Round 6: De onde vem a motivação para arriscar a vida?

A série Round 6, produzida pela Netflix, retrata pessoas participando de um jogo cujo ganhador levará para casa tanto dinheiro que nunca mais precisará trabalhar nem se preocupar com os problemas impostos pelo capitalismo. O jogo parece simples: aquele que passar por seis brincadeiras de criança sem perder levará o grande prêmio para a casa. O detalhe mais importante da série é o seguinte: a eliminação do jogador que infringe as regras ou que perde a brincadeira consiste em nada menos do que a morte.

A emoção e o impacto da série residem justamente nesta regra. Ao longo de nove episódios, o espectador sente, na pele, a tensão de ver os personagens correndo o risco de perder a vida a qualquer instante. Uma das questões que aqui se impõe ao olhar analítico-comportamental é: quem em sã consciência jogaria isso? Quem é que arriscaria perder a vida e tudo o que mais guarda de importante em troca de dinheiro? Seria isto uma obra de pura ficção, ou, de fato, é possível que seres humanos se comportem de tal forma sob condições extremas? A análise do comportamento pode responder estas perguntas.

Quais contingências compõem o jogo?

            Participar do jogo é comportamento passível de reforçamento positivo. Basta passar por cada fase e ganhar o desafio final para produzir uma elevada soma de dinheiro. O dinheiro, por sua vez, é um poderoso reforçador condicionado generalizado: isto significa que a sua efetividade reforçadora independe de qualquer estado motivacional. Há, portanto, uma contingência de reforçamento que aumenta a inclinação a permanecer no jogo.

Procede que o engajamento no jogo pode produzir, ao lado do reforço positivo, fortes punições, visto que qualquer erro implica em dano físico e morte. Para muitos dos telespectadores, a possibilidade de tais consequências seria o suficiente para suprimir a inclinação a participar do jogo, mesmo com uma elevada soma de dinheiro te esperando no final – mas este não é o caso daqueles que ousaram se aventurar em squid game. Para eles, o dano físico e o risco de perda da vida parecem ter sua efetividade punitiva extremamente reduzida, visto que não observamos qualquer efeito supressivo. Isto é, a despeito das chances de perder a vida, os jogadores continuam jogando.

E os demais aspectos da existência dos personagens? Por que eles não estão sob controle de outras partes do mundo? Na vida de cada participante, no mundo lá fora, também existem contingências de reforçamento positivo vinculadas àquilo que é valioso em suas vidas, como o contato com família, amigos e lazeres. Mas parece que estes reforçadores não estão fortes o suficiente para concorrer com as contingências que aumentam a inclinação a permanecer no jogo, afinal, poucos são os que escolhem desistir e voltar para as suas vidas.

Para resumir o ambiente que compõem este cenário, podemos afirmar que a contingência de reforçamento positivo constituída pelo prêmio monetário se sobrepõe a todas as demais fontes de controle do responder para aqueles que entram no jogo: tanto as fontes de supressão (como o risco de morte) quanto reforçadores concorrentes (como os demais domínios de vida valiosos).

Mas nem todo mundo toparia perder tudo para ficar milionário…o que faz com que o dinheiro se torne tão reforçador? O que faz com que domínios da vida se tornem menos relevantes a ponto de alguém tolerar perdê-los? O que faz com que pessoas topem correr o risco de perder a vida? O que faz com que a possibilidade de morte perca sua capacidade de inibir comportamento de risco? Dito de outra forma, a quais variáveis podemos atribuir a efetividade aumentada ou reduzida das contingências que temos à nossa frente?

Operações Motivadoras: o efeito da pobreza

            Nenhum evento é por si só reforçador ou punitivo. Na verdade, as funções de estímulos, bem como a tendência de respostas que os produzem ou evitam, oscilam a depender de certas variáveis contextuais. Por exemplo, um belo prato de macarronada pode ser super reforçador se eu estiver privado de alimento, e, portanto, eu estarei muito inclinado a comê-lo; por outro lado, se eu estiver de estômago cheio, este mesmo alimento terá uma função neutra, e a inclinação a comê-lo será muito baixa. Em outras palavras, existem condições que modificam o impacto de eventos do mundo sobre o responder, e a inclinação em nos afastar ou aproximar destes eventos.

Estas condições são o que chamamos de Operações Motivadoras, ou OMs. Operações Motivadoras são eventos que apresentam dois efeitos: o (i) alterador de função e o (ii) alterador de comportamento. No que diz respeito ao efeito alterador de função, quando observamos o aumento da efetividade da função de estímulo, dizemos que a O.M exerce um efeito estabelecedor do reforçador e punição; quando observamos a redução da efetividade de um estímulo, dizemos que se trata de um efeito abolidor do reforço e da punição. Em relação ao efeito alterador de comportamento, dizemos que a O.M têm um efeito evocativo quando aumenta a probabilidade de respostas que produzem reforçadores positivos, que evitam as punições momentaneamente estabelecidas e que produzem punições momentaneamente abolidas; por outro lado, o efeito abativo diz respeito à redução da probabilidade de comportamento que produz punições momentaneamente estabelecidas e de comportamentos que produzem reforçadores momentaneamente abolidos (Pereira, 2008).

Representação dos efeitos da OM

Recorrendo ao instrumental das operações Motivadoras, é possível hipotetizar o porquê dos participantes em Round 6 atribuí     rem tanta importância ao dinheiro e tão pouca relevância ao risco de morte ao ponto de perdurarem em squid game até a última etapa.

Na série, os participantes compartilham da exposição às condições de pobreza extrema: eles sofrem pela falta de dinheiro, pelo excesso de dívidas, por passar fome, sede e a vergonha que deriva de tudo isso. Ao que tudo indica, essa condição de pobreza parece atuar como uma Operação Motivadora, responsável por determinar o valor reforçador e punitivo das contingências às quais os jogadores estão expostos.

Por que os personagens não se comportam sob controle daquilo que lhes é valioso, abandonam o jogo e voltam para os seus lares? Aparentemente, a pobreza exerce a redução da efetividade reforçadora de domínios valiosos da vida; família, saúde e bem-estar deixaram de ser tão importantes (abolição da efetividade reforçadora), tornando-se contingências de reforço pouquíssimo relevantes, daí a baixa probabilidade da desistência e retorno para a casa (efeito abativo de resposta).

A OM. reduziu a efetividade das contingências de reforçamento positivo do mundo lá fora: Família, Amigos e Saúde perderam o valor, não são reforçadores o suficientes para manter comportamento

Por que não há inibição do comportamento de risco pela possibilidade de dano e morte? Aqui, um segundo efeito motivacional da pobreza é a diminuição da  função aversiva/punitiva do dano à integridade física (efeito abolidor da punição), de tal forma que esta tornar-se inútil na supressão do comportamento de risco; se não há ambiente que suprime, o comportamento de risco permanece ocorrendo vigorosamente (efeito evocativo de resposta).

Devido à OM, as contingências punitivas para comportamento de risco perderam seu efeito supressor: agora nem o dano físico nem o risco de morte são capazes de inibir a participção no jogo.

Se as contingências de reforçamento concorrentes e supressivas para o comportamento de risco se tornaram inefetivas em virtude da condição motivacional de pobreza, então não existem razões ambientais para que os participantes deixem de participar do jogo. Agora morrer é menos assustador, e não existem mais coisas tão importantes lá fora para sequer pensar em desistir. Tudo o que há são razões para continuar: o prêmio monetário, cujo valor reforçador perdura intacto, prevalece no controle do responder.

Contingências em vigor: dada a baixa efetividade das contingências supressivas e das contingências para comportamento alternativo, há uma sobreposição do reforçamento positivo para a participação no jogo

Sobre a pobreza e Motivação

Round 6 não é simplesmente uma série sobre pessoas fazendo tudo por dinheiro. É a retratação do efeito das privações sobre o responder humanos, mais especificamente a privação monetária e de tudo o mais que o dinheiro pode comprar. A exposição à      pobreza extrema altera o valor de contingências ambientais: a vida deixa de ser importante e portanto não há porque preservá-la; ela pode se tornar tão irrelevante a ponto de humanos se submeterem ao risco de perdê-la em troca de notas de papel recheadas de valor simbólico. Quando todo o restante do mundo perde sua importância, quando não há mais concorrência de contingências, então os reforçadores positivos mais urgentes no momento      tomam o controle sobre a conduta individual.

Mas será que as relações comportamentais reproduzidas na série e aqui analisadas se resumem a uma obra de ficção? Basta olharmos à nossa volta e encontramos paralelos funcionais das mesmíssimas relações funcionais. Quando pessoas se rendem à criminalidade, elas também não estão nos dizendo que suas vidas e liberdades deixaram de ser importantes a ponto de toparem o risco de perdê-las? Elas também não estão dizendo que contingências de risco que resultam em dinheiro e bens materiais estão dominando o controle do seu responder? Quando populações inteiras vão à guerra para matar e serem mortas, também não estamos vendo humanos cuja coerência com os ideais nacionais se tornou muito mais reforçadora do que a preservação da própria vida? Quando o cidadão há meses desempregado aceita a submissão a trabalhos sub-humanos, à exploração, à humilhação, a ficar horas no transporte abarrotado em troca do salário básico para sobreviver, também não estamos observando escassez monetária estabelecendo muito mais importância a migalhas de dinheiro do que ao próprio bem-estar físico?

Será que Round 6, apesar de fictício, não está apenas reproduzindo em topografias extremas contingências funcionalmente idênticas às que compõem a nossa civilização?

Referências

Pereira, M. B. R. (2008). Operação estabelecedora condicionada substituta: uma demonstração experimental.

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Escrito por Matheus H S Mello

Graduado em Psicologia pela UNIP (2019) e Mestrando em Psicologia Experimental: Análise do Comportamento pela PUCSP. Atua como psicoterapeuta.

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