Entrevista [Dra. Júlia Schäfer e Dr. Lucas Bandinelli] – Suporte Psicológico às vítimas do desastre ambiental no Rio Grande do Sul

COMPORTE-SE: Vamos começar com uma apresentação? Em algumas palavras, como é a experiência e treinamento de vocês em relação a prestação de suporte em situações traumáticas ou de calamidade?

Eu sou Lucas Bandinelli, psicólogo formado e doutorado pela PUCRS, com foco em Cognição Humana e mais de 10 anos de experiência clínica. Fiz especialização em Psicologia Hospitalar desde os estágios universitários, começando na Emergência de um hospital, onde adquiri experiência prática significativa. Após a graduação, trabalhei voluntariamente no acolhimento às famílias das vítimas do incêndio na Boate Kiss. Realizei uma residência multiprofissional de dois anos no Hospital de Clínicas de Porto Alegre e trabalhei como psicólogo hospitalar em várias instituições. Durante meu mestrado e doutorado, foquei em mulheres que enfrentaram traumas na infância e adolescência, aprofundando-me teoricamente nos impactos de eventos estressores significativos ao longo da vida.

Eu sou Julia Schäfer, psicóloga pela Unisinos, mestre pela PUCRS e doutora pela UFRGS. Tenho formação em Terapia Comportamental Dialética e especialização em Terapia Cognitivo Comportamental e, como o Lucas, possuo experiência clínica há 10 anos. Fiz parte do meu treinamento clínico em protocolos de psicoterapia de exposição para pessoas expostas a eventos traumáticos durante o meu mestrado, que foi vinculado ao Núcleo de Estudos de Trauma e Estresse (NEPTE). Durante o doutorado, trabalhei vinculada a Coorte Brasileira de Alto Risco para Transtornos Psiquiátricos focando, principalmente, na exposição a eventos traumáticos como um fator socio determinante de saúde mental ao longo do desenvolvimento.

COMPORTE-SE: Os “Primeiros Socorros Psicológicos (PSP)”, ao invés da Psicoterapia, geralmente são apontados como a intervenção adequada para crises como a que está ocorrendo no Rio Grande do Sul. No que diz respeito às características e componentes ativos da intervenção, quais são as características dos PSP que os tornam mais indicados do que uma Psicoterapia Regular para um cenário como este?

R: Os Primeiros Socorros Psicológicos (PSP) são intervenções breves e pontuais, essenciais em crises e não restritas a psicólogos. Qualquer pessoa treinada pode aplicá-los para proporcionar suporte imediato e acessível nos locais dos eventos. Eles focam em satisfazer necessidades básicas, aliviar sintomas agudos e estabilizar emocionalmente as pessoas afetadas. Essas intervenções são curtas, limitadas a poucas interações e utilizam técnicas práticas como escuta ativa, validação de sentimentos, apoio emocional imediato e orientações práticas. Diferente da psicoterapia, que demanda exploração emocional profunda e compromisso prolongado, os PSP se concentram no “aqui e agora”, auxiliando pessoas a manejarem reações a eventos catastróficos. Incluem também educação sobre reações comuns ao trauma e estratégias de autocuidado, prevenindo problemas psicológicos mais graves pós-evento. Em crises como as recentes no Rio Grande do Sul, os PSP são vitais para um suporte rápido e eficaz às necessidades imediatas das pessoas afetadas.

COMPORTE-SE: Muito tem sido dito sobre a importância de os PSP serem oferecidos presencialmente para vítimas diretas do Desastre Ambiental – ou seja, para aquelas pessoas que perderam tudo ou quase tudo, estão desabrigadas, com dificuldade de acesso a direitos básicos como segurança, água, alimentação e outros. O que faz com que seja preferível a oferta do atendimento presencial? Quais são as limitações da oferta dos PSP online para estas pessoas?

R: A oferta de PSP de forma presencial é essencial em situações de desastres, particularmente para as vítimas que estão enfrentando perdas extremas, como perda de moradia, dificuldade de acesso a necessidades básicas, e deslocamento forçado. O atendimento presencial é preferível devido a várias razões críticas que afetam diretamente a eficácia da ajuda e o bem-estar das vítimas.

Primeiramente, o atendimento presencial permite uma resposta imediata e adaptada às condições emocionais e físicas específicas da pessoa no momento da crise. Isso é crucial porque muitas vítimas de desastres podem estar em estado de choque, confusão ou forte angústia emocional, necessitando de um suporte que só pode ser efetivamente avaliado e administrado face a face. A presença física de um socorrista também oferece um senso de segurança e conforto que não pode ser replicado através dos meios eletrônicos. Além disso, muitas vítimas de desastres podem ter perdido acesso a recursos básicos, incluindo eletricidade e conexão com a internet. Nesse cenário, a oferta de PSP online se torna impraticável.

Mesmo quando a tecnologia está disponível, a natureza das comunicações online pode impedir uma avaliação precisa das necessidades da pessoa, já que sinais não verbais e outros aspectos do bem-estar físico da vítima podem não ser totalmente perceptíveis à distância. Há também considerações sobre a privacidade e a confidencialidade. Nesse sentido, a entrega de PSP presencialmente também facilita o acesso a outros tipos de ajuda, como encaminhamentos para serviços médicos, sociais ou de alojamento, que são frequentemente necessários em situações de crise. Assistentes no local podem rapidamente identificar e responder a essas necessidades adicionais, algo que pode ser mais desafiador de coordenar remotamente.

Ao falarmos sobre a priorização do uso de PSP de forma presencial não significa que exista uma proibição da aplicação de alguns de seus princípios de forma online. Porém, percebemos que existe uma confusão do conceito em si (de Primeiros Socorros Psicológicos) com outros conceitos como psicoterapia breve de apoio.

Atualmente, grande parte das modalidades de psicoterapia podem ser realizadas remotamente e, portanto, em algum momento será muito importante a oferta desse tipo de suporte tanto para as vítimas diretas quanto para voluntários e equipes assistentes.

COMPORTE-SE: Foram oferecidos diversos treinamentos online de PSP e muito tem sido falado a respeito da importância de se oferecer uma ajuda qualificada. Quais os principais riscos envolvidos em oferecer um atendimento não qualificado às vítimas de um desastre como o ocorrido no Rio Grande do Sul? Que danos ou problemas uma intervenção inadequada pode produzir?

R: Quando profissionais ou voluntários não possuem a qualificação necessária para lidar com situações de crise, isso pode agravar o trauma já existente. Por exemplo, uma abordagem inadequada pode intensificar as respostas emocionais das vítimas ou até mesmo retraumatizá-las através de perguntas invasivas ou discussões forçadas sobre os eventos vividos. Além disso, intervenções mal orientadas podem disseminar desinformação sobre como lidar com o trauma ou sobre recursos disponíveis, gerando confusão e frustração entre as vítimas, o que pode aumentar ainda mais seus níveis de estresse e ansiedade. Há também o risco de criar uma dependência indevida em conselhos ou técnicas ineficazes, retardando a procura por ajuda profissional adequada. A falta de treinamento em práticas apropriadas também pode resultar em algumas falhas éticas importantes, como nos casos de violações de confidencialidade e de respeito pelos limites pessoais das vítimas, infringindo normas essenciais em situações de assistência.

Outro problema potencial é a sensação de falsa segurança que um atendimento inadequado pode proporcionar às vítimas, levando-as a acreditar erroneamente que estão recuperadas ou que não necessitam de mais apoio. Além disso, intervenções mal aplicadas podem contribuir para a estigmatização ou o isolamento das vítimas, especialmente se essas abordagens acabarem reforçando preconceitos culturais ou sociais.

Há também o risco de sobrecarga dos recursos disponíveis, com a utilização ineficiente de voluntários e profissionais que poderiam ser empregados em estratégias de ajuda mais eficazes.

Promover treinamentos online e capacitações contínuas é essencial para preparar todos os envolvidos para oferecerem um apoio eficaz e eticamente responsável, minimizando os riscos de danos adicionais e facilitando um processo de recuperação mais efetivo para as pessoas.

COMPORTE-SE: Os voluntários trabalhando presencialmente também estão bastante expostos ao estresse e podem precisar receber apoio. Quais os componentes ou características fundamentais do suporte psicológico aos voluntários neste momento de crise?

R: Em primeiro lugar, achamos válido destacar o quanto é bonito ver a movimentação de pessoas que se uniram para poder ajudar das mais diferentes maneiras. Esse senso de união e solidariedade é muito importante para as pessoas, pois ameniza uma sensação de desamparo e solidão diante de uma crise tão grande. Por mais que alguns voluntários não tenham sido diretamente afetados pelo ocorrido, todos foram impactados de alguma forma, principalmente por estarem envolvidos diretamente nos esforços de resposta. Por isso, pensamos ser fundamental que eles também recebam apoio adequado para manter sua saúde mental e seguirem ajudando caso desejem e seja possível.

Acreditamos que o suporte aos voluntários deve incluir acesso imediato e contínuo a recursos de apoio emocional. A oferta de psicoterapia online pode ser muito útil e facilitar o acesso dessas pessoas a essa estratégia de cuidado. Além do apoio psicológico individualizado, a oferta de grupos de apoio pode ser uma alternativa para a construção de uma rede de suporte onde os voluntários apoiam uns aos outros, compartilhando estratégias de enfrentamento e construindo uma cultura de compartilhamento entre os pares.

É importante ressaltar que tanto o apoio psicológico individualizado quanto em grupo deve ser coordenado e oferecido por pessoas com capacidades pessoais, técnicas e teóricas para tais.

Algo que também pode ser importante e que precisa ser pensado, é o fornecimento de treinamento específico em gestão de estresse aos voluntários antes de iniciarem suas atividades. Este treinamento pode abranger as mais variadas estratégias de manejo de estresse, como mindfulness, respiração controlada e métodos para identificar sinais de estresse. Um sistema de monitoramento contínuo também deve ser levado em consideração para identificar voluntários que possam estar enfrentando dificuldades significativas, permitindo intervenções precoces e adequadas. Por fim, garantir que os voluntários tenham tempo suficiente para descanso e recuperação é crucial. Trabalhar sem pausas adequadas pode levar ao esgotamento, comprometendo o desempenho e a saúde em geral.

COMPORTE-SE: Em um segundo momento, a Psicoterapia pode vir a ser necessária para algumas das vítimas diretas do desastre. Quais os componentes ou características fundamentais de uma Psicoterapia efetiva para estas pessoas? 

R: Após a fase inicial do enfrentamento ao desastre, a psicoterapia é um importante recurso para lidar com respostas traumáticas mais intensas e duradouras, além de possibilitar uma reestruturação psicológica para o enfrentamento das fases posteriores que ocorrem após a mitigação dos danos iniciais.

Para ser efetiva, a psicoterapia deve incorporar várias características e componentes adaptados às experiências únicas e às necessidades específicas das vítimas, considerando seus contextos, culturas e necessidades. É crucial que a terapia ofereça validação e empatia, estabelecendo um espaço acolhedor que promova confiança. Um terapeuta empático e acolhedor facilita a construção de uma relação terapêutica sólida, permitindo que o paciente se sinta seguro para compartilhar suas experiências e sentimentos mais íntimos.

Para os casos em que a presença de sintomas pós-traumáticos é mais intensa, acreditamos que a psicoterapia deve seguir o que chamamos de uma psicoterapia informada pelo trauma, onde o terapeuta necessita ter entendimento claro das complexidades do trauma e de como ele afeta a mente e o corpo. Isso é essencial para criar um ambiente seguro, onde a vítima pode explorar e processar suas experiências traumáticas sem risco de retraumatização. A utilização de técnicas específicas para o manejo do trauma, como a Terapia de Exposição Prolongada também pode ser necessária. Abordagens como essa ajudam os pacientes a entender e reprocessar suas memórias traumáticas de maneira segura.

Por fim, além de focar na resolução do trauma, a psicoterapia também deve visar o desenvolvimento da resiliência e o empoderamento do paciente, fortalecendo suas estratégias de enfrentamento saudáveis, autoestima e promovendo um sentido de controle e esperança. Acreditamos que a integração de redes de suporte, como grupos de apoio e recursos comunitários, também podem oferecer suporte adicional e ajuda na reconstrução da sensação de comunidade e pertencimento tão importante para um momento como esse.

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Escrito por Portal Comporte-se

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