Brisa Burgos Dias Macedo
Olá leitores do portal comporte-se,
Já foi discutido por aqui, em inúmeros textos, como a DBT pode ajudar na construção de uma vida melhor e mais leve. É importante lembrar, entretanto, que mesmo diante desta busca de sentido para vida, a todo momento somos expostos a situações adversas e de sofrimento. Em determinados estilos de ambientes, considerados invalidantes, estamos expostos a fatores que nos tornam excessivamente vulneráveis.
Aqui, entende-se como vulnerável aquele que é exposto à críticas ou em posição considerada desfavorável por alguma característica pessoal ou do grupo o qual representa. Em DBT o ambiente também pode nos tornar mais ou menos vulnerável, a depender da transação entre suas particularidades e as do individuo em questão (Linehan, 2010). A partir desta lógica, o contexto prisional pode ser considerado um destes ambientes que despertam vulnerabilidade extrema. O indivíduo privado de liberdade vivencia diariamente situações de estresse, que podem provocar emoções intensas, levando a comportamentos impulsivos e acessos de raiva e agressão (Facer -Irwin et al, 2019). Além disso, a privação de liberdade em si pode gerar um forte mal-estar, obrigando o individuo a autodesenvolver habilidades para não piorar as coisas e aceitar a realidade como ela é.
A pandemia propiciou o agravamento deste cenário pois, devido às altas taxas de contaminação, as instituições foram obrigadas a suspender visitas e atividades em grupo, sejam elas esportivas, escolares, educativas ou religiosas (Sanchez et al, 2020), limitando ainda mais as interações pertinentes no contexto prisional. Conforme apresentado pela Fundação Oswaldo Cruz (2020) em uma cartilha sobre Saúde Mental e Atenção Psicossocial na Pandemia COVID-19 as já descritas limitações ocasionadas pelo contexto atualmente vivenciado somados ao aumento da percepção de risco à vida causada pela COVID-19 agravaram as tensões, causando fortes impactos emocionais e ampliando a vulnerabilidade entre as pessoas em instituições prisionais.
Diante desse cenário, a adaptação e o uso de habilidades ensinadas no treinamento de habilidades em DBT consiste em uma forma extremamente efetiva de contribuir para redução do sofrimento emocional e para lidar com a vulnerabilidade inerente ao contexto prisional e ainda exacerbada pela pandemia. É aqui que adotamos o termo “desvulnerabilidade”, parte do título deste texto. Gramaticalmente, o prefixo “des” tem a intenção negar ou reverter o significado da palavra (Bona; Ribeiro, 2018). No caso, quando nos referimos a desvulnerabilidade estamos falando em uma tentativa de reverter, reduzir ou desfazer a vulnerabilidade à que o individuo está exposto em situações diversas como, por exemplo, a reclusão em instituições prisionais. É aqui que entram as habilidades ensinadas em DBT.
A contribuição do treino de habilidades em DBT para “desvulnerabilização” já foi observada em estudos anteriormente realizados em contexto prisional, que demonstraram a eficácia desta modalidade de tratamento em DBT na diminuição da agressividade e da impulsividade (Shelton et al., 2009), bem como de sintomas depressivos e associados de Transtorno de Estresse Pós- Traumático (TEPT) em mulheres presas com histórico de violência interpessoal (Bradley & Follingstad, 2003). Quando aplicado em homens encarcerados, um estudo piloto que utilizou o treinamento de habilidades em DBT em formato reduzido também mostrou-se efetivo e ampliou as estratégias de enfrentamento, o famoso “coping”, entre os participantes do estudo (Moore et al., 2018). Todos estes achados parecem contribuir para tal “desvulnerabilização”.
Diante destas evidências e para auxiliar a “desvulnerabilização” inerente ao contexto prisional no Brasil, foi desenvolvido um projeto de intervenção que tem como público alvo mulheres em privação de liberdade. O projeto em questão foi desenvolvido pela Liga Acadêmica de Neurociências e Comportamento – LANeCom, fundada em 2020 por iniciativa dos alunos de pós graduação da Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto. O objetivo principal do projeto consiste na confecção de uma cartilha educativa sobre saúde mental, que contem informações sobre os principais transtornos psiquiátricos que afetam essa população. A cartilha ilustrativa é fruto de um trabalho interdisciplinar e também propõe exercícios práticos e atividades que possam amenizar o sofrimento e a vulnerabilidade emocional naturalmente vivenciados nestes contextos e agravados pela pandemia. Isso tudo visa auxiliar na construção de uma vida mais leve. Para quem tem o mínimo de conhecimento sobre, sabe que isso é a cara da DBT!
É claro que diante das evidências observadas em estudos prévios e já citados neste texto e neste contexto que visa a disseminação de estratégias que possam amenizar o sofrimento emocional de mulheres encarceradas, as habilidades ensinadas durante o treinamento de habilidades em DBT tem muito a contribuir para uma vida mais alinhada com os valores pessoais de mulheres privadas de liberdade. Por esta razão algumas habilidades treinadas em DBT foram incluídas no livro de atividades informativo e interativo confeccionado pela LANeCom.
O livro de atividades foi financiado pela verba de pesquisa do 6º Edital Santander/ USP/FUSP. Este foi o formato escolhido devido as restrições institucionais estabelecidas para conter o avanço da pandemia COVID-19. No que tange a DBT, a ênfase do livro de atividades é nos módulos de regulação emocional, mindfulness (representado pelas práticas de mindeating) e tolerância ao mal-estar. É importante, entretanto, ressaltar o papel dos quatro módulos de habilidades e como tais habilidades podem auxiliar pessoas que vivem em instituições e privadas da liberdade para além do conteúdo do livro. Aqui neste texto vão dicas preciosas destes para quem quer aprender para treinar, em centros de detenção, o uso de habilidades dos quatro módulos do treino de habilidades em DBT: mindfulness, efetividade interpessoal, tolerância ao mal estar e regulação emocional.
O módulo de atenção plena ou mindfulness treina o desenvolvimento da capacidade de viver o momento presente da forma mais efetiva possível, mesmo que a realidade seja dolorosa. A partir deste agrupamento de habilidades é possível desenvolver uma perspectiva sábia, menos enviesada pela mente emocional ou pela mente racional. É dentro dessa perspectiva que podemos diminuir o autojulgamento e aumentar a autocompaixão entre pessoas que cumprem penas por delitos outrora cometidos (Linehan, 2018). Vale a pena incentivar a práticas de habilidades que visam acessar a mente sábia e adotar uma postura mais descritiva diante das situações desafiadoras que ocorrem dentro e até mesmo fora das instituições prisionais. Esta pode ser uma forma de avaliar o que é efetivo e diminuir o autojulgamento por atitudes passadas. Ademais, o mindeatin.g, ou seja, o comer em atenção plena, pode ser uma prática incentivada entre mulheres que vivem em contexto prisional.
No contexto prisional as habilidades aprendidas no módulo de efetividade interpessoal do treinamento em DBT também são úteis. Isso ocorre, principalmente, diante da necessidade de administrar conflitos interpessoais e desenvolver validação de si mesmo e do outro que este contexto exige. Nas casas de detenção, considerando todas as restrições impostas atualmente, interagir e se relacionar com familiares ou com outros companheiros que não sejam do mesmo pavilhão se tornou ainda mais difícil. Para que não fique insustentável, é necessário desenvolver habilidades para manter relações efetivas e que possam ajudar na manutenção da saúde mental. É importante avaliar contextos para discriminar o que deve ser priorizado: objetivos, relações ou o autorrespeito. Além destas, a habilidade de se autovalidar ou validar as emoções, os comportamentos e as ações dos outros também pode auxiliar na manutenção de relações efetivas mesmo dentro de contextos tão adversos como o de instituições prisionais. Encontrar o grão de sabedoria na visão do outro pode criar ambientes favoráveis ao desenvolvimento de relacionamentos saudáveis (Linehan, 2018).
O módulo de tolerância ao mal estar é essencial para ajudar aqueles que vivem em sistema prisionais a não piorarem as coisas e aceitarem as coisas como são, mesmo quando privados de liberdade. Dentro desse módulo, a aceitação radical pode ser uma estratégia útil para aceitar a realidade como ela é, reduzindo o sofrimento emocional. Esta habilidade pode auxiliar na aceitação de ações passadas que culminaram na detenção e até mesmo da realidade prisional como é. É sempre importante lembrar que, conforme descrito em texto anterior, aceitar a realidade não significa aprová-la (Linehan, 2018).
Ainda dentro do módulo de tolerância ao mal estar, é preciso utilizar habilidades deste grupo para auxiliar a romper padrões impulsivos de comportamentos. No livro entregue as mulheres encarceradas a prática das habilidades de distração foi especialmente incentivada. O material conta com espaços para pintura e desenhos especialmente idealizadas por uma artista para que as encarceradas possam praticar e distrair-se em momentos que o mal-estar estiver intensificado. Outro conjunto de habilidades que foi utilizado é o de autoacalmar-se, que utiliza os cinco sentidos: tato, olfato, audição, paladar e visão para reduzir a intensidade emocional daquele momento desagradável. Atividades que utilizem os sentidos serão propostas no livro, tais como observar uma foto que seja importante (visão); atentar-se aos sons do ambiente como a chuva, o canto dos pássaros ou o simples batucar de algum objeto (audição) e massagear a cabeça ou o corpo (tato).
Por fim, o módulo de regulação emocional pode auxiliar na identificação e nomeação das emoções e, consequentemente, na redução do sofrimento causado por emoções indesejadas (Lienhan, 2018). Este grupo de habilidades pode ser utilizadas no contexto prisional a fim de auxiliar os encarcerados a lidarem melhor com suas emoções, evitando que a mente emocional assuma o controle das situações (Moore et al, 2018). É comum que indivíduos em centros prisionais experimentem culpa e vergonha intensas por seus atos passado que culminaram na detenção. O foco da cartilha é apresentar informações claras e objetivas sobre as emoções básicas, culpa e vergonha e utilizar as habilidades de identificação e nomeação das emoções para que as mulheres consigam reconhecer o que estão sentindo de forma a agir sobre estas emoções de forma efetiva. As habilidades de ação oposta podem auxiliar no momento em que uma emoção intensa e/ou não justificada quiser assumir o controle, facilitando a ocorrência de comportamentos não efetivos. Além destas, as habilidades ABC SABER também podem diminuir a vulnerabilidade emocional. Realizar atividades prazerosas, mesmo em contexto de privação de liberdade, é essencial para manter o humor regulado. Hábitos saudáveis como, por exemplo, higiene de sono e cuidados com doenças clínicas também podem auxiliar na manutenção da saúde física e mental e fazem parte das habilidades treinadas no módulo de regulação emocional.
Dessa forma, espera-se que as informações apresentadas na cartilha e neste texto possam auxiliar na redução do sofrimento de mulheres em contextos prisionais e reduzir a vulnerabilidade desta população, ou seja, “des-vulnerabilizar”. Sabemos que é difícil combater estigmas e, ao mesmo tempo, compreendemos como nosso dever reduzir os julgamentos e preconceitos contra grupos específicos. Nesta linha, logo mais, as contribuições das habilidades em DBT para pessoas privadas de liberdade e em casas de detenção poderá ser amplamente experienciada nos demais centros penitenciários do Brasil. Quem quiser conferir o material na íntegra basta entre aqui Já queremos ver os resultados! Até lá, a gente aguarda…
Até a próxima!
Bradley, R. G., & Follingstad, D. R. (2003). Group therapy for incarcerated women who experienced interpersonal violence: A pilot study. Journal of Traumatic Stress, 16(4), 337–340.
Shelton, D., Sampl, S., Kesten, K. L., Zhang, W., & Trest- man, R. L. (2009). Treatment of impulsive aggression in correctional settings. Behavioral Sciences and the Law, 27(5), 787–800.
Moore, K. E., Folk, J. B., Boren, E. A., Tangney, J. P., Fischer, S., & Schrader, S. W. (2018). Pilot study of a brief dialectical behavior therapy skills group for jail inmates. Psychological services, 15(1), 98.
Sanchez, A., Simas, L., Diuana, V., Larouze, B. (2020). Covid-19 nas prisões: um desafio impossível para a saúde pública? 36 (5).
Fundação Oswaldo Cruz. (2020). Saúde mental e atenção psicossocial na pandemia COVID-19.
Material adaptado de Linehan, M. M. (2018). Treinamento de habilidades em DBT: Manual de terapia comportamental dialética para o terapeuta. Artmed Editora.
Facer-Irwin E, Blackwood NJ, Bird A, Dickson H, McGlade D, Alves-Costa F, MacManus D. (2019) PTSD in prison settings: A systematic review and meta-analysis of comorbid mental disorders and problematic behaviours. PLoS One.26;14(9).
Bona, C., Ribeiro, P.N. Sobre a produtividade e a semântica do prefixo des-no português brasileiro atual. (2018). D.E.L.T.A. 34 (2).