Uma abordagem sobre o self

“Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovakloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: – Pai, me ensina a olhar!”
O Livro dos Abraços, Eduardo Galeano

Ver o mar e ver-se vendo o mar são atividades diferentes não só na literatura, na psicologia também. Ver-se vendo é responder a estímulos do próprio corpo, é a experiência de ver, e é a partir dessa ilustração que proponho uma conversa sobre self.

Pela Análise do Comportamento, sabemos que a tríplice contingência operante é composta por estímulos que evocam respostas seguidas de consequências. Pois bem, quando o estímulo da contingência é o mar, as respostas públicas diante dele podem ser várias, como nomear (“uau, que mar!”), apontar (!!!), molhar os pés no raso ou mergulhar ondas a dentro… a emissão dessas ou de outras respostas dependerá de como as pessoas ao redor reagiram (consequenciaram) e deram modelo de se comportar diante do mar. Mas isso não é tudo; respostas privadas, de acesso íntimo apenas para a própria pessoa ou para quem foi muito bem treinado em observá-la, também são eliciadas ao estar diante do mar. Isso que se passa no corpo de alguém, quando ganha controle discriminativo para respostas verbais, tem status de self — é o ver-se vendo, contatando o mar: “que azul impressionante, senti arrepio!”, “é imenso, dá até medo…”.

Parece simples, mas não é. Que estímulos como o mar exercem controle discriminativo para respostas públicas é óbvio, nossa cultura promove com competência esse tipo de aprendizagem… o que não é particularmente de interesse da cultura gerar tem a ver com o pedido ganancioso da criança do trecho de abertura deste texto: ensinar a responder ao próprio corpo, à própria experiência. Kohlenberg e Tsai (1991) elucidam essa questão:

“A expressão de sentimentos é frequentemente punida na vida adulta porque a maior parte das culturas estabelece grandes proibições para a demonstração de emoção (Nichols & Efran, 1985). A razão para esta punição cultural é que a demonstração significa que a pessoa está “fora de serviço” e não está atendendo à tarefa que lhe foi designada. Isto parece ser verdadeiro para uma vasta gama de situações. Um gerente de mercearia que responde com emoção por que uma cliente lhe lembra sua mãe abusiva, sofrerá consequências negativas, assim como um piloto de avião que “sucumbe” em uma emergência. Está frequentemente nos melhores interesses da cultura limitar a expressão de afetos. O lado ruim de limitar a expressão dos sentimentos é que isto causa problemas nas relações, particularmente nas íntimas.”
Kohlenberg e Tsai, 1991, p. 84

Depende da aprendizagem social ver-se vendo, observar estímulos no próprio organismo e as próprias respostas privadas. Depende de que outras pessoas notem a experiência pessoal, ensinando a relatá-la e depende de que reforcem esses relatos. A abstração do eu, a partir dos vários estímulos que controlam as respostas a partir do referencial da pessoa (eu estou…, eu sinto…, eu quero…, eu vejo… eu x) (Kohlenberg e Tsai, 1991), possibilita a constituição do self, ou seja, a emissão de respostas verbais sob controle de si. E se a cultura não facilita esse processo, os psicoterapeutas correm atrás do prejuízo.

Fortalecer um self saudável é a grande missão de terapeutas FAP (Kohlenberg e Tsai, 1991), que ensinam os clientes a se verem vendo: a responder aos estímulos em seus corpos e, principalmente, a relatá-los para uma audiência apropriada. Somos validantes ao saber de qualquer coisa da experiência de alguém, mesmo que seja ilegal, imoral ou engorde (salve, salve Erasmo e Roberto Carlos!). Apesar de frequentemente não concordarmos com as ações de nossos clientes, como com os que são agressivos em circunstâncias conflituosas, e apesar de também sofrermos diretamente com isso se somos hostilizados por eles (o que pode acontecer de maneira sutil, como em: “acho que não estou melhorando…” quando inclui uma alfinetada ao trabalho do terapeuta), constantemente enxergo nessas ocasiões algo compreensível, um pedido justo que, mesmo que não possa ser atendido, pode ser almejado. O cliente que não vê melhora na terapia pode estar se referindo a algo importante de ser dito diretamente, como: “estou frustrado porque você não pode salvar meu casamento”, ou: “não consigo me abrir pra você, fico constrangido na sua presença”, ou ainda: “o custo da terapia está muito alto pra mim, não está valendo a pena”. Se consigo tatear a experiência do cliente, consigo reforçá-lo a “ver-se querendo” (… que seu casamento seja salvo, que o terapeuta se exponha mais, que adeque o preço às finanças do cliente ou que faça mais em sessão) e, mesmo quando não posso fazer o que o cliente está pedindo, posso validar sua necessidade e, com isso, criar intimidade (Cordova & Scott, 2001). Um relacionamento assim é qualitativamente diferente daqueles em que circulam punições (agressão ou afastamento) e extinção (indiferença); é um relacionamento em que prevalece a compreensão e aceitação à pessoa que está diante de nós. A suspensão do uso de estímulos aversivos dá para o cliente oportunidade de contato com os estímulos intra e interpessoais, então ele pode pedir diretamente o que precisa sem se esquivar do que está experienciando — como acontece no caso de mandos disfarçados, semelhante ao “acho que não estou melhorando…”.

Portanto, “selfear” é responder sob controle de estímulos do corpo diante de estímulos do meio físico e social, o que significa que é um comportamento determinado pelo contexto; é flexível, tem enorme variabilidade, só permanecendo estável o próprio corpo de quem se abstraiu o “eu”. Esse comportamento é o que considero que deve ser sustentado em toda intervenção terapêutica, de modo que se trabalhe sempre a troca entre a pessoa do terapeuta e a pessoa do cliente. E isso nem sempre ocorre evocando e reforçando habilidades emocionais, uma vez que a experiência é composta também por respostas de outra natureza que não apenas a dos sentimentos. Pensamentos (opiniões, ideias, perspectivas, valores etc…) e tendências para agir (ver mais aqui) também compõem o que se passa nos corpos de nossos clientes e que podem ser “selfeadas”.

Toda essa explicação nos leva a pensar sobre o resultado da aquisição do self; e nesse aspecto autores e pesquisadores ACT (Hayes, Strosahl & Wilson, 1999) têm muito a contribuir. Como dito anteriormente, na constituição do self o próprio corpo adquire função de estímulo. Isso significa que ele passa a participar de relações simbólicas, podendo evocar respostas de discriminação de eventos privados (self como processo); de coordenação, oposição e distinção envolvendo o self (self como conteúdo); ou respostas relacionais de hierarquia entre o eu e as experiências (self como contexto) (Moreira, Silva, Lima, Assaz, Oshiro e Meyer, 2017). Déficits ou excessos nesses repertórios provocam tanto a falta de discriminação do próprio comportamento, com forte controle público para o responder (e.g., sentir fome por ser meio dia e não por um estado do organismo; Kohlenberg e Tsai, 1991), como um padrão de resposta rígido, com altas taxas de reforçamento negativo. Um treino consistente com o terapeuta deve produzir, portanto, uma alternância flexível entre essas classes de respostas, sempre em consonância com os contextos apropriados.

Cordova, J. V., & Scott, R. L. (2001). Intimacy: A behavioral interpretation. The Behavior Analyst, 24(1), 75–86.
Hayes, S., Strosahl, K. & Wilson, K. (1999) Acceptance and Commitment Therapy: An Experiential Approach to Behavior Change. New York: Guilford Press.
Moreira, F. R., Silva, E. F. da, Lima, G. de O., Assaz, D. A., Oshiro, C. K. B., & Meyer, S. B. (2017). Comparação entre os conceitos de self na FAP, na ACT e na obra de Skinner. Revista Brasileira De Terapia Comportamental E Cognitiva, 19(3), 220-237.
Kohlenberg, R. J., & Tsai, M. (1991). Functional analytic psychotherapy: Creating intense and curative therapeutic relationships. New York: Springer.

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Classificação do artigo

Escrito por Francine Fernandes

Formada em Psicologia pela UFSCar e especialista em Clínica Analítico-Comportamental, atua como psicoterapeuta e supervisora clínica.

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