“Terrible Twos” e a rotina de crianças pequenas

O presente artigo é fruto de um trabalho realizado para o Curso em Terapia Analítico-Comportamental Infantil, promovido e orientado pela psicóloga Amanda Viana dos Santos (CRP – 09/14306) por meio do projeto Guia Prático dos Pequenos (disponível no Instagram @guiapraticodospequenos). A proposta do trabalho foi apresentar um recurso como apoio para intervenção psicoterápica com pais de crianças de dois a três anos de idade, cujos comportamentos-problemas estão relacionados a uma rotina inconsistente. O manuscrito foi redigido pela Amanda Viana dos Santos com a colaboração de Gabriella Antônia Resende Dos Santos e Veronica Maria Figueiredo de Queluz, que desenvolveram os recursos psicoterapêuticos.

“Terrible twos” é um termo comumente utilizado, que remete a um processo comportamental geralmente observado em crianças com um ano e meio a três anos de idade (Amarins, 2018; Hughes, Devine, Mesman, & Blair, 2020). Refere-se a um período do desenvolvimento que pode ser compreendido por as crianças estarem começando a refinar o repertório verbal que lhes possibilita sanar suas necessidades fisiológicas ou comportamentais, além de estarem construindo um senso de individualidade. Isto é, conseguem observar que possuem pensamentos e sentimentos diferentes de seus pais e/ou outros responsáveis em diferentes situações (Keenan & Wakschlag, 2000). No período dos “Terrible Twos”, a reação frente às emoções agradáveis ou desagradáveis pode ser mais intensa, sendo um dos possíveis motivos o fato da criança ainda estar iniciando o desenvolvimento dos repertórios de autoexpressão (falar sobre seus sentimentos) e de auto exposição (falar sobre si mesma). Pelos poucos anos de experiência com o mundo, seus pensamentos e sentimentos, em alguns casos, podem ser expressos de maneira socialmente não esperada. Por exemplo, com o intuito de expressar que algo que ocorreu a deixou com raiva, em vez de expressar vocalmente seus sentimentos, a criança pode jogar objetos com força no chão.

É importante ressaltar que emoções intensas estão presentes na vida de todos, independente da faixa etária. Adulto ou criança constantemente estão aprendendo a regulá-las. Por isso, não é justo esperar de uma criança nessa faixa-etária saber lidar com frustrações e sanar necessidades de forma socialmente aceita em todos os momentos da vida. Contudo, ainda que essa fase seja compreendida, é importante o adulto se mobilizar para ensinar à criança novas formas de agir no mundo, de modo que favoreça sua adaptação social a longo prazo, isto é, maximizando o contato com reforçadores.

Uma rotina inconsistente pode contribuir para um aumento na frequência de comportamentos-problema da criança, como apresentar grandes resistências em seguir atividades cotidianas (e.g., tomar banho); insistir em descumprir regras; apresentar dificuldades em administrar as atividades acadêmicas e as de lazer por não estar claro qual poderia ser o melhor planejamento de horário e ordem das atividades (Santos, 2020). Nessas circunstâncias, é compreensível que pais e/ou outros responsáveis encontrem dificuldades para lidar com a situação, podendo, acidentalmente, estabelecer contingências de reforçamento intermitente dos comportamentos-problema (e.g., às vezes ceder, às vezes não) (Gomide, 2014).

Essa relação que os responsáveis estabelecem pode contribuir para o surgimento do sentimento de imprevisibilidade nas crianças, do que é esperado ou não delas nas suas atividades cotidianas, além de quais são os limites de suas ações. Além disso, em uma rotina inconsistente, geralmente não há tempo de qualidade separado para interação (i.e., atenção social positiva) entre os pais e a criança (Weber, 2017). Esse fator é importante, pois a criança pode buscar formas alternativas (às vezes não socialmente esperadas, como “birras”) para conseguir atenção de seus pais, ainda que seja por meio de broncas.

Uma rotina consistente (que difere de ser rígida e inflexível) e de caráter lúdico geralmente estabelece contingências que possibilitam uma maior previsibilidade à criança do que é esperado e quais reforçadores implicados a ela no seguimento das atividades. Por exemplo, escovar os dentes antes de se deitar resulta em ouvir uma historinha de dormir e boa noite de seus pais; tomar banho quando chega da escola e poder brincar durante o chuveiro com tinta guache ou dançar ouvindo a playlist favorita; pedir o docinho só funcionará quando terminar de almoçar/jantar; etc. Em última instância, essas interações que trazem à luz a relação comportamento-consequência podem direcionar a criança na aquisição de repertórios de autocontrole e responsabilidade.

Para isso, alguns fatores importantes precisam ser considerados: 1) o consenso entre os responsáveis quanto ao estabelecimento das atividades da rotina, que inclui as regras (o que é permitido ou não a criança fazer). Vale todos da família participarem na construção das regras (que devem ser em pouca quantidade, claras e objetivas) para evitar que um desautorize o outro ou que a criança emita comportamentos diferentes somente na presença de um ou do outro (Gomide, 2014; Weber, 2017). Em complemento, a escolha das atividades que serão desempenhadas pela criança precisa ser derivada da reflexão acerca do que a criança realmente consegue fazer e não do que os pais desejam que a criança faça. A criança fará somente aquilo que ela consegue ou que lhe foi ensinado.

Diante dos aspectos ressaltados acerca dos pais terem dificuldades de lidar com certos comportamentos de crianças pequenas e as implicações de uma rotina inconsistente, a segunda e a terceira autora deste artigo, sob orientação da primeira, criaram uma cartilha digital para pais e/ou outros responsáveis de crianças denominada “Rotina dos Pequenos”. Esse material tem o propósito de auxiliar a implementação de uma rotina de forma leve e divertida tanto para os responsáveis quanto para a criança. A ferramenta desenvolvida traz uma breve psicoeducação sobre o processo dos “Terrible Twos”, breves e didáticas orientações relevantes aos responsáveis em como construir cartolinas e relógios coloridos para organização da rotina da criança, bem como dicas para o cumprimento da criança em diferentes atividades cotidianas, como as refeições e o banho, com o apoio do lúdico.

Figura 1. Capa da cartilha digital “Rotina dos Pequenos”

Com flexibilidade por parte dos responsáveis em relação aos horários e a organização das atividades da rotina, espera-se que a criança passe a cumprir com maior frequência seus deveres diários, apresentando menos oposições de forma não socialmente aceita (e.g., birras) e mais comportamentos pró sociais (e.g., resolução de conflitos interpessoais que maximizem reforçadores para ambos na relação). Além disso, também é esperado que se inicie o aprendizado de que nossos comportamentos produzem consequências que afetam não só a probabilidade da ocorrência desse mesmo comportamento, mas também o mundo à sua volta.

Vale ressaltar que o aspecto mais importante na rotina de crianças não é necessariamente o material para organização da rotina em si, mas a constância e consistência das atividades e o seguimento das regras da casa. As orientações do material possuem, principalmente, a função de ser um apoio de caráter lúdico destinado não somente para a criança, mas (principalmente) aos pais.

A cartilha pode ser acessada gratuitamente clicando neste link.

Referências

Amarins, Melina Blanco. (2018).Adolescência do bebê: você sabe o que é a fase do “terrible twos”?. Hospital Israelita Albert Einstein. Recuperado em Setembro 14, 2021. https://www.einstein.br/noticias/noticia/adolescencia-do-bebe-terrible-twos.

Hughes, C., Devine, R. T., Mesman, J., & Blair, C. (2020). Understanding the terrible twos: A longitudinal investigation of the impact of early executive function and parent–child interactions. Developmental science23(6), 1-12.

Keenan, K., & Wakschlag, L. S. (2000). More than the terrible twos: The nature and severity of behavior problems in clinic-referred preschool children. Journal of abnormal child psychology28(1), 33-46.

Santos, A. V. (2020). Parte 4 – Possíveis Modelos de Registro Comportamental na Terapia Analítico-Comportamental Infantil. Comporte-se. Disponível em https://comportese.com/2020/12/14/parte-4-possiveis-modelos-de-registro-comportamental-na-terapia-analitico-comportamental-infantil.

Gomide, P. I. C. (2014). Pais presentes, pais ausentes: regras e limites Petrópolis, RJ. Editora Vozes.

Weber, L. (2017). Eduque com carinho para pais e filhos Paraná: Juruá.

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Escrito por Amanda Viana dos Santos

Psicóloga infantojuvenil (CRP - 09/14306). Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, com Prêmio Mérito Acadêmico Magna cum laude. Mestranda na Universidade Estadual de Londrina (UEL). Coordenadora da Comissão de Estudantes da ABPMC (2021). Professora convidada do curso de Pós-Graduação em Terapia Analítico-Comportamental Infantil do IBAC. Pós-graduanda em Terapia Analítico-Comportamental Infantil pelo Instituto Skinner. Durante a graduação, foi membro do Laboratório de Análise Experimental do Comportamento/PUC GO, realizando iniciações científicas na área do comportamento de escolha, autocontrole e estilos parentais (bolsista CNPq). Criadora do projeto Guia Prático dos Pequenos, disponível no Instagram @guiapraticodospequenos. E-mail: amandapsico8@gmail.com

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