar o risco de suicídio e desenvolver e implementar um plano de segurança personalizado são prioridades para o gerenciamento do risco em TDM. “ [tradução da autora]
Nesse sentido, a crítica é que ao tratar o comportamento suicida como consequência de um quadro diagnóstico, como fazem com o TDM, compromete-se a formulação de estratégias interventivas necessárias em cada caso. Portanto, apesar de o documento enfatizar a importância de um cuidado individualizado, de acordo com as necessidades de cada paciente, essa perspectiva de que o comportamento suicida seria uma consequência de um quadro depressivo acutizado, pode não ser a forma mais precisa de compreender a suicidalidade.
A pretensão dos autores é fornecer um material relativamente sintético e de usabilidade prática para os clínicos, conforme podem observar a seguir.
Fase do Tratamento | Duração da fase | Objetivos | Ações |
Aguda | Aproximadamente 8-16 semanas, até remissão dos sintomas | Avaliar e manejar a segurança do paciente | Avaliação do risco de suicídio Definição do setting terapêutico – clínico ou hospitalar Desenvolver um Plano de Segurança |
Tratar visando remissão dos sintomas e melhoria funcional | Estabelecer vínculo e aliança terapêutica Usar psicoeducação e ensinar estratégias de autogerenciamentos Selecionar e implementar tratamentos baseados em evidências Monitorar tolerabilidade, adesão, resposta e efeitos colaterais. | ||
Manutenção | Aproximadamente 6–24 meses após a fase aguda (ou mais, se clinicamente indicado). | Manter a remissão sintomática. | Fazer ajustes baseados em evidências no tratamento. Abordar sintomas residuais |
Restaurar o funcionamento e a qualidade de vida aos níveis anteriores à doença. | Usar psicoeducação e autogerenciamento Tratar comorbidades Considerar intervenções psicossociais adicionais | ||
Prevenir recaídas | Usar psicoeducação para identificar sintomas precoces para intervenção precoce Monitorar efeitos colaterais a longo prazo e questões de adesão Abordar barreiras ao cuidado Usar intervenções para promover resiliência | ||
Consolidar ganhos durante a descontinuação do tratamento. | Descontinuar tratamentos quando clinicamente indicado Usar abordagens baseadas em evidências ao interromper o tratamento Continuar o tratamento quando a descontinuação não for indicada |
No documento original, pode-se observar, também, algoritmos de tomada de decisão elaborados pelos autores, que visam estabelecer um conjunto de diretrizes a serem seguidas no manejo clínico desses casos.
De especial interesse dos psicólogos, portanto e, especificamente utilizando o material como uma fonte de informações passíveis de contribuírem em casos em que há risco de suicídio, destacam-se as seguintes intervenções: avaliação de risco de suicídio, desenvolvimento de um Plano de Segurança, aliança terapêutica, psicoeducação, e estratégias de autogerenciamento.
Apesar da crítica realizada acima, vale ressaltar um aspecto positivo, em consonância com os rumos da pesquisa mais atual em suicidologia. A avaliação de risco se faz uma ferramenta necessária, mas não visando predizer a probabilidade futura da ocorrência de novos comportamentos suicidas. Um trecho do documento que evidencia essa nova perspectiva é:
“O foco da avaliação de risco na entrevista psiquiátrica e na subsequente formulação do risco deve ser entender a base para a ideação/comportamento suicida, forças pessoais e fatores de proteção que podem ser aproveitados para o planejamento de segurança, e mudanças previsíveis. A avaliação deve identificar fatores de risco potencialmente modificáveis, pois fatores históricos e demográficos que estão associados à super-representação em mortes por suicídio (por exemplo, sexo masculino, idade avançada, histórico familiar de suicídio, etc.) não são úteis para a avaliação de risco. Existem escalas validadas de risco de suicídio, mas elas têm baixa sensibilidade e poder preditivo para comportamentos suicidas.”
Para ler mais sobre o assunto, indico o último artigo que escrevi sobre o tema: Artigo sobre a Avaliação de Risco no tratamento do comportamento suicida
Visando contribuir para a prática clínica dos nossos leitores psicólogos, também foi traduzido o modelo de Plano de Segurança que os autores utilizam na diretriz. Vide a seguir:
Plano de Segurança para o Suicídio (Adaptado de Hawton et al., 2022).
Passo 1. Identificar sinais de alerta – por exemplo, pensamentos, sentimentos e circunstâncias.
Passo 2. Utilizar estratégias de enfrentamento personalizadas – por exemplo, autogerenciamento.
Passo 3. Possibilitar distração e conectar-se com pessoas – por exemplo, fazer uma caminhada com um amigo, ir a um café ou cinema, usar grupos de apoio ou grupos online.
Passo 4. Engajar-se com apoios sociais e comunitários – por exemplo, envolver contatos pessoais em planos de contingência.
Passo 5. Identificar contatos profissionais – por exemplo, linhas de crise (9-8-8 no Canadá e EUA), – no Brasil, o equivalente seria o 188, CVV, profissionais de saúde mental, clínicas de atendimento de emergência e prontos-socorros mais próximos.
Passo 6. Tornar o ambiente seguro – por exemplo, remover medicamentos em excesso, armas de fogo, objetos cortantes ou cordas; evitar ruas movimentadas e locais altos.
Quanto ao Plano de Segurança, existe uma discussão mais recente na suicidologia quanto à diferença entre o conceito de Plano de Segurança e Plano de Resposta à Crise. De acordo com Bryan e colaboradores (2024), a evidência que apoia o uso do Plano de Segurança é limitada. A proposta dos autores é de que o Plano de Resposta à Crise seria uma intervenção mais eficaz para a redução dos comportamentos suicidas.
Na impossibilidade de perscrutar cada uma das intervenções psicológicas propostas nas novas diretrizes, vale destacar que, apesar do destaque dado às guidelines CANMAT, considerando sua relevância internacional, a sugestão é de que seja realizada uma leitura cuidadosa e uma avaliação de como transpor tais evidências para o contexto da sua prática. Ou seja, ainda que se trate de uma ferramenta elaborada por especialistas que buscaram criteriosamente um rigor metodológico e, por isso, atestam que se trata de um material que seleciona apenas intervenções baseadas em evidências, a confiança absoluta em qualquer material pode ser perigosa.
Além disso, vale destacar que a CANMAT é uma instituição canadense. Desse modo, o recorte utilizado é o contexto de um país que apresenta significativas diferenças em relação ao Brasil. Apesar de 77% dos suicídios se darem em países de baixa ou média renda, de acordo com a OMS (2021), a pesquisa de intervenções psicológicas para esses casos é majoritariamente realizada em países que não se enquadram nesse perfil, como Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, Escócia e Austrália.
No contexto da limitação de pesquisas desenvolvidas com amostras brasileiras, é necessário manter em mente essa diferença cultural. Por exemplo, é possível que tratamentos sejam altamente recomendados em determinados contextos, a depender dos seus custos, mas que em outros, não são viáveis, considerando a limitação de recursos financeiros. A sugestão, portanto, é de que seja realizada uma leitura cuidadosa do material para avaliar a aplicação das intervenções, levando em conta as variações culturais.
Por último, mas não menos importante, as variações individuais devem ser levadas em consideração. Apesar de o próprio material enfatizar essa relevância da centralidade no cliente, e da necessidade de tomadas de decisão compartilhadas entre clínicos e pacientes, uma leitura menos atenta pode observar as recomendações e algoritmos e usá-los de modo automático e irrefletido.
Não existe um “material baseado em evidências”, de modo descontextualizado. Vale lembrar que o conceito de Prática Baseada em Evidências demanda (1) a avaliação da melhor evidência disponível, as (2) preferências e valores do cliente e (3) a expertise clínica do profissional. Apesar de críticos ao modelo difundirem que o foco no primeiro é maior do que nos dois últimos, os estudiosos da área alertam para o fato de que não existe Prática Baseada em Evidências sem leitura e avaliação crítica, nesse caso, das guidelines, e da centralidade no nosso paciente.
Referências
Bryan, C. J., Bryan, A. O., Khazem, L. R., Aase, D. M., Moreno, J. L., Ammendola, E., Bauder, C. R., Hiser, J., Daruwala, S. E., & Baker, J. C. (2024). Crisis response planning rapidly reduces suicidal ideation among U.S. military veterans receiving massed cognitive processing therapy for PTSD. Journal of Anxiety Disorders, 102, 102824. https://doi.org/10.1016/j.janxdis.2023.102824
Hawton, K., Lascelles, K., Pitman, A., Gilbert, S., & Silverman, M. (2022). Assessment of suicide risk in mental health practice: shifting from prediction to therapeutic assessment, formulation, and risk management. The lancet. Psychiatry, 9(11), 922–928. https://doi.org/10.1016/S2215-0366(22)00232-2
Johansson, M., Guyatt, G., & Montori, V. (2023). Guidelines should consider clinicians’ time needed to treat. BMJ, 380, Article e072953. https://doi.org/10.1136/bmj-2022-072953
Lam RW, Kennedy SH, Adams C, et al. Canadian Network for Mood and Anxiety Treatments (CANMAT) 2023 Update on Clinical Guidelines for Management of Major Depressive Disorder in Adults: Réseau canadien pour les traitements de l’humeur et de l’anxiété (CANMAT) 2023 : Mise à jour des lignes directrices cliniques pour la prise en charge du trouble dépressif majeur chez les adultes. The Canadian Journal of Psychiatry. 2024;0(0). doi:10.1177/07067437241245384
World Health Organization. (2021). Suicide worldwide in 2019: global health estimates.