Suicídios e COVID-19: algumas considerações

Fonte: UOL.

A escolha da imagem acima é um tanto pessoal. Minha história de vida foi permeada por diversos momentos de ideações suicidas na adolescência e no início da vida adulta. Por quase uma década, elas se tornaram inexistentes, até março desse ano. Felizmente, foram passageiras. Ver um paramédico judeu e um muçulmano rezando próximos, em uma cidade no sul de Israel, teve a proeza de me trazer paz no início da nossa pior crise sanitária nos últimos 100 anos.

Em março de 2020, foi estimado que mais de 2,6 bilhões de pessoas estavam em alguma forma de quarentena. Para Elke Van Hoof, especialista em estresse e trauma, esse está sendo o “maior experimento psicológico da história”[1]. Mesmo tendo a perspectiva que essa pandemia irá passar, é essencial analisarmos com cautela a questão dos suicídios durante e após a COVID-19.

Mortes por suicídio se configuram como problema de saúde pública. Estima-se que mais de 793 mil pessoas tirem a própria vida no ano de 2016, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS)[2]. Em tempos de COVID-19, a questão de suicídios foi alvo de preocupação e discussão, tanto por defensores de medidas mais restritivas de distanciamento social quanto por pessoas a favor de relaxar tais medidas. Para Reardon[3], em uma epidemia, mais pessoas são impactadas psicologicamente do que pessoas infectadas pelo patógeno em questão. Tal afirmação parece evidente, embora medidas para fornecer amparo psicológico possuam uma tendência a terem um caráter coadjuvante, considerando os esforços e recursos públicos para lidar com o patógeno. Para a mesma autora, entretanto, os impactos psicológicos podem persistir por mais tempo que a pandemia, portanto devem ser, na medida do possível, prevenidos e manejados.

É importante ressaltar que o suicídio é um fenômeno complexo e multifatorial. Dessa forma, uma análise de que um evento levou a pessoa a tirar a própria vida é simplista e, possivelmente, ingênua. Compreender a relação entre as variáveis que produzem uma espécie particular de sofrimento psicológico, levando uma pessoa a pensar em se matar e, em alguns casos, a fazer uma tentativa para acabar com a própria vida, é o melhor caminho para planejarmos medidas mais eficazes para lidar com essa questão de saúde pública.

Baseando-se na última pandemia que a COVID-19 pode se comparar (ou ultrapassar), a Gripe Espanhola, Wasserman[4] tentou isolar o efeito da 1ª Guerra Mundial, da Gripe Espanhola e da Lei Seca nos Estados Unidos em taxas de suicídio. Não foi encontrado aumento no primeiro caso, houve aumentos no segundo e declínios de mortes por suicídio no terceiro.

Numa rápida revisão de literatura sobre efeitos psicológicos decorrentes de quarentena, Brooks e colaboradores[5] listaram o suicídio como um possível desfecho trágico diante de períodos de confinamento. Considerando que bilhões de pessoas ficaram em alguma forma de quarentena durante o primeiro semestre de 2020, notamos um fator de preocupação. Não obstante, há relatos de aumento de ligações para hotlines nos meses de março e abril, como a Disaster Distress Hotline e a Crisis Text Line, que mencionaram um aumento entre 900% e 1000% na primeira e 40% na segunda. 

Outro aspecto que causa preocupação é a crise econômica que ocorrerá em função da pandemia. Dados recentes mostram que a “economia brasileira perdeu 1,1 milhão de vagas de trabalho com carteira assinada entre os meses de março e abril. Apenas em abril, foram fechados 860,5 mil postos de emprego formal, o pior resultado para um único mês em 29 anos”[6]. Em um estudo feito por Demirci, Konca, Yetim e Ilgün[7], tais autores encontraram aumentos significativamente estatísticos em suicídios, a curto e longo prazos, com relação à população estadunidense em função da crise econômica de 2008.

Não obstante, a mídia e comportamento de pessoas em redes sociais terá um papel importante na prevenção de suicídios. Casos de suicídio, incluindo de pessoas famosas, poderão ocorrer. Já tivemos a experiência de um ator brasileiro que se matou e deixou um bilhete suicida, que foi amplamente compartilhado por pessoas, inclusive por profissionais da área da saúde. Divulgar fotos da cena de suicídio, do método utilizado e do conteúdo do bilhete são formas contraproducentes de ajudar a prevenir suicídios. Agir dessa forma tende a favorecer o efeito de imitação, ou seja, pessoas se matarem de forma similar ao que foi noticiado, dada uma possível identificação com quem tirou a própria vida. Compartilhar tais notícias com o intuito de conscientizar pessoas sobre saúde mental e prevenção a suicídio é tão eficaz quanto você contrair o novo coronavírus, ir a um mercado sem máscara e sussurrar no ouvido de cada pessoa “fique em casa”.

Nível individual

Diante das variáveis mais abrangente que foram listadas acima, uma questão que pode surgir é como elas afetarão pessoas a nível individual. Dito de outro modo: como um desemprego pode favorecer com que alguém se mate, por exemplo?

Para subsidiar essa análise, utilizo o Integrated Motivational-Volitional Model of Suicidal Behaviour (IMV)[8], feito pelo Rory O’Connor, psicólogo e professor da Universidade de Glasgow. Quando uma pessoa perde o emprego, pode surgir uma sensação de fracasso e humilhação, dado que vivemos em uma sociedade na qual é comum atribuirmos culpa a nível individual por fenômenos coletivos. Em seguida, caso a pessoa não tenha um repertório efetivo de resiliência para lidar com essa situação – além da baixa oferta de empregos diante de um cenário de recessão –, ela pode se sentir aprisionada/enclausurada (entrapment, do modelo). Caso ela passe a não ver perspectivas futuras, além de se sentir um fardo (burdesomness, do modelo) para familiares em decorrência da perda de renda, ela pode desenvolver ideações suicidas.

Outro exemplo pode consistir em algum profissional da área da saúde que atue na linha de frente no combate à COVID-19. Imaginemos um enfermeiro, tendo convívio diário com a morte de pessoas pelo novo coronavírus. Tal experiência pode favorecer uma sensação de fracasso, com uma rede de apoio mais escassa em função do isolamento social. Assim, o enfermeiro pode se sentir enclausurado pela situação, tendo dificuldade em ver uma perspectiva futura promissora. Ademais, suponha que tal profissional comece a apresentar sintomas da COVID-19 e tenha medo de contaminar sua família (marido e filhos, por exemplo), o que pode favorecer a sensação de ser um fardo. Por fim, suponha que ele é hostilizado por civis em um transporte público a caminho do trabalho, o que pode gerar uma sensação de desconexão social (thwarted belongingness, do modelo, tradução livre). Tais fatores podem auxiliar no desenvolvimento de ideações suicidas por parte deste profissional.

Conclusão

Há inúmeras incertezas sobre a duração da pandemia, quantidade de mortes, impacto econômico adverso, velocidade de recuperação econômica, comorbidades do novo coronavírus e novos rearranjos de modos de viver durante e após a pandemia. Tais fatores potencialmente trarão impactos mais significativos no número de suicídios. Mesmo que consigamos atingir os cenários mais otimistas para encerrar a pandemia, há inúmeras variáveis já presentes que, interagindo entre si, favorecem o aumento de casos de suicídios, quando comparamos com anos sem a COVID-19. Deste modo, estratégias de prevenção e de posvenção são essenciais para mitigarmos os danos decorrentes do novo coronavírus no tocante a suicídios. Felizmente, há pesquisas e serviços em andamento visando essas demandas.

A Fiocruz e o Instituto Vita Alere de Prevenção e Posvenção do suicídio elaboraram uma cartilha contendo informações valiosas sobre prevenção e posvenção ao suicídio[9], é bastante recomendada para quem trabalha com essa demanda e/ou para quem deseja aprender mais a respeito.

O suicídio é um assunto delicado. Se você sente que precisa de algum auxílio, entre em contato com algum(a) profissional especializado(a) ou com o Centro de Valorização da Vida (CVV), através do número 188 ou através do site https://www.cvv.org.br/. Profissionais desta ONG estão disponíveis 24 horas para poder lhe ajudar.

Notas e referências:

[1] Para ver a entrevista dela para a BBC: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2020/06/28/o-confinamento-e-o-maior-experimento-psicologico-da-historia-diz-especialista-em-trauma.htm

[2] https://www.who.int/gho/mental_health/suicide_rates/en/, acessado em 02/07/2020.

[3] Reardon, S. (2015). Ebola’s mental-health wounds linger in Africa: health-care workers struggle to help people who have been traumatized by the epidemic. Nature, 519(7541), 13-15.

[4] Wasserman, I. M. (1992). The impact of epidemic, war, prohibition and media on suicide: United States, 1910–1920. Suicide and Life‐Threatening Behavior, 22(2), 240-254.

[5] Brooks, S. K., Webster, R. K., Smith, L. E., Woodland, L., Wessely, S., Greenberg, N., & Rubin, G. J. (2020). The psychological impact of quarantine and how to reduce it: rapid review of the evidence. The Lancet.

[6] https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/06/30/desemprego-sobe-para-129percent-em-maio.ghtml?fbclid=IwAR1hr0mfaDHfLuH_fN7fWsXlDjI0CMkhMCnnnMyROodXRCh9HDDKSq1nVu0, acessado em 01/07/2020.

[7] Demirci, Ş., Konca, M., Yetim, B., & İlgün, G. (2020). Effect of economic crisis on suicide cases: An ARDL bounds testing approach. International journal of social psychiatry, 66(1), 34-40.

[8] Para uma explicação mais aprofundada do IMV model, sugiro este texto escrito pelo Tiago Zortea para o Comporte-se. Disponível em: https://comportese.com/2015/09/suicidio-observacoes-sobre-a-tragedia-de-nao-mais-querer-viver

[9] Disponível em: https://www.fiocruzbrasilia.fiocruz.br/wp content/uploads/2020/05/cartilha_prevencaosuicidio.pdf

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Escrito por Murilo Vasques Buso

Graduação em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Qualificação Avançada em Terapia Analítico-Comportamental pelo Paradigma - Centro de Ciências e Tecnologia do Comportamento. Atuou como terapeuta no Laboratório de Terapia Comportamental Dialética (DBT-LAB).

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