Expandindo e Pertencendo: Uma introdução às Molduras Hierárquicas e suas implicações clínicas

A Teoria das Molduras Relacionais (RFT), parte da Ciência Comportamental Contextual, é um campo de conhecimento e pesquisa que se dedica à compreensão da linguagem e cognição humanas. A partir de um conjunto de evidências experimentais, a RFT destaca a difusão e a importância de um tipo específico de comportamento operante: o Responder Relacional Arbitrariamente Aplicável (RRAA) Derivado. Para além desse nome gigantesco, a RFT nos ajuda a compreender como pessoas verbalmente competentes aprendem ao longo da vida a relacionar estímulos de forma simbólica e variada (por exemplo, “Pedro é mais forte que Maria”, “eu sou ansioso”, “tropeçou no céu como se ouvisse música”). Esta habilidade relacional transforma de maneira funcional praticamente todas as experiências humanas. Para uma introdução didática e atualizada à RFT consulte o artigo de Moraes, Assaz & Oshiro (2023).

Dentre os diversos conceitos valiosos derivados da RFT, neste texto me dedicarei a aprofundar um tipo específico de Moldura Relacional: a Moldura Hierárquica (MH). No entanto, reconheço que a compreensão dos tipos de molduras envolvidos em uma relação é apenas uma parte do que necessitamos para entender um fenômeno, também sendo necessário recorrer a dimensões de análise como Coerência e Flexibilidade Relacionais, por exemplo (Simões & da Silva Ferreira, 2021).

As muitas formas de relacionar e transformar funções

Ao todo, na RFT, foram exploradas nove categorias de molduras relacionais: Coordenação, Oposição, Distinção, Causalidade, Comparação, Temporalidade, Espacialidade, Hierarquia (também chamadas de Relações de Inclusão) e Dêiticas (também chamadas de Relações de Tomada de Perspectiva). Cada uma dessas molduras não apenas implica em um tipo específico de relação, mas também em processos diferentes de Transformação de Funções de estímulos (Hayes et al., 2001). Por exemplo, considerando que “videogame” tenha uma função apetitiva para mim (i.e. algo que eu quero me aproximar, a partir da minha história de vida), diferentes tipos de relações podem servir como contexto para mudanças distintas nas funções dos estímulos relacionados: em “esportes são o oposto de videogames”, uma relação de oposição, “esporte” pode assumir uma função aversiva; em “jogos de tabuleiro são como videogames”, uma relação de coordenação, “jogo de tabuleiro” pode assumir uma função apetitiva semelhante a “videogame”; e, por fim, em “realidade virtual é melhor do que videogame”, uma relação de comparação, “realidade virtual” pode assumir uma função apetitiva de maior magnitude do que “videogame”.

Hierarquia como não se vê todo dia

A ideia de Moldura Hierárquica (MH) pode ser confusa à primeira vista e, para ser sincero, acho que o nome atribuído a ela não ajuda muito. Na nossa cultura, a palavra “hierarquia” é frequentemente associada a “autoritarismo”, “rigidez” e “superioridade/submissão”, que por sua vez têm uma conotação aversiva em muitos contextos. Não é surpreendente que muitos colegas possam inadvertidamente interpretar a MH como se fosse apenas a Moldura de Comparação (maior/menor, melhor/pior, mais/menos). E, com essas associações, pode parecer estranho que alguns dos autores mais importantes da RFT atribuam ao treino do responder hierárquico em diferentes instâncias um papel crucial na promoção de Flexibilidade Psicológica (Luciano, et al., 2021). Tendo isso em mente, aqui cunharei dois termos intermediários para que possamos pensar a hierarquia relacionada a um contexto menos aversivo: Pertencimento e Expansão.

Pertencimento e Expansão

As pistas contextuais que frequentemente descrevem MHs evocam noções como “composição”, “inclusão” e “subdivisão”, como ilustra a Figura 01 com alguns estados e cidades do Brasil.

Figura 01 – Representação gráfica de relações hierárquicas

A partir desse ponto, já é possível observar a ideia de Pertencimento, mencionada anteriormente, ao descrevermos cada cidade como pertencente a um estado e cada estado como parte do país. Também é evidente o potencial de complexidade presente nas MHs , onde, a partir das relações descritas, pode-se derivar um número considerável de novas relações, não apenas de hierarquia (“Recife faz parte do Brasil”), mas também de coordenação (“Paraíba e Pernambuco são ambas partes do Brasil”), distinção (“Campina Grande e Caruaru são lugares diferentes”) e, tratando-se de referências geográficas, espacialidade (“Recife está localizado dentro de Pernambuco”) e comparação (“O Brasil é maior que João Pessoa”). É notável que as Molduras Relacionais não são rígidas, são classes de comportamento e, em alguns casos, uma classe serve de base para outra classes.

Já a ideia de Expansão toma como base a concepção de que, em muitos casos, o responder hierárquico servirá como uma alternativa mais flexível a outras formas de responder, como coordenação e oposição. Sendo mais preciso, Törneke e colaboradores (2015) definem a Inflexibilidade Psicológica como um operante relacional generalizado implicado no responder em coordenação ao próprio comportamento privado e suas funções. A título de exemplo, imaginemos uma pessoa que, frente a uma tarefa desafiadora e importante, note o pensamento “não adianta tentar, é melhor desistir” e um estado emocional nomeado como “vergonha”. Responder em coordenação ao conteúdo desse pensamento e/ou à função evitativa dessa emoção pode, em um contexto específico, contribuir para sofrimento psicológico dessa pessoa (ao se distanciar de algo valioso para ela).

Alternativamente, o responder hierárquico poderia estar pressuposto em modos “mais expandidos” de se relacionar com esses comportamentos privados (com abertura e no momento presente), por exemplo: “Noto o pensamento e a vergonha como dois elementos, dentre vários, que podem fazer parte da minha experiência”, “Percebo-os como parte da minha história e a minha dificuldade em lidar com eles também como parte da mesma história”, “Compreendo que me aproximar da vida que eu quero viver envolve inevitavelmente me deparar algumas vezes com pensamentos e emoções como esses”, “Reconheço que posso escolher seguir o que esses conselheiros me dizem, ou tomar outras direções que façam mais sentido para mim nesse momento”. Segundo os mesmos autores citados anteriormente, esse repertório pode ser chamado de Flexibilidade Psicológica: o operante funcional relacional de emoldurar hierarquicamente o próprio comportamento e suas funções (Luciano, et al., 2021; Törneke, et al., 2015).

Uma moldura, muitas funções

O capítulo de Törneke e colaboradores (2015) nos apresenta três estratégias centrais informadas pela RFT para o desenvolvimento de Flexibilidade Psicológica: (i) ajudar os clientes a entrar em contato com a sua própria história de padrões inflexíveis; (ii) ajudar os clientes a desenvolver a habilidade de emoldurar os seus eventos privados hierarquicamente ao “Eu dêitico”; (iii) ajudar os clientes a clarificar e ampliar reforçadores positivos hierárquicos e a escolher ações relacionadas a eles. A MH definitivamente não resume essas estratégias por completo, mas está presente nas três: padrões inflexíveis como partes da história de vida; eventos privados como partes do self; e ações escolhidas como parte do que é importante.

O ponto central dessas estratégias é a Transformação de Funções de experiências aversivas (i.e. ansiedade, pensamentos autodepreciativos) de maneira que passem a atuar no continuum comportamental como estímulos discriminativos para reforçadores positivos simbólicos hierarquicamente estabelecidos (i.e. Valores). Assim, frente à ansiedade e pensamentos autodepreciativos, uma pessoa teria maior probabilidade de seguir respondendo ao ambiente de uma determinada maneira, ao relacionar essas experiências aversivas e as suas ações como parte do processo de se aproximar de uma vida conectada com seus Valores.

Já o capítulo de Luciano e colaboradores (2021) refina e expande as três estratégias em doze estratégias (às quais não listarei aqui hoje, pois acredito que merecem um texto próprio para uma apresentação devida) que atuam de forma a tornar o processo terapêutico um Treino de Múltiplos Exemplares do repertório de Flexibilidade Psicológica. Nove dessas doze estratégias enfatizam explicitamente o papel do responder relacional hierárquico.

Hipotetizando sobre as MHs presentes em outras tradições clínicas

Os conceitos da RFT têm sido mais comumente utilizados na compreensão de processos de mudança clínica associados à Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT; Twohig, et al., 2023; Hayes et al., 2021). É notável como as três estratégias apresentadas anteriormente são similares ao que chamamos na ACT de “Desesperança Criativa”, “Aceitação/Desfusão/Self-como-contexto” e “clarificação e contato com Valores”. E, não por acaso, muitos dos pesquisadores e autores da RFT também estão associados à ACT e vice-versa. Porém, ao meu ver, podemos expandir essa análise para hipotetizar sobre como o emolduramento hierárquico está presente em outros tipos de intervenções clínicas. Vejamos dois exemplos:

Ao introduzir a sua visão de mundo dialética, Linehan (1993, p. 31) aponta que “em primeiro lugar, a dialética enfatiza a interdependência e a totalidade. A dialética adota uma perspectiva sistêmica em relação à realidade. A análise das partes de um sistema tem valor limitado, a menos que relacione a parte de forma clara com o todo.”. Com isso em vista, muitas das estratégias clínicas na Terapia Comportamental Dialética (DBT) têm como alvo a integração de extremos aparentemente incompatíveis, por exemplo: aceitação/mudança; emoção/razão; e dependência/independência. É possível imaginar que, em nível básico, parte desse processo envolve o treino do responder hierárquico entre estímulos e/ou repertórios anteriormente descritos por Molduras de Oposição. Assim, por exemplo, “impulsos emocionais” e “descrições racionais” deixam de ser enfatizados como opostos e passam a ser considerados como partes valiosas de um todo mais abrangente e “sábio”.

A literatura dedicada à Autocompaixão (Finlay-Jones et al., 2023) apresenta o conceito de “Humanidade Comum”, definida como a capacidade de reconhecer os desafios da vida e a vulnerabilidade que os envolve como partes da experiência humana, compartilhada por todas as pessoas. Em contraste com essa noção, é descrito o senso de “Isolamento”, no qual as pessoas respondem ao próprio sofrimento como algo específico de suas individualidades. A partir dessas descrições, podemos considerar que o processo de desenvolvimento da Humanidade Comum provavelmente envolve passar a responder aos eventos desafiadores da vida como estando hierarquicamente relacionados à experiência humana (e não em coordenação à própria individualidade).

Considerações Finais

O aprofundamento no estudo da RFT tem contribuído para ampliar minha perspectiva como psicólogo clínico, supervisor e ser humano, permitindo-me novas formas de lidar com a variedade de experiências e eventos com os quais me deparo diariamente. Espero que este texto possa despertar em você algo semelhante, ou pelo menos um pouco de curiosidade.

Como comentário final, gostaria de destacar que a pesquisa sobre as Molduras Hierárquicas tem avançado para além da exploração experimental de processos básicos, sendo agora utilizada para informar diretamente a construção de novos protocolos clínicos. Um exemplo disso é o RNT-ACT, um protocolo breve de ACT para Pensamentos Negativos Repetitivos, como preocupações e ruminações, que tem demonstrado resultados promissores em diferentes ensaios clínicos randomizados. Esse protocolo se destaca pelo uso de estratégias de Desfusão Cognitiva informadas pelos avanços mais recentes da RFT, incluindo o treino do responder hierárquico ao próprio comportamento e suas funções (Ruiz et al., 2020).

Referências

Finlay-Jones, A., Bluth, K., & Neff, K. (Eds.). (2023). Handbook of Self-Compassion. Springer Nature.

Hayes, S. C., Barnes-Holmes, D., & Roche, B. (Eds.). (2001). Relational frame theory: A post-Skinnerian account of human language and cognition.

Hayes, S. C., Strosahl, K. D., & Wilson, K. G. (2021). Terapia de Aceitação e Compromisso: O Processo e a Prática da Mudança Consciente. Artmed Editora.

Linehan, M. M. (1993). Cognitive-behavioral treatment of borderline personality disorder. Guilford Press.

Luciano, C., Törneke, N., & Ruiz, F. J. (2021). Clinical behavior analysis and RFT: Conceptualizing psychopathology and its treatment. Oxford handbook of acceptance and commitment therapy, 1-28.

de Moraes, G. J., Assaz, D. A., & Oshiro, C. K. B. (2023). Teoria das Molduras Relacionais (RFT): Apresentação para analistas do comportamento. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 25(1), 1-21.

Ruiz, F. J., Luciano, C., Flórez, C. L., Suárez-Falcón, J. C., & Cardona-Betancourt, V. (2020). A multiple-baseline evaluation of acceptance and commitment therapy focused on repetitive negative thinking for comorbid generalized anxiety disorder and depression. Frontiers in psychology, 11, 356.

Simões, A. S., & da Silva Ferreira, T. A. (2021). Quando o Pensamento Positivo não é o Bastante: O papel do HDML na explicação de comportamentos complexos pela RFT. Perspectivas em Análise do Comportamento, 12(1), 094-104.

Törneke, N., Luciano, C., Barnes‐Holmes, Y., & Bond, F. W. (2015). RFT for clinical practice: Three core strategies in understanding and treating human suffering. The Wiley handbook of contextual behavioral science, 254-272.

Twohig, M. P., Levin, M. E., & Petersen, J. M. (2023). The Oxford Handbook of Acceptance and Commitment Therapy. Oxford University Press.

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João Martins de Araújo Júnior

Escrito por João Martins de Araújo Júnior

Sou nordestino, psicólogo (CRP13/7477) e mestre em Neurociência Cognitiva e Comportamento (UFPB). Possuo formação em Mindfulness (Mente Aberta/Unifesp), Psicoterapia Baseada em Evidências (InPBE) e Terapias Comportamentais Contextuais (Atitude Cursos, ACT na prática clínica, Praxis CET, Ceconte, CEFI), em especial na Terapia de Aceitação e Compromisso e nas aplicações clínicas da RFT. Atuo como psicólogo e supervisor clínico em consultório privado. Sou Membro Geral da diretoria do capítulo brasileiro da ACBS no biênio 2024-2025 e representante do Grupo de Interesses Especiais em ACT (SIG ACT Brasil) no biênio 2023-2024, onde contribuo com diversos projetos para a difusão da ACT e das Ciências Comportamentais Contextuais no Brasil. Tenho particular interesse na Terapia Baseada em Processos e em discussões clínicas que envolvam temas sociais e políticos.

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