Como nos comportarmos enquanto uma comunidade de terapeutas em tempos de pandemia

Josy Moriyama e Renata Grossi

Instagram do projeto: psicouel.covid

Facebook do Projeto: Suporte Psicológico UEL-Covid19

Desde o início do isolamento social aqui no Brasil criamos um projeto pela Universidade Estadual de Londrina chamado Suporte Psicológico COVID-19, em que propusemos um modelo de funcionamento inspirado nas Equipes de Consultoria da Terapia Comportamental Dialética (DBT) [1]. Este modelo de funcionamento em que procuramos nos comportar enquanto uma comunidade de terapeutas que atende uma comunidade de pessoas que vem sofrendo com a pandemia, vem sendo construído e modificado ao longo desses quatro meses e, com certeza, ainda passará por muitas transformações. A ideia deste texto é inspirar comunidades de terapeutas a se apoiarem e se reinventarem, neste momento tão desafiador em que estamos sendo convocados a lidar com impactos psicológicos, econômicos e sociais nunca imaginados.

Entre as consequências difíceis de lidar durante a pandemia do Novo Coronavírus temos acompanhado também algumas mudanças positivas, relacionadas à maior possibilidade de acesso a informações nas mais diversas áreas de conhecimento, especialmente, na Análise do Comportamento. Dentre tantas lives, congressos, rodas de conversa e aulas no formato online, o que mais chama atenção é a quantidade de conteúdo gratuito para a comunidade científica e comunidade em geral.

Podem nos chamar de românticos, ou até ingênuos, mas acreditamos que uma mudança tão drástica como essa, pela qual estamos passando, está contribuindo para uma mudança de valores, de significados e atitudes. Finalmente os seres humanos parecem estar se vendo como conectados, interdependentes e até responsáveis em melhorarem esse momento para aqueles que precisam e não podem fazê-lo por si próprio.

Foram os mais de sessenta colaboradores do projeto que o abraçaram desde o início. Aceitamos o convite em coordenar a proposta inicial, de uma pró-reitora de pesquisa e pós-graduação, porque o cuidar e servir à sociedade é um valor importante para nós que trabalhamos na Universidade pública. Assim que divulgamos entre grupos de WhatsApp que precisávamos de psicólogos profissionais voluntários para atenderem remota e gratuitamente, rapidamente já tínhamos um número expressivo. Dentre os colaboradores tínhamos colegas professores e alunos da graduação e pós-graduação, ex-professores e ex-alunos da Universidade e profissionais que sequer conhecíamos. Acreditamos que a sensação de impotência que todos estavam vivenciando com os conteúdos midiáticos, com o desespero de seus clientes e, principalmente, o valor comum de contribuir com a sociedade nos uniu.

O trabalho clínico é muito solitário [2]. Quando trabalhamos em um consultório mesmo com mais colegas e/ou fazendo supervisões de caso, nos sentimos inseguros em tomar algumas decisões e responsáveis pelo rumo com que a vida de nossos clientes começa a tomar. A proposta de Marsha Lineham de que terapeutas que atendem casos graves participem de equipes de consultoria, para se manterem motivados a fazer o melhor trabalho possível, [1] nos inspirou diante do caos instalado na saúde mental agravado pela pandemia.

Nenhum de nós, independente do título, tinha ideia de como trabalhar com a análise do comportamento diante de uma situação de pandemia. Da mesma maneira, todos estávamos passando pelas mesmas situações aversivas de incontrolabilidade, medo e ansiedade que a população em geral. Por isso, fazia muito sentido que usássemos alguns dos princípios da equipe de consultoria [3] como: considerar cada cliente como sendo de toda a equipe, de modo que a responsabilidade pelas melhoras e pioras fossem compartilhadas. Estabelecermos relações de proximidade e cuidado dentro da própria equipe, buscando diminuir distanciamentos decorrentes de posições hierárquicas (como aluno-professor) e anos de experiência de prática clínica (como recém-formados e terapeutas com mais de 20 anos de carreira). Quanto mais estudássemos e aprendêssemos uns com os outros, mais rapidamente e efetivamente conseguiríamos contribuir com conhecimento científico numa situação nova, que demanda o desenvolvimento de repertório.

Entre os pressupostos do terapeuta e do cliente da DBT que procuramos nos lembrar, enquanto trabalhamos uns com os outros estão: 1) a relação entre terapeuta e cliente é uma relação entre iguais, já que os princípios do comportamento são os mesmos para ambos; 2) todos estamos tentando fazer o nosso melhor, aquilo que conseguimos naquele momento e, ainda assim, 3) podemos melhorar e iremos nos esforçar e motivar uns aos outros a nos aperfeiçoarmos ainda mais; 4) entretanto, devemos nos lembrar que mesmo dando o nosso melhor podemos não ser efetivos, podemos errar, porque somos falíveis. [1] Essa cultura entre os colaboradores é bastante incentivada, pois sabíamos que iríamos passar por muitas situações de altos e baixos. Dessa forma precisaríamos ser flexíveis uns com os outros, tendo sensibilidade de usar tanto a validação dos sentimentos de desânimo, insegurança, cansaço, desesperança, entre tantos outros, mas também, no momento certo e com todo o cuidado, tentaríamos incentivar uns aos outros a continuar e melhorar ainda mais. Baseados nesses pressupostos, passamos a considerar entre os acordos de consultoria, três deles que seriam imprescindíveis no nosso projeto: os acordos de empatia, limites e falibilidade [3].

No acordo de empatia procuramos ver o mundo e os problemas entre nós do projeto com os olhos uns dos outros. Isto implica em tentarmos não julgar a postura uns dos outros, mas compreender seus comportamentos a partir da perspectiva individual de cada um. Esta postura empática contribui para o acordo de observar limites, em que nos atentamos a nos observar e observar ao outro, especialmente nesta situação tão ímpar em que todos fomos surpreendidos. Assim, limites pessoais não devem ser comparados ou criticados, pelo contrário, devem ser validados e respeitados, lembrando que estes podem variar em diferentes momentos. Dessa forma, no projeto procuramos lembrar uns aos outros sobre seus limites, tomando o cuidado em não sobrecarregar ninguém, valorizando o dizer “não” para determinados pedidos. O acordo de falibilidade nos lembra que por sermos humanos podemos falhar e não precisamos nos defender de acusações que apontam nossos erros, podemos reconhecer nossas falhas e procurar aprender e melhorar diante delas.

Estes acordos têm norteado nossas ações porque desde o princípio concordamos que cada um faria aquilo com que mais se identificasse, que mais fizesse sentido para si próprio, contribuindo com o tempo que fosse possível. Alguns colaboradores do projeto somam funções de gestores e terapeutas, outros oferecem um horário na agenda de atendimentos. Desta maneira, a intensidade e atribuição de cada um podem variar em determinados períodos, lembrando que começamos o projeto em uma situação de isolamento total, que foi sofrendo alterações ao longo do tempo. Como diz a filosofia dialética: nada é permanente, a única certeza é a mudança, portanto sermos flexíveis uns com os outros e com nós mesmos é fundamental.

Para que estes princípios e acordos funcionem é preciso que compartilhemos não apenas as atividades, mas principalmente nossas experiências, tanto no projeto, quanto particulares. Isto envolve tentarmos ser vulneráveis uns com os outros, poder abrir nossas inseguranças, nossos erros e pedirmos ajuda. Como escreve Brené Brown em seu livro Mais Forte que Nunca publicado no Brasil em 2016 pela Editora Sextante [4] a maioria de nós é muito bom em oferecer ajuda, mas quando se trata de vulnerabilidade precisamos pedir ajuda também.

Nenhum de nós é especialista em lidar com pandemias ou sabia antes fazer um suporte psicológico em uma única sessão, estamos todos aprendendo. Tentamos evitar dar aulas ou supervisões, utilizamos a metodologia de capacitações, grupos de estudo e discussões de casos. Assim, qualquer opinião ou ideia sempre será bem-vinda. Nossos temas de capacitações têm variado desde discussões sobre como fazer os Primeiros Cuidados Psicológicos, até aplicações da Terapia de Aceitação de Compromisso (ACT), DBT, Teoria das Molduras Relacionais (RFT), Ativação Comportamental, Psicologia Positiva, nesta situação de pandemia. Também fazemos discussões de filmes e trazemos convidados com visões diferenciadas para que nos inspirem, renovem e mantenham nossas esperanças.

Estamos trabalhando tão intensamente, trocando tantas experiências e aprendendo juntos, que estamos construindo nossa intimidade. Buscamos fazer reuniões periódicas nas frentes específicas do projeto, assim como entre todos os colaboradores, em que procuramos ouvir e tomar decisões em comum acordo. Quando discordamos ou precisamos dar um feedback negativo, o fazemos, porque temos investido neste “local seguro”. Segundo Koerner [5] para que haja verdadeira intimidade é preciso que haja segurança em fornecer e receber um feedback honesto. Esta autora aponta que a grande beleza da equipe de consultoria é justamente o fato de que muitas visões diferentes são possíveis.

Num dos capítulos do livro Mais Forte que Nunca, Brené Brown descreve que os maiores CEOs do mundo possuem um fator em comum: eles têm alguém do mesmo ramo, que pode compreender o que passam, para quem podem se mostrar vulneráveis e pedir ajuda. Para esta autora não podemos ser corajosos no mundo, sem ter ao menos um lugar seguro para lidar com nossos medos e nossas quedas [4]. No projeto nos permitimos cair, o que seria impossível de não acontecer nesse período específico, e oferecemos espaço para nos apoiarmos uns nos outros e levantarmos.

Para Finger [2] essa premissa de “comunidade” que se vê nas equipes de consultoria em DBT “Envolve colaboração, dedicação, doação, debate para o bem-comum (mas não necessariamente concordar em tudo para evitar o conflito). (…) requer uma atitude profissional diferente, muito mais colaborativa e aberta a análises e incentivos”.

Isto envolve sair do individualismo, da competitividade, do saber mais que o outro para colaborarmos uns com os outros e nos vermos enquanto seres humanos que estão passando por dificuldades, assim como nossos clientes. Isto envolve incentivarmos uns aos outros a aplicarem as mesmas técnicas utilizadas com nossos clientes em nós mesmos, vivenciando na pele o que ensinamos. Nossa inspiração nas equipes de consultoria vem muito da premissa de que devem funcionar como terapia para terapeutas [3].

Cuidarmos uns dos outros, como cuidamos de nossos clientes tem sido um dos valores mais importantes em nosso projeto. Esperamos que continuemos unidos para enfrentarmos o “pós-pandemia” que todos esperam, mas que promete nos desafiar ainda mais. Assim como os demais profissionais da saúde que estão na linha de frente, neste momento estamos lutando arduamente para amenizar o sofrimento psicológico advindo desta situação. Sabemos que o “pós-guerra” trará consequências bastante difíceis em termos de saúde mental e que podemos vir a sofrer efeitos decorrentes do período de estresse enfrentado anteriormente.

Por isso, precisamos nos manter unidos e levarmos todo o aprendizado que este tempo de dificuldades nos trouxe. Nós deixamos de nos comportar individualmente para nos comportarmos enquanto um grupo que tem valores comuns e que trabalha para um bem comum. Não podemos nos esquecer que somos seres sociais e que esta sensação de pertencimento em uma comunidade em que nos sentimos compreendidos e valorizados, nos traz alegria, bem-estar, podendo nos proteger de danos maiores. Somente unidos, nos manteremos fortes o suficiente para fazermos nosso trabalho de proteção à saúde mental de tantos outros que precisarão contar com nosso conhecimento científico.

            A intenção deste texto é trazer esperança e inspiração nesse momento tão delicado. Sabemos que não descrevemos exatamente o funcionamento do projeto Suporte Psicológico COVID-19. Na sequência produziremos outros textos com esta função. Também nos colocamos à disposição para compartilharmos todo nosso material produzido durante este período, para que ampliemos esse senso de comunidade entre todos nós terapeutas.

Nota 1: Agradecemos a leitura e revisão cuidadosa da nossa colaboradora Vanessa Ximenes.

Referências:

[1] Linehan, M. (2018). Treinamento de Habilidades em DBT: manual de terapia comportamental dialética para o terapeuta. Porto Alegre: Artmed.

[2] Finger, I. (2017). Por que a reunião de consultoria de equipe é tão importante na DBT? No site: Comporte-se: Psicologia e Análise do Comportamento. https://comportese.com/2017/11/por-que-reuniao-de-consultoria-de-equipe-e-tao-importante-na-dbt.

[3] Sayrs, J.H.R. & Linehan, M.M. (2019). DBT Teams: Development and Practice. New York: The Gilford Press.

[4] Brown, B. (2016). Mais Forte do que Nunca: Caia, levante-se e tente novamente. Sextante: Rio de Janeiro.

[5] Koerner, K. (2012). The Individual Therapist and the Consultation Time. In: Doing Dialectical Behavior Therapy: A practical guide. New York: The Guilford Press. p. 184-205.

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Escrito por Josy Moriyama

Análise do Comportamento Aplicada ao Ambiente Hospitalar

[Entrevista – Matthew D. Skinta] – autor do livro Mindfulness and Acceptance for Gender and Sexual Minorities